Malditos Cromossomos escrita por Felipe Arruda


Capítulo 4
Prata e sangue




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Samuel estava sentado no banco de trás de uma Toyota Hilux enquanto George e Angelina estavam no banco da frente. Ele estava se sentindo sufocado dentro daquela roupa social engomada e seus pés não estavam querendo se adaptar a forma do sapato italiano caríssimo e incrivelmente brilhoso.

— Você está bem Bruno? – Perguntou George com um sotaque americano fraco em sua fala. Samuel encontrou os olhos do homem pelo retrovisor e sorriu.

Não.— Pensou.

— Sim – foi o que disse.

George era exatamente igual à fotografia que seu sósia havia mostrado, diferente de Angelina que parecia mais velha.

— Animado com o colégio amanhã? – Perguntou George com seu tom de voz grave e potente.

Não. – Pensou.

— Sim. – Foi o que respondeu dando um meio sorriso amarelo.

George dirigia a caminhonete por uma rua com casas grandes e bonitas, algumas cercadas por muros altos com cerca elétrica enquanto outros exibiam belos jardins e chafarizes.

Samuel não tinha ideia de para onde estava indo o que o colocava cem por cento na linha de fogo, o que significava que ele era um alvo fácil e que todo o plano corria um sério risco de ir por água abaixo.

O carro prosseguiu por mais algumas ruas. O garoto não sabia que bairro era aquele, era um bairro chique e visivelmente caro. Samuel começou a achar que eles estavam indo para um jantar, tipo um desses que ricos sempre fazem para socializar, dar tapinhas uns nas costas dos outros e falar mal dos convidados quando chegassem a suas casas, mas era pouco mais do que quatro horas da tarde o que era cedo de mais para um jantar.

Uns quinze minutos depois, o carro entrou em um estacionamento subterrâneo todo iluminado por luzes artificiais e parecendo um local perfeito pra um filme de terror ser gravado.

— Chegamos – Disse George. O homem estava prestes a abrir a porta do carro quando seu celular tocou.

Angelina saiu majestosamente do carro e Samuel fez o mesmo só que de uma forma mais desengonçada.

A mulher que havia passado o caminho inteiro em silêncio vidrada no celular na escolha de um filtro perfeito do instagram para não parecer mais velha do que era, deu poucos passos longos em direção a Samuel e falou num tom de voz, baixo e ameaçador.

— Vê se não estrague as coisas com essa sua cara emburrada. – Samuel arregalou os olhos para aquela mulher. – Eu sei que é difícil meu bem – seu tom, assim como o sorriso nos lábios era ironia pura. – Mas tente ser um pouco simpático. Sorrir não faz os lábios caírem. – Ela continuava com os olhos vorazes em cima dele, até que resolveu desviar para um ponto qualquer no estacionamento. – Das outras vezes era mais fácil explicar a sua ausência nos evento já que você estava num internato, mas agora que você esta aqui – ela voltou a olhar para ele – as coisas vão ser do meu jeito. – Ela sorriu. – E o meu jeito é sempre do jeito perfeito.

Samuel engoliu em seco.

— Claro – disse ele. – Ah! Espere! – Ele arregalou os olhos e cobriu a boca com a mão numa forma de espanto. – Isso no canto dos seus olhos são rugas? – Angelina estava estática. – Porque se forem, filtro nenhum do instagram vai dar jeito. – Ele sorriu majestosamente.

Angelina empalideceu e colocou os dedos nos cantos dos olhos se certificando se havia de fato rugas ali. Antes de falar qualquer coisa, George saiu do carro colocando o celular no bolso.

— Prontos? – Perguntou ele seguindo em direção ao elevador. Nem Samuel nem Angelina responderam a pergunta de George, primeiro porque Samuel não sabia para o que ele deveria estar pronto e segundo que era muito provável que George não esperava de fato uma resposta.

Quando as portas do elevador se abriram a primeira coisa que Samuel viu foi uma fonte jorrando água para o alto e caindo de forma sincronizada.

George seguiu pelo piso de mosaicos até em direção a uma gigantesca porta de vidro. Do lado de fora, algumas pessoas aguardavam para entrar. Samuel olhou para as escadas rolantes do lado direito que seguiam para um segundo andar. Ali onde eles estava havia uma série de lojas das mais diversas se preparando para abrirem.

Aquilo era um Shopping Center. George parou em frente às portas e dois homens vestidos com trajes de seguras abriram as portas. Angelina seguiu o marido até ao lado de fora onde um laço vermelho gigantesco estava bloqueando o caminho.

O garoto seguiu os pais de seu sósia até que ambos pararam enfileirados em frente aquele laço, George separando ele de Angelina. Um homem baixo e roliço, com sinais de calvície e um nariz exuberantemente grande, parou ao lado deles. Samuel já havia visto aquele homem diversas vezes nos noticiários: era o prefeito da cidade.

— Estamos reunidos nessa tarde – começou o prefeito em seu pleno tom de voz agudo e estridente – para celebrarmos a inauguração do novo Shopping Center da cidade...

Cacete! – Pensou Samuel.

Dois fotógrafos pararam do lado de fora do laço e começaram a fotografar a família feliz ao lado do prefeito roliço.

Samuel sorria da melhor forma que conseguia já que sair naquelas fotografias era loucura. Certamente aquelas fotos sairiam no jornal da cidade, jornal qual seu verdadeiro pai costumava ler. O meticuloso plano dos gêmeos estava em risco naquele momento.

Mais e mais pessoas chegavam para a inauguração do Shopping Classe A que estava prestes a abrir as portas. As pessoas que chegavam eram na maioria mulheres usando roupas caras e exibindo penteados bem feitos.

O prefeito continuava a falar e tudo o que Samuel mais queria era sair dali. Ele olhou discretamente para trás e encarou o chafariz, em seguida olhou para as escadas rolantes e teve uma ideia.

— Pai – sussurrou ele para George se sentindo muito bocó por chamar um homem completamente desconhecido de pai. – Preciso ir ao banheiro.

Angelina, que estava ao lado oposto de Samuel, olhou para ele reprovando aquele comportamento, como se a inauguração de um Shopping Center fosse muito mais importante do que uma ida ao banheiro. Ela sustentava aquele olhar malévolo em cima dele e parecia mal respirar naquele momento.

George fez um sinal positivo com a cabeça e voltou a sorrir para as pessoas que já pareciam cansadas com o discurso tosco do prefeito. Samuel andou em direção as escadas rolantes. Ele não sabia onde ficavam os banheiros, ele nem queria ir ao banheiro de verdade, só queria ficar longe dos fotógrafos.

O segundo andar era basicamente idêntico ao primeiro, à diferença era que ali havia um cinema e uma praça de alimentação bem ampla. Algumas das lojas já estavam abertas enquanto outras se preparavam para abrir.

Samuel andou pelo segundo andar até entrar em um corredor estreito que não tinha saída onde, por sua sorte, indicavam os banheiros.

O banheiro masculino ficava do lado direito do corredor enquanto o feminino ficava do lado esquerdo. No fim do corredor havia uma enorme janela de vidro com vista para o exterior do prédio.

Havia uma pessoa olhando pela janela. A pessoa usava uma calça, um sapato masculino e um casaco com capuz, que lhe cobria a cabeça, tudo na cor preto.

Samuel sentiu um arrepio percorrer por todo o seu corpo, mas mesmo assim resolveu se aproximar daquela figura tão misteriosa. O ar cheirava a jasmim naquele momento, um cheiro que fazia Samuel se lembrar de cemitérios, lembrava a morte.

— Olá – disse ele dando passos lentos. Aquela figura estranha podia ser algum funcionário, pensou ele. – Tudo... Bem?

A figura se virou e Samuel reconheceu aquele rosto mascarado. Era o mesmo individuo que amador quase havia atropelado horas antes.

— Merda – disse Samuel num tom de voz baixo, dando um passo para trás. – Merdamerdamerdamerda...

Num movimento rápido, o estranho deu um soco no estômago de Samuel e o jogou com força contra a parede branca e imaculada do corredor. Samuel bateu a cabeça na parede e caiu no chão um pouco tonto. Sua visão ficou turva e ele enxergava duas manchas pretas vindo em sua direção ao invés de um único maluco.

O estranho subiu em cima dele e prendeu os braços de Samuel com os joelhos. O garoto, ainda tonto, tentava se desvencilhar do maluco, mas ele não conseguia. O estranho em cima dele parecia ter a mesma altura que Samuel, mas era mais pesado, mais forte. Samuel bem que tentava golpear o estranho com as mãos, mas ele não conseguia mexer os braços imobilizados.

O estranho tirou uma adaga do bolso do casaco e a aproximou lentamente do pescoço de Samuel.

— Pare! – Gritou Samuel. – Pare! Por favor! Pare!

Samuel sentiu a lamina gelada em seu pescoço queimar como o gelo em cima de um machucado, o estranho começou a pressionar a adaga lentamente, enquanto Samuel ainda gritava e se debatia numa tentativa bem inútil de se livrar do maluco em cima dele.

— Pare! – Voltou a gritar em desespero, mas o estranho parecia que se divertia com aquilo. – Eu não sou o Bruno! – Gritou ele. A lâmina parou, mas Samuel sentia que algo escorria por seu pescoço e uma dor alucinante o fazia querer gritar. – Eu não sou o Bruno... – Sua voz falhou. O plano havia falhado.

 O estranho largou a adaga no chão e lentamente tirou o capuz da cabeça deixando a mostra um cabelo prateado sobrenatural que brilhava quando os feixes de luz que entravam pela janela o atingiam. Samuel escutou o que parecia ser um resmungo que vinha por detrás da máscara de ovelha que o estranho usava. Máscara que ele mesmo foi tirando aos poucos até mostrar o rosto por completo.

 – Não pode ser! – Gritou Samuel começando a sentir a falta de ar nos pulmões.

O estranho era idêntico a ele, exceto pelo cabelo prata, por uma cicatriz grande na bochecha que começava no canto superior da testa e descia até a boca, além é claro, de um sorriso fino e enigmático.

— Você precisa correr antes que... – disse o estranho como se sussurrasse. A voz dele era carregada de melancolia.

Num gesto rápido, Samuel puxou a adaga do chão e a cravou num local próximo a costela esquerda do estranho que se desequilibrou e caiu no chão.

Um segurança apareceu no início do corredor.

— Tudo bem por aqui? – Perguntou o homem analisando a cena.

— Preciso de uma ambulância – disse Samuel se sentindo fraco e enjoado. Sua mão ainda estava no pescoço que ainda escorria sangue, mas seus olhos estavam no seu sósia que se levantava lentamente do chão. 

Num gesto rápido, o sósia malvado tirou a faca da costela e segurou a lamina tão forte que um sangue vivo começou a escorrer de sua mão. Com o cabo grosso da adaga ele bateu na cabeça de Samuel que voltou a se debater contra a parede e caiu no chão ainda mais tonto do que antes.

 Ele olhou para o estranho de cabelo prateado que correu em direção a janela que se quebrou com o impulso da batida do corpo dele contra o vidro. O garoto do cabelo prateado simplesmente se jogou do segundo andar numa tentativa louca de fuga.

Samuel apagou depois de ter visto aquilo.

♦♦♦

Bruno estava dentro do Box do banheiro com o chuveiro ligado. Ele havia acabado de tomar banho quando aproveitou o barulho da água caindo no chão para ligar para Samuel.

— Alô – disse Bruno depois de esperar por quatro toques de chamada. – Como estão as coisas? – Bruno falava um tom mais baixo de voz do que o casual. Ele não queria que alguém ouvisse sua conversa por de trás da porta do banheiro.

Samuel fungou do outro lado da linha.

 

— Bem – disse ele ironicamente. – Tirando a parte em que nosso irmão gêmeo malvado quase me matou.

Bruno estremeceu.

— Do que você está falando? – Perguntou ele. Bruno escutou Samuel suspirar do outro lado da linha.

 

— Ontem – disse ele – enquanto eu estava na inauguração de um shopping, que por sinal, você não me avisou que eu deveria ir. – Bruno revirou os olhos. – Um maníaco idêntico a nós, tirando o cabelo prata e uma cicatriz no rosto, me atacou quando eu estava sozinho.

Bruno encarou o vidro de condicionador para cabelos lisos na janela do banheiro.

 

— Ele iria me matar. – Prosseguiu Samuel com a narração. – Mas ele parou quando eu disse que não era você...

 

Bruno conseguiu ficar ainda mais estático do que estava. Ele realmente não sabia o que podia ser pior: se era o fato de que existia um terceiro deles, ou que o terceiro deles estava tentando matá-lo.

— Samuel! – Gritou Amélia da cozinha. – Sai desse chuveiro!

Bruno encarou sua atual realidade.

— Escute Samuel – disse ele. – Eu preciso desligar. Eu estou numa trilha que talvez nos de alguma resposta. – Ele queria poder falar sobre a Silvana, mas estava ficando sem tempo. – Mas antes de qualquer coisa, eu preciso saber quem é o filho desse homem chamado João que vai vir trabalhar aqui na loja.

Samuel ficou quieto por alguns segundos. A espera estava fazendo Bruno querer gritar de ansiedade. O chuveiro continuava ligado e o seu tempo escorria como a água indo para o ralo. Quando Samuel voltou a falar do outro lado da linha, seu tom de voz era de impaciência e até mesmo de amargura.

— É o Luan – disse ele. – Nós nos conhecemos apenas de vista. Ele é um ano mais velho do que eu, se formou no colegial antes de mim e namorou a menina que eu gostava. – Ouve uma pausa, dessa vez rápida. – Nós não somos amigos.

— Samuel! – Voltou a gritar Amélia. A voz parecia vir da cozinha. Bruno encarou o chuveiro ainda ligado.

— Certo – disse Bruno. – Estou ficando sem tempo. Tente ficar vivo e me manter informado.

Samuel resmungou alguma coisa do outro lado da linha e em seguida usou um tom de voz sério e intimidador. Bruno, quando escutou aquele tom de voz sentiu um aperto no peito já que ele jamais conseguiria falar de forma tão dura quanto seu sósia estava falando.

 

— Você tem uma semana para encontrar alguma resposta nessa sua trilha. – Disse Samuel. – Depois disso eu quero voltar a levar a minha vida e você que se vire com maníacos malucos em inaugurações de shopping. – Bruno revirou os olhos mais uma vez. – E antes que eu esqueça, alguns fotógrafos me clicaram ao lado do seu pai e da coisa irritante que é a sua mãe, isso significa que a minha foto vai estar no jornal da cidade, o jornal que meu pai assina.

Bruno suspirou. Ele deveria rebater aquela piadinha chata sobre a mãe dele, mas irritante era pouco perto do que Angelina conseguia ser.

— Eu cuidarei disso. – Em seguida Bruno desligou o celular e o chuveiro.

O garoto ficou encostado na parede do banheiro, completamente nu e com gotas de água escorrendo de seus cabelos por suas costas. Ele se sentia estranho diante de sua vida. Tudo o que ele havia vivido até então era uma farsa? Ele, por um acaso, teria mais dois irmãos dos quais havia se separado quando nasceu? Quem era a mãe deles? Angelina?

Tudo era tão confuso que ele sentiu uma tontura percorrer seu corpo quando ele deu o primeiro passo em direção ao tapete no banheiro. Durou apenas uma fração de segundos, mas foi o suficiente para um desconforto ainda maior se manifestar em sua garganta. Parecia que seu pulmão estava com dificuldade de bombear o ar. Ou então, era como se ele estivesse inalando um gás tóxico que fazia sua garganta arder em brasa a cada movimento respiratório automático que ele tentava fazer.

Bruno se viu dentro de uma crise de tosse que durou mais ou menos um minuto. Foi o minuto mais angustiante de sua vida. Era como se seu corpo estivesse tentando expelir algo pela boca e a única forma daquilo acontecer era tossindo. Era uma sensação parecida com aquele em que parece que algo arranha a sua garganta e você tosse até que aquela sensação pare. Bruno colocou a mão sobre a boca no caso de que alguma secreção nasal saísse por ali, mas quando a tosse finalmente deu uma trégua o que ele viu em sua mão não era nada parecido com secreção, mas sim pontos úmidos e gotas grandes de um líquido vermelho e expeço com um leve cheiro de ferrugem.

— Sangue? – Perguntou Bruno aos sussurros a si mesmo analisando o que estava em suas mãos.


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Notas finais do capítulo

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