Malditos Cromossomos escrita por Felipe Arruda


Capítulo 2
Estranhamente inteligente




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Nas duas semanas seguintes, Samuel e Bruno se encontraram clandestinamente na Biblioteca de Turismo Frederico Engel, para repassar todos os detalhes da vida de cada um, para que assim a troca pudesse ser feita sem nenhum problema.

A Biblioteca de Turismo Frederico Engel havia sido inaugurada em 27 de fevereiro de 1992 e prestava homenagem ao pioneiro Frederico Engel, proprietário do primeiro hotel de Foz do Iguaçu, denominado "Hotel Brasil". 

Aquele era o local perfeito para que os garotos pudessem se encontrar diariamente para combinar o plano mirabolante. A biblioteca estava sempre movimentada ainda mais naquele período de início de aulas nas escolas públicas. Samuel olhava para os alunos que de vez em quando apareciam por ali e dava graças a Deus por já ter terminado o ensino médio. O ensino médio havia sido um inferno prolongado em sua vida e finalmente ele estava liberto de tudo aquilo.

O plano de Bruno era simples: eles trocariam de lugar por um tempo e passariam a viver um como o outro. O objetivo era para ver se ambos conseguiriam descobrir algo sobre suas semelhanças.

— É loucura – disse Samuel no primeiro encontro na biblioteca. – Se nenhum de nós dois teve alguma resposta até hoje, porque um vivendo a vida do outro traria alguma resposta?

Bruno suspirou e pareceu incomodado com aquilo.

— Você vai ter que confiar em mim – disse Bruno. Samuel torceu o nariz para aquilo. – Acredite em mim, eu preciso fazer isso, talvez eu obtenha alguma resposta.

Samuel sabia que não adiantaria de nada insistir para que Bruno falasse os reais motivos dele querer tanto fazer essa troca, então simplesmente começou a concordar. Se o garoto tinha tanta certeza de que iria conseguir alguma resposta então ele deixaria a troca acontecer já que ele se ralava de ansiedade todas as noites antes de dormir pensando nessa semelhança insana dos dois.

Nos outros encontros ambos passaram a se encontrar naquela biblioteca umas três vezes por semana, cada um com um relatório de sua vida com relatos de seu passado e de lugares que conheciam, frequentavam etc.

Samuel estranhou que Bruno falava pouco sobre sua vida. Ele falava sobre a vida do EUA onde nada de muito interessante acontecia com ele e os anos em que estudou num internato na Suíça. Ele estava na cidade agora por conta dos negócios do pai, não tinha amigos e não conhecia ninguém. Seu passatempo era comprar em lojas caras e a frequentar sessões solitárias no cinema. Além do gosto por séries de TV adolescentes, Bruno gostava de livros, principalmente de coleções e ao que tudo indicava ele era extremamente fã de uma série chamada Crepúsculo qual Samuel nunca havia ouvido falar.

Já Samuel relatou sua convivência com a família, os negócios do pai em que era automaticamente incluso mesmo nunca querendo e falava da tortura que havia sido o colegial sem amigos, já que ele era extremamente tímido e tinha gostos considerados pelos de mais: estranho. Ele era fã de filmes de terror antigos e cópias em preto e branco, gostava de ouvir o bom e velho Rock N Roll e era péssimo em manter conversas por mais de cinco minutos, principalmente com uma garota.

Na semana seguinte ambos voltaram a se encontrar, Samuel justificando suas ausências na loja do pai falando sobre um curso gratuito sobre empregos profissionalizantes que a biblioteca estava oferecendo. É claro que se o pai dele tivesse investigado melhor essa história tudo o que ele iria encontrar era dois de seu filho.

Num dos últimos encontros, Samuel mostrou para Bruno a foto de sua família num celular simples que ele tinha.

— Meu pai se chama Adair – disse Samuel – Ele tem uma loja de pneus e acessórios de carro e eu trabalho nessa loja, nada que eu já não tenha lhe dito. – Bruno olhava atentamente a foto. – Ele acompanha leilões de carros online todas as noites e joga paciência no computador em seu tempo livre.

Bruno assentiu e Samuel passou para a próxima foto, agora o visor do celular mostrava uma mulher.

— Essa é a minha mãe e ela se chama Amélia. – Samuel notou que Bruno estava com os olhos fixos na mulher alta e magra que usava uma roupa simples e que tinha seus cabelos num tom vermelho puxado para os pretos soltos pelos ombros, com um semblante muito sério.

— Ela não é jovem de mais para ter um filho com dezoito anos de idade? – Perguntou Bruno.

Samuel riu.

— Pois é – disse o garoto – nem parece que ela tem quarenta anos de idade.

Os dois estavam sentados numa mesa de madeira redonda um pouco distante da mesa da bibliotecária. Quatro mesas à frente estavam um garoto alto usando óculos quadrados e uma menina gordinha que usava uma calça amarela, envolvidos em livros e cartolinas.

Samuel olhou para frente e encarou cinco prateleiras verdes repletas de livros. Elas ficavam na frente de enormes janelas de vidro que mostravam uma escadaria de concreto do lado de fora. Havia um homem usando um moletom cinza entre as prateleiras procurando por um livro, enquanto uma menina magrinha estava sentada num puff branco a uma sessão de distancia lendo um livro que parecia ser O Código da Vince de longe.

A bibliotecária caminhava pelo piso com o mosaico preto em branco carregando alguns livros no braço, enquanto um grupo de estudantes parava para olhar as fotografias na sessão de exposição sobre a construção da cidade.

No segundo andar da biblioteca havia mais prateleiras e um espaço reservado a pesquisas com mesas quadradas brancas portando duas cadeiras estofadas cada. Os quase gêmeos decidiram ficar no primeiro andar, escondidos entre as prateleiras para terem um pouco mais de privacidade quanto ao plano que desenvolviam.

— Essa é Silvana – disse Samuel por fim mostrando mais uma foto em seu celular. A foto mostrava uma menina sorridente de olhos verdes e cabelos claros. Ela tinha as bochechas rosadas e sorria – Minha mãe cuida dela toda tarde. Ela é filha da nossa vizinha... Uma garotinha normal... e estranhamente inteligente para quem só tem treze anos de idade.

Samuel mostrou em seguida fotos da loja de seu pai, explicando que a casa ficava em cima da loja e complementou explicando quem eram seus vizinhos e quais eram os comércios ao redor de sua casa. Além disso, explicou como chegar até o bairro onde ele morava que era no centro movimentado da cidade, o melhor lugar para ter um comércio.

Porém Bruno já foi mais pratico e mostrou uma única foto de seus pais em seu iPhone branco.

— Minha mãe e meu pai – disse ele com desdém. – Ele é empresário e ela é advogada e ambos não têm tempo para nada.

Samuel notou uma nota de irritação na voz de Bruno, mas preferiu não fazer nenhum comentário e fixou os olhos no homem e da mulher da foto.

— Meu pai se chama George e ele é americano, mas fala português muito bem não se preocupe. – Na foto, George usava uma roupa social engomada e sorria levemente. Ele tinha cabelos negros e um queixo quadrado. Seus olhos verdes eram brilhantes e a barba por fazer lhe dava um ar estranhamente sofisticado. – Minha mãe se chama Angelina, ela é brasileira e seu passatempo preferido e comprar joias caras e passar longos períodos em resort para tratar da pele. – Na foto, Angelina usava um vestido vermelho chique e tinha os cabelos loiros presos num coque.

Bruno desligou o celular e o colocou no bolso.

— Só isso? – Perguntou Samuel. – Não tem mais ninguém na sua vida que eu precise saber?

Bruno deu de ombros.

— Como eu já lhe disse, até alguns dias atrás eu morava nos Estados Unidos. – Ele fez uma pausa. – Eu ainda nem sei os nomes dos empregados que trabalham na minha casa.

Samuel sentiu um mau presságio naquele momento. Parando para pensar com sensatez por dois minutos, aquilo tudo era uma grande loucura.

— Relaxa – disse Bruno notando as dúvidas no rosto de seu sósia. – Está tudo certo e vai dar tudo certo. – Ele usava um tom de voz maduro e sério que fez Samuel acreditar no que ele falava.

 

♦♦♦

Quando o exato dia da troca chegou os dois foram até a biblioteca como sempre e discretamente caminharam em direção aos banheiros um de cada vez. Bruno estava usando suas habituais roupas caras, seguido por um boné de marca inglesa. Samuel, que usava um jeans gasto e rasgado no joelho e uma camiseta de banda dos anos 80, achou que ficaria ridículo dentro das roupas engomadas do seu sósia.

Do lado de dentro do banheiro, cada um entrou em uma cabine e ambos passaram as roupas por cima da divisória. Eles tiveram sorte de ninguém ter entrado no momento em que eles estavam se trocando se não eles certamente teriam que encontrar uma desculpa convincente. Mas ninguém entrou. Era como se o destino estivesse conspirando a favor dos dois.

Quando eles saíram das cabines, Samuel deu uma rápida olhada no espelho se sentindo um peixe fora d’água. Bruno parecia tão em conflito quanto ele.

— Você fica com o boné – disse Bruno entregando-o para Samuel. – O motorista vai te levar para um salão que eu achei na internet que faz o mesmo corte de cabelo que eu tenho.

Samuel olhou para o sósia notando pela primeira vez que o corte de cabelo dos dois era diferente. Ele pegou o boné e o colocou sobre a cabeça.

— Tem um motorista te esperando do outro lado da Rua num Voyage prata. – Disse Bruno. Ele entregou um celular, Nokia Lumia, amarelo para Samuel. – Tem o meu numero salvo aqui e eu tenho um aparelho idêntico a esse. – Samuel pegou o celular. – Me ligue se precisar de ajuda e eu farei o mesmo se eu precisar.

O garoto concordou com a cabeça e enfiou o celular no bolso.

— Bem – Disse Samuel se sentindo estranho dentro daquelas roupas de coxinha. – Tem um ônibus que passa a cada hora te esperando do outro lado da rua.

Bruno nem ligou para a provocação e após analisar o rosto no espelho ele disse, antes de sair triunfante do banheiro.

— Boa sorte amanhã no seu primeiro dia de aula. – Disse Bruno fechando a porta atrás de si.

— O que?! – Perguntou Samuel. O garoto saiu atrás de seu sósia irritado. Bruno não havia dito nada sobre escola novamente. – Como assim primeiro dia de aula?

Bruno parou impaciente em frente às grandes janelas de vidro.

— Eu tenho dezessete anos e estou no último ano do ensino médio. – Ele revirou os olhos e deu as costas para Samuel. – Amanhã cedo o motorista vai te levar ao colégio particular em que meu pai me matriculou. – Ele olhou para Samuel e sorriu. – Faça um bom trabalho. – Em seguida saiu rumo às portas da biblioteca e se jogou em baixo do sol escaldante das três horas da tarde.

♦♦♦

Bruno estava se sentindo extremamente imbecil sentado no banco daquele ônibus. Ao seu lado estava sentado um senhor de idade, careca e enrugado que olhava pela janela.

Havia uma diferença no visual de Bruno e Samuel. Ambos tinham o mesmo tom de cor no cabelo, um tom castanho, porém o corte era diferente. Samuel tinha o cabelo cheio e penteava-o para o lado quando estava muito grande o que o deixava parecido com o penteado que o Justin Bieber usava no começo da carreira. Já Bruno usava o famoso corte undercut: raspado do lado e espetado em cima.

A diferença no corte de cabelo seria explicada da seguinte forma: Bruno diria que depois do curso na biblioteca ele tinha resolvido cortar o cabelo. Claro que ele havia ido até a biblioteca fazer a troca com o seu sósia ao invés de cortar o cabelo, mas alguns detalhes precisavam ser apenas o que eram: detalhes.

O ônibus parou em frente a uma loja de roupas chamada Estilo 10. Na calçada havia uma placa que indicava a parada de ônibus. Bruno respirou profundamente e levantou do banco quando o ônibus parou com a voz de Samuel viva em sua cabeça: Quando você chegar a Avenida Jorge Schimmelpfeng, fique atento quando o ônibus parar em frente a uma loja chamada Estilo 10. E ai que você deve descer.

Agora Bruno estava parado em frente à loja se perguntando que tipo de pessoa comprava roupas naquele lugar.

— Jesus... – Sussurrou ele ao revirar os olhos. Bruno relembrou as instruções que Samuel havia dado a ele.

Quando parar na loja, desça e continue a andar para a direita até chegar a um prédio alaranjado. É uma loja de peças de carro e pneus chamada Alfa. É a loja do meu pai.

Bruno se pôs a andar com o olhar atento nas casas e nos comércios ao seu redor procurando pela tal loja de pneus Alfa.

Á passos lento e atento, Bruno foi seguindo pela calçada de blocos encardidos com inúmeras perguntas dentro de sua cabeça. A mais obvia de todas era: porque eles eram idênticos? Seriam gêmeos e a diferença de idade se daria por uma falha nos registro? Ele não sabia, mas estava obstinado a descobrir.

Samuel pareceu a princípio relutante com a ideia da troca, mas ele também queria respostas coerentes sobre aquilo. Bruno não havia lhe dado dados específico sobre sua família para Samuel porque queria que ele descobrisse sozinho e na prática. O jogo era sempre mais interessante quando o elemento surpresa estava ativo.

Mas Bruno ainda estava se prendendo na ideia de ambos serem irmãos gêmeos. Ele acreditava que saberia se isso fosse real se conhecesse Amélia, a mãe de Samuel. Ele havia lido em um livro uma vez que existe um laço indestrutível entre mãe e filho. Um laço cósmico e poderoso. Um laço que ele certamente não sentia com Angelina, sua suposta mãe.

Bruno parou em frente à loja alaranjada chamada Alfa e depois de respirar profundo entrou.

O plano era mais simples do que qualquer um podia imaginar. Bruno queria trocar de lugar e conhecer Amélia para sentir esse laço materno fraternal e indestrutível. Se ele sentisse esse elo com ela as coisas magicamente se esclareceriam. Mas era claro que Bruno estava constrangido de mais para explicar isso para o Samuel, já que ele tinha dificuldades em expressar seus sentimentos.

A loja era pequena. Havia um balcão de madeira cinza que separava a loja em dois ambientes. Na parte de trás do balcão havia prateleiras por todas as paredes com peças de carros de todos os tipos. Na parte da frente do balcão, exatamente onde Bruno estava, havia pilhas de pneus novos que faziam seu nariz arderem com o cheiro forte de borracha nova.

Atrás do balcão estava um homem usando um jeans gasto e uma camiseta preta com o logotipo Alfa, pequeno na parte superior do peito. Bruno o reconheceu das fotos, aquele era Adair o seu mais novo pai.

— Ei garoto – disse Adair sorrindo. – Gostei do cabelo.

Bruno sorriu aliviado e relaxou os ombros.

— Que bom – disse ele.

—Ah! – Disse Adair com um tom de voz grave e descontraído. – O filho do seu João vem amanhã de manhã. – Ele fez uma pausa e olhou para Bruno. – Ele vai te ajudar aqui na loja agora.

Bruno levou alguns segundos para processar aquela informação. Samuel havia dito algo sobre esse garoto que viria lhe ajudar na loja, mas ele não conseguia lembrar direito os motivos.

Antes de qualquer movimento que Bruno ousasse fazer, uma voz ecoou dentro da pequena loja de pneus.

—Nossa! – A voz era de uma mulher. – Cansei! – A mulher riu.

Bruno olhou em direção a porta e fixou os olhos numa mulher alta, usando um jeans azul e uma camiseta branca. Ele reconheceu aquela mulher das fotos: Amélia. Ao lado de Amélia estava uma menina magrinha e autoconfiante segurando uma sacola de supermercado.

— Mãe... – Sussurrou Bruno. Ele estava confuso.

Amélia sorriu de forma doce e delicada.

— Gostei do novo corte de cabelo. – Disse ela. – Você está parecendo mais moderno e jovem.

Bruno fixou os olhos naquela mulher esperando sentir algo em relação a ela. Ele esperou pelo laço materno, mas tudo o que ele sentiu foi um desconforto enorme por estar num lugar onde ele não tinha mais certeza se queria estar.

— Preciso ir ali ao lado – disse Amélia entregando as sacolas que segurava para Bruno. – Ajude a Silvana com as sacolas. – Dizendo isso saiu em direção à porta da frente de onde tinha acabado de entrar.

— Você na frente – disse Bruno segurando as sacolas com desconforto e olhando para a menina a sua frente. Ele não tinha a mínima ideia de onde deveria ir.

Silvana olhou desconfiada para Bruno e entrou por uma portinha lateral ao lado do balcão e passou por Adair que mexia num celular. Bruno seguiu Silvana em direção a uma escada que ficava escondida no interior da loja e que dava acesso a casa no segundo andar.

As sacolas pesadas nas mãos de Bruno estavam deixando marcas vermelhas e todo o seu plano estava se esfarelando rapidamente. Assim que bateu seus os olhos em Amélia ele esperava sentir aquela laço materno que pudesse comprovar seu parentesco com Samuel, mas ele não sentiu nada, nem mesmo um misero pingo de afeto. Amélia e Angelina exerciam os mesmos sentimentos nulos sobre ele.

— Isso não vai dar certo – disse Silvana enquanto subia as escadas. A menina parou e olhou para Bruno. – Mais cedo ou mais tarde eles vão descobrir que você não é o Samuel.

Bruno gelou ao ouvir aquilo. Alguns detalhes nem sempre eram simples detalhes. Principalmente uma garota estranhamente inteligente.


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Notas finais do capítulo

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