Malditos Cromossomos escrita por Felipe Arruda
Notas iniciais do capítulo
Mais um capítulo. Espero que gostem!
Caio estava dentro de uma casa noturna que não tinha uma boa fama na grande Cascavel. Ficava num lugar distante do centro e era propício para o uso de drogas e abusos de bebidas alcoólicas. Ele gostava daquele lugar porque era distante da sua realidade. Há dois meses a família de Caio havia se mudado da fazenda onde ele passou boa parte da vida para a cidade. Os pais de Caio acharam que seria mais fácil para o tratamento do câncer que começava a se manifestar.
O garoto tentou não pensar no câncer naquele momento e nem em todo o drama que aquela descoberta trouxe para a vida dele e de sua família. Caio andou até ao bar onde sentou num banco vazio e pediu para o bartender algo forte o suficiente para aquela noite virar um borrão.
Havia um grande movimento de pessoas indo de um lado para o outro com copos de bebidas nas mãos e cigarros acesos nos lábios. Não havia nenhuma banda programada para tocar naquela noite, mas havia um DJ com uma playlist de rock dos anos 90 bem depressiva o que combinava perfeitamente com o estado de espírito de Caio.
— Meu amigo acabou de dizer que ele está no estacionamento atrás de você. – A garota que dizia isso era alta, magra, tinha os cabelos negros curtos como um garoto e vários piercings na orelha e no rosto.
— Droga! – Disse à garota que falava com ela. Caio virou para olhar para a garota, mas ela estava de costas e tudo o que ele conseguia ver era o casaco de couro e a saia curta. – Ele vai contar pro meu pai se me pegar aqui...
Caio notou que a garota do cabelo curto estava o encarando com uma expressão não muito agradável. Ele sorriu, mas tudo o que ela faz foi fazer um aceno não muito discreto para a garota com quem conversava. Caio tentou disfarçar dando um gole na bebida em seu copo. Tocava Like a Stone nos autofalantes e ele gostava de mais daquela música.
A garota que estava de costas para ele finalmente virou e depois de quinze segundos com uma expressão de pânico no rosto, falou.
— Se você contar pro pai – disse ela – eu mato você.
Caio encarou aquela garota extremamente familiar. Ela tinha os olhos castanhos e a boca carnuda. Tinha um piercing no nariz e o cabelo preto era raspado de um lado. Por baixo da jaqueta de couro estava uma blusa do ACDC e varias correntes penduradas no pescoço. Ela era do tipo de garota que Caio estava acostumado a conviver e mesmo sabendo que eles não se conheciam, aquela sensação de já tê-la visto ficava a cada segundo maior.
— Vamos pra casa antes que você comece a fazer um escândalo – disse ela agarrando Caio pelo braço e seguindo em direção à saída da boate. Caio tentou falar com aquela garota, mas não conseguia. Ele a seguiu para fora da boate tomando o cuidado de não esbarrar em ninguém ou em derrubar seu copo.
A noite do lado de fora da boate era abafada. Perto da entrada havia uma rodinha com uns cinco adolescentes dividindo um baseado. Ninguém parecia preocupado com eles. Caio jogou o copo num canto da calçada e se soltou do braço daquela garota.
A fachada da boate era um tanto decadente e ficava num prédio velho. As casas ao redor estavam abandonadas e serviam perfeitamente como ponto de venda de drogas. Era ali que Caio comprava suas drogas. Na esquina do outro lado da rua estavam duas garotas com roupas curtíssimas e justas em busca de um cara disposto a pagar por um sexo rápido no banco de trás de um carro qualquer.
— Ei – disse ele. A garota virou e o encarou. Ela usava uma meia-calça rasgada e uma bota preta. – Eu não sei o que está acontecendo, mas acho que você está me confundindo com outra pessoa.
A garota soltou um suspiro impaciente e estava prestes a falar algo com ele quando parou para encará-lo. Ela ficou o encarando por alguns segundos e o silêncio que se formou foi completamente constrangedor. Alguém da rodinha do baseado começou a rir sobre algo que acontecia do outro lado da rua, mas Caio estava tão concentrado naquela garota que nem deu importância.
— Quem é você? – Disse ela se dando conta de algo que não pareceu fazer sentido para Caio. – Isso é algum tipo de brincadeira? – Ela começou a olhar ao redor em busca de alguém. – Foi o Rafael que te mandou aqui?
Caio não tinha ideia de quem era Rafael ou aquela garota. Ela voltou a encará-lo. Dessa vez uma expressão de confusão invadiu seu rosto. Ela então olhou para as roupas de Caio, o cabelo comprido e encarou as várias tatuagens que ele tinha no braço.
— Isso é... – ela não conseguia falar direito. De repente, a garota ficou pálida e estática como se tivesse acabado de ver um fantasma. – Você... você é idêntico a ele...
Caio engoliu a saliva da boca sem entender o que estava acontecendo. Por um momento ele achou que ela podia estar se referindo a Demétrio, mas como ela podia conhecê-lo? Caio sabia que Demetrio havia tido uma vida de assaltos e pequenos crimes antes de encontrá-lo, mas ele já estava fora daquela vida há um tempo.
— Acho que você se confundiu – disse Caio. Ele parou para olhar para a garota pensando que provavelmente ela estaria sobre efeito de alguma coisa. Ele só estava sóbrio porque aquela garota havia o tirado de dentro da boate antes dele encontrar alguém vendendo qualquer coisa que pudesse fazer seu cérebro fritar. – Acho melhor eu ir...
— Não... – disse ela. – Eu nunca me confundiria... você é idêntico ao meu irmão... Rafael, meu irmão gêmeo.
♦♦♦
Caio estava sentado no banco de trás de um carro com banco de couro. O ambiente cheirava a um perfume forte que Caio interpretou vir do motorista e era justamente o motorista que o encarava pelo retrovisor. Rafael, o irmão da Rebeca. Um garoto idêntico a ele.
Havia um silêncio constrangedor dentro do carro que era quebrado por uma música da Kesha que tocava no rádio do carro sintonizado numa estação qualquer.
— Você só entra em roubada, não é Rebeca? – disse Rafael olhando para a irmã gêmea sentada no banco do carona.
Rafael tinha o mesmo rosto de Caio, mas eram bem diferentes fisicamente. Rafael era malhado e tinha um corpo bem definido. Ele era, sem dúvida alguma, um daqueles garotos que passava duas horas malhando pesado na academia. Os cabelos eram raspados e ele tinha uma pequena cicatriz no canto esquerdo da testa, mas não era nada comparado a que Demétrio tinha no rosto.
Pensar em Demétrio deixava tudo ainda mais complicado. Caio não conseguia manter um raciocínio lógico que pudesse conectar os quatro. Rafael e Rebeca eram gêmeos e ele achava que era o irmão gêmeo de Demetrio, mas se eles dois também eram idênticos a Rafael, como todos seriam irmãos? As coisas certamente seriam mais fáceis se seu pai falasse sobre suas origens, mas ele continuava num jogo estúpido de ignorar qualquer pergunta relacionada aquilo.
O carro seguiu por uma avenida próxima a uma praça bastante popular da cidade. Mais a frente havia um posto de gasolina e um ponto de táxi.
— Você pode parar aqui – disse Caio apontando para o estacionamento no posto de gasolina. Ele olhou para um taxi parado do outro lado da rua. – A gente não pode seguir com o seu carro. – Ele então saiu do carro e escutou Rafael reclamar algo com Rebeca.
— Esse cara pode ser um maluco – sussurrou ele nervoso. – Onde ele está querendo levar a gente?
Rebeca fechou a porta do carro com raiva e andou até Caio que seguia em direção ao táxi.
A noite estava quente e a avenida agitada. Caio tinha a sensação de que um desastre estava prestes a acontecer, mas decidiu manter suas sensações para si, já que Rafael parecia nervosinho de mais.
— Ele é idêntico a você seu idiota! – Disse Rebeca com raiva. – E nós somos gêmeos! Então se você não está nem um pouco curioso para entender o que isso significa, o problema é seu!
Rafael bufou e se deu por vencido. Ele e Rebeca eram gêmeos, mas completamente diferente um do outro. Rebeca tinha aquele estilo rebelde, o cabelo raspado de um lado, as unhas pintadas de preto e o piercing no nariz, enquanto Rafael tinha um corpo todo malhado e usava roupas caras e engomadas.
O filho exemplar e a ovelha negra da família— pensou Caio de repente como se aquilo soasse familiar de mais.
Os três entraram no taxi e sentaram no banco de trás. Caio que ficou separado de Rafael por Rebeca que sentou ao meio deles, deu as coordenadas para o motorista que não pareceu muito feliz com o percurso que teria que fazer naquela hora da noite.
— Eu pago o dobro – disse Caio. O motorista não pareceu muito feliz, mas fez a corrida do mesmo jeito.
O taxi deixou Caio e os gêmeos a duas quadras de distancia de onde ele pretendia ir. Ele conhecia bem as regras para poder estar ali e mesmo odiando o fato de ter que andar por ruas cheias de becos escuros e pessoas bem mal encaradas, ainda mais com Rafael reclamando de tudo a cada segundo, ele sabia que tinha que mostrá-los a Demétrio.
— Eu não acredito que a gente vai andar a pé! – Protestou Rafael. Ele olhava para a rua na espera de algo ruim. Os três estavam atrás de uma fabrica de tecido há duas quadras do prédio abandonado onde ficava o trailer do Demétrio. – Não foi desse lado da cidade que a polícia fez uma operação para pacificar ou tentar diminuir a violência? – Nenhum dos dois respondeu. – Meu Deus! – Choramingou Rafael colocando as duas mãos sobre o rosto – eu não acredito que eu vim até aqui para morrer...
Caio revirou os olhos.
— Cala a boca – disse Rebeca acendendo um cigarro. Ela passou um para Caio que aceitou. – Fique grato se eu não acabar te matando primeiro.
Rafael ficou possesso com a cena da irmã acendendo e fumando um cigarro.
– Eu não acredito nisso! – Gritou ele. – O nosso avô é médico! Como é que você tem a coragem de colocar esse negócio na boca?!
Caio soprou a fumaça para o alto e olhou para Rafael.
— Se você continuar gritando desse jeito – disse ele – logo alguém vai aparecer. E acredite em mim quando digo que o pessoal que frequenta essa parte da cidade não é do tipo mais amistoso.
Rafael se aproximou de Caio com velocidade e o agarrou pelo colarinho o jogando contra uma parede de tijolos sem reboco com uma mistura louca de fúria nos olhos.
— Eu não dou a bunda suada de um macaco peludo pra o que você acredita! – Disse ele com raiva. Ele empurrou as costas de Caio contra a parede com força. – Eu só quero saber quem é você! Porque nós somos idênticos e que droga nós estamos fazendo aqui?! – Rebeca puxou o irmão que soltou Caio. – Então é melhor você ter as respostas que eu quero ou a coisa vai ficar bem séria pro seu lado.
Caio arrumou a camiseta e ajeitou as costas. Aquela pancada certamente deixaria algo roxo nele.
— Você vai querer ver o que eu tenho para mostrar – disse Caio tragando o cigarro mais uma vez.
Depois de se dar por vencido mais uma vez, os três continuaram a andar por duas quadras até chegarem aos fundos do prédio abandonado onde o trailer, que Caio conhecia perfeitamente, estava.
— Um trailer velho... – Reclamou Rafael – claro. Porque eu não pensei nisso.
Caio bateu na porta de lata três vezes e esperou meio minuto para dizer: – Prata é a minha cor preferida.
Caio escutou uma rápida movimentação do lado de dento do trailer e em seguida alguém falou.
— À uma hora dessas? – Perguntou a voz de Demétrio do lado de dentro do trailer – você nunca vem a essa hora... – ele parecia sonolento – Veio a pé?
Rafael e Rebeca se entreolharam.
— Essa voz é um tanto familiar, você não acha? – sussurrou ela para o irmão.
— Sim – respondeu Caio impaciente – Olha Dan, é muito importante se não eu não estaria aqui à uma hora dessas... Tem algo que eu quero te mostrar.
Tudo se fez silencio por meio minuto até que Demétrio respondeu do outro lado da porta.
— Você não veio sozinho, não é mesmo? – Perguntou ele.
— Não. – respondeu Caio. – Dan, você precisa deixar a gente entrar. Eu encontrei algo que pode estar ligado a nossa história.
Um breve momento de silêncio até que a porta se abriu depois de um clique. Caio encarou os olhos do seu sósia.
— Dan, esses são Rafael e Rebeca – ele olhou para os gêmeos e em seguida para Demétrio – Rafael, Rebeca... este é o Demétrio... o meu irmão gêmeo.
Rafael abriu a boca para falar algo, mas nada saiu de sua garganta. Rebeca também estava pálida e sem reação. Caio encarou Demétrio que também estava um pouco assustado com aquela situação.
– E então Demétrio – disse Caio – até quando a gente vai ter que ficar parado aqui do lado de fora?
♦♦♦
Rafael e Rebeca estavam sentados no pequeno sofá velho do trailer enquanto Demétrio e Caio sentavam nas pequenas cadeiras ao lado da mesa de madeira velha e quebrada. O trailer estava tão abafado que Rebeca resolveu tirar a jaqueta de couro. A blusa do ACDC era regata e uma cruz tatuada no braço apareceu.
— Sério? – disse Rafael encarando a tatuagem no braço da irmã. – Uma tatuagem Rebeca? É sério isso?
Rebeca ignorou o chilique do irmão e olhou para os dois garotos sentados a sua frente.
— Eu não entendo – disse ela. – Como nós quatro podemos ser idênticos? – Ninguém tinha as respostas. – Como vocês se conheceram? – Perguntou ela.
Caio olhou para Demétrio e riu.
— Eu tentei assaltar ele – disse Demétrio – mas não consegui porque fiquei muito espantado quando vi o rosto dele. – Ele olhou para o sósia. – Eu teria o mesmo rosto se não fosse à cicatriz... – ele tocou de soslaio na própria cicatriz.
Rafael arqueou uma das sobrancelhas.
— Você tentou assaltar ele? – Perguntou o garoto claramente incomodado com aquilo. – Claro... isso não podia ficar melhor – murmurou.
Demétrio não deu muita atenção para o comentário de Rafael.
— Eu assaltava várias pessoas – disse ele normalmente. – Era assim que eu sobrevivia quando morava na rua.
Caio riu.
— Claro – disse Rafael rabugento – porque morar aqui – ele deu uma rápida olhada para o trailer – é melhor do que morar na rua... – Rebeca fuzilou o irmão com um olhar que decidiu ficar quieto.
— Eu tinha acabado de descobrir sobre o câncer e sobre a minha família quando Demétrio tentou me assaltar – disse Caio mudando de assunto.
Rebeca tentou se ajeitar no pequeno sofá e encarou Caio seriamente.
— Câncer? – Perguntou ela. – Você tem câncer?
Caio fez que sim com a cabeça.
– Eu tenho câncer nos pulmões – disse ele – mas está num estágio inicial. O médico disse que meus pulmões são velhos, apesar de eu só ter dezoito anos.
Os gêmeos pareciam refletir sobre aquilo.
— Como assim velhos? – Perguntou Rafael. Ele era grande de mais para o pequeno sofá e ficava a todo instante se mexendo na tentativa de encontrar uma posição confortável.
– O médico disse que podia ser uma anomalia genética causada por algum dano na minha formação de DNA. – Respondeu Caio – Em todo caso, ele disse que era genético, rápido e fatal. Uma característica assim só podia ser herança genética o que acabou colocando meus pais numa posição difícil.
— Genética... – disse Rebeca como se parasse um momento para refletir sobre aquela palavra.
— Quando eles foram indagados por essa deficiência em meus pulmões os dois ficaram bastante surpresos porque ninguém na família já tinha tido algo parecido com aquilo. – Continuou Caio. – Foi então que eles se perderam nas próprias mentiras e resolveram dizer a verdade sobre mim... sou adotado.
Os gêmeos se entreolharam.
— Eu então quis saber a verdade sobre mim, minha família e minha história, mas os dois se recusaram a falar algo – Caio riu – então eu fui bem maduro e disse que só iria iniciar o tratamento quando soubesse algo sobre o meu passado e até agora não tive reposta alguma.
Rafael o encarava seriamente.
– Não esperaria menos de alguém com a aparência como a sua... – disse ele. Rebeca deu uma cotovelada no irmão e o mandou calar a boca.
— Eu conheci Demétrio naquele dia. – Continuou Caio com a história. – Eu saí com tanta raiva da minha casa naquela tarde, porque ninguém me contava absolutamente nada, e decidi comprar alguma coisa para usar.
— Como assim comprar alguma coisa para usa? – perguntou Rafael. – Tipo um casaco ou coisa do tipo?
— Drogas – disse rebeca. O garoto simplesmente fez um gesto com a mão como se desistisse de tentar entender a personalidade de Caio.
— Foi então que eu fui abordado por Demétrio que tentou me assaltar, mas não conseguiu quando viu meu rosto – disse Caio. – Foi então que eu sabia que deveria saber mais da minha história porque eu tinha acabado de descobrir um irmão gêmeo perdido que também não sabia nada sobre suas origens.
— Eu fugi de um orfanato de Curitiba – disse Demetrio – fui morando na rua e indo de um lugar para o outro até chegar aqui em cascavel. – Ele olhou para os gêmeos um pouco confuso. – Tem certeza que vocês são irmãos gêmeos?
Rafael achou a pergunta um tanto burra.
— É claro que sim – disse ele arrogante. – Nós temos as fotos da minha mãe grávida, um vídeo do meu pai quase morrendo do coração no nosso parto e toda a papelada da inseminação...
— Espera – disse Caio – como assim inseminação?
— Nossa mãe não conseguia engravidar – disse Rebeca – então participou de uma inseminação artificial na clinica onde meu avô trabalhava. A Progênese.
Caio sentiu o ar faltar em seus pulmões.
— A mesma clínica que eu nasci – disse ele. Caio olhou para Demétrio – fica em Curitiba, não é?
— Na cidade onde eu nasci... – disse Demétrio – cidade onde eu vivi por quinze anos...
Todos se entreolharam.
— O que isso significa? – perguntou Rafael.
— Que de algum modo – disse Rebeca pensativa – estamos todos conectados.
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