Imagens do Inconsciente escrita por Marcela Melo


Capítulo 20
Capítulo 20


Notas iniciais do capítulo

Este capítulo ficou bem grande, não era minha intenção escrever tanto, mas precisava dar um desfecho nessa parte.



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— A senhorita Samantha está dormindo em seu quarto, mas o menino Leonardo não se encontra em casa, senhora. — A voz de Lurdes era aflita e tensa, um pouco mais alta que o normal.

— Onde se meteu esse moleque a essa hora da manhã? Júlio ficará irritado com essa ausência. Ele já saiu?

— Sim senhora. Assim que ligaram ele saiu apressado sem ao menos fazer o desjejum.

— Entendo. Assim que Leonardo chegar, peça a ele que me ligue. Vou me encontrar com Júlio no hospital. Também informe a senhorita Letícia que o Sr. Carrara não irá ao escritório pela manhã.

— Tudo bem, senhora. Devo comunicar a senhorita Samantha?

— Não é necessário.

Samantha ouvia a conversa, mas não assimilava os fatos, estava fatigada e sonolenta a ponto de não se interessar pelo que a tia e dona Lurdes falavam. Virou-se na cama e voltou a dormir quase que imediatamente.

Quando Samantha acordou já era quase noite. Seu corpo doía por completo. Tomou um banho e desceu para comer alguma coisa, pois sentia-se muito faminta. A casa estava deserta. Enquanto se alimentava, Sam tentava se lembrar do que acontecera na noite anterior, depois de certo tempo, não se lembrava de mais nada. Inclusive, não fazia ideia de como chegara em seu quarto e porque suas roupas estavam jogadas no chão. Mas se lembrava de tudo até o momento que entrara na piscina. Sentiu seu rosto enrubescer e saiu para o jardim, ainda molhado, da chuva que cessou há pouco.

Sempre que andava por aquele jardim, as lembranças feriam sua alma. Podia sentir o calor do dia, o ar abafado de cigarro, maconha e bebida, as vozes, uma a uma urrando em sua mente, o cheiro de seu algoz. Tudo se misturava com o gosto de suas próprias lágrimas na boca e fazia com que Samantha revivesse cada segundo de sua tortura. Nessas horas o ódio crescia dentro de si, um ensejo por vingança que ela desconhecia. Ela não queria justiça.

O telefone tocava incessante na cozinha e Lurdes não apareceu para atendê-lo. "Onde estão todos?" Samantha se perguntava tentando se lembrar de algo importante. Atendeu o telefone atônita, já que o mesmo a distraía.

— Alô!

— Samantha? É você? É claro que é! Sabe como foi difícil encontrar um jeito para falar com você? Precisei mover meio mundo para descobrir esse número. Já que e-mail, celular, Facebook... nada mais existe pra você, não é?

Samantha ainda estava assustada, reconheceu a voz da amiga imediatamente, mas fora pega totalmente de surpresa.

— Desculpe Amanda. Aconteceram algumas coisas e...

— Sei, sei! Fazem quase dois meses, Sam. Pensei que você fosse minha amiga.

— Você não entende, tá legal. Eu não quero falar com ninguém. Não tem nada a ver com você, mas ainda não...

— Até sua voz é diferente. Pensei que confiasse em mim e que, independentemente do que enfrentássemos, estaríamos sempre juntas. Esse era o trato, lembra? Você não precisa passar por isso sozinha. Mas não vou insistir com você também. Quando quiser, sabe onde me encontrar.

Amanda desligou. Se havia algo que não aceitava era ser esnobada, e só queria deixar bem claro para Samantha que a amizade delas estava abalada.

A ligação de Amanda fez com que Sam se sentisse deprimida. Tinha pouquíssimos amigos e estava fazendo de tudo para perdê-los. Ligou o notebook e começou a ler os inúmeros e-mails de Amanda. Alguns de Luana e uns poucos dos colegas que fizera nos museus. Basicamente, todos os e-mails eram perguntando por ela. Porque ela havia sumido e não respondia mais a nenhum chamado. Perguntando se tudo estava bem ou se ela queria sair para conversar.

Samantha ficou algum tempo pensando. Será que se afastara tanto assim nesses dois últimos meses? Estava tão diferente a ponto de levantar suspeitas. Os e-mails dos colegas indicavam que sim, mas a única mudança que sentia era em seu próprio corpo. Releu mais algumas vezes cada um dos e-mails que recebera, decidindo a melhor forma de responder a cada um deles. Por vezes, sentia uma angústia profunda em sua alma, se perguntando porque as coisas não poderiam, simplesmente, ter corrido bem. Queria alguém a quem culpar, alguém além de Karen, Rafael, Leonardo e os outros. Na maioria da vezes culpava seus próprios pais. Acreditava que a maior culpa de tudo o que vinha passando era porque eles sempre a abandonara. Nunca quiseram saber o que lhe passava e simplesmente a despachara para a casa dos seus tios, sem quaisquer remorsos.

Por mais que o tio Júlio e tia Martha fossem o exemplo de pais que Samantha sempre idealizara, ela sabia que eles não eram seus pais. Samantha não tinha intimidade suficiente para expor-lhes sobre sua vida, não que tivesse com sua própria mãe, mas mesmo sendo acolhida pelos tios, ela se sentia rejeitada e sozinha. Principalmente depois de tudo o que lhe ocorrera, como poderia chegar para seu tio e dizer "seu irmão me violentou"? Mas sentia-se infinitamente só por não ter alguém que fosse tomar seu partido. Por vezes pensara em conversar com sua tia, principalmente sobre assuntos de mulheres em que não possuía nenhuma experiência, mas Martha era muito ocupada, Sam não ousaria incomodá-la.

Voltou a chover lá fora e Samantha olhava os pingos grossos de chuva pela janela. O computador sobre a mesa estava aberto na página de e-mails que tentaria responder, mas o silêncio absoluto a distraia. Tentava escrever uma coisa ou outra, mas não saia nada que lhe agradasse, até que desistiu e entrou, com sua conta fake, no Facebook, querendo ver o que cada um dos seus martírios, estavam fazendo.

O perfil de Rafael recebia os mais diversos comentários. Todos saudando, desejando força, paz e etc... Samantha não sabia ao certo o que acontecera, mas algo não estava certo. Leu, por alguns minutos, cada um dos comentários até entender que ele estava, ao que parecia, em estado grave, no hospital, mas porquê?

Convencida que logo saberia tudo o que havia ocorrido, Samantha voltou a analisar um por um dos garotos. Havia dois que fizera check-in perto da sua casa, no Leme. Iam desfrutar do mal tempo para pegar ondas. Chovia, mas ainda estava claro e, como uma sede instantânea, Samantha decidiu sair também.

Levou cerca de quarenta minutos para chegar até à praia. Estava vazia, a não ser por algumas poucas pessoas que se intitulavam de surfistas. Samantha vestia uma blusa de cetim, verde, e uma calça jeans, justa. Estava aprendendo a escolher roupas que lhe deixavam confortável e lhe permitia movimento, mesmo sob a chuva torrencial de fim de janeiro. Seus cabelos presos em um rabo de cavalo, estavam molhados e a penumbra do crepúsculo irradiava seus olhos azuis. Tirou as sapatilhas - que também estavam encharcadas - e caminhou pela praia, mal sentindo a maresia que se escondia no salseiro.

Igor e Felipe eram seus alvos. Por suas pesquisas, Samantha soube que eram primos, tinham quase a mesma idade, sendo Igor uns dois anos, no máximo, mais velho. Beiravam aos dezessete anos. Felipe tinha uma pele clara e olhos vorazes, pretos como um carvão. Seus pais eram divorciados e, para suprir a ausência, o pai lhe dava tudo o que queria (e o que Igor queria também). Isso, com certeza, não fez dele um bom garoto. Com poucos amigos e envolvido com pessoas de má índole, Felipe fazia questão de parecer um bandido mirim, excluindo, é claro, o físico raquítico que nem várias doses de anabolizantes misturados à horas de treinos na academia, conseguiram disfarçar. Mas era só pagar uma rodada de bebida que os amigos apareciam.

Igor era como um guarda-costas de Felipe. Vivia no morro, sua mãe era irmã da mãe de Felipe, ambas fruto da favela do Flamengo. Crescera nas ruas e com poucos recursos. Enquanto pode, sua mãe se esforçou para mantê-lo longe das drogas e de traficantes, mas a vida lhe roubara a lucidez e ela fora parar em um internato para pessoas com instabilidade mental. Igor tem duas irmãs que desde cedo já caíra na vida, para desgosto de sua mãe e ele teve que se virar sozinho, como pôde, desde os treze anos.

A história quase comoveu Samantha, até ela se lembrar que a culpa de tudo isso não era dela, ela não poderia ter sido punida por eles não ter feito suas preces aos deuses certos. Enquanto olhava Igor, imponente com um corpo esculpido e de um tom de chocolate quente, Sam se perguntou o que fazia ali, no meio de pessoas que não lhe agradava. Em outra ocasião, se não fosse por sua timidez, até gostaria de conhecer a diversidade de cada um deles, mas agora, tudo o que vinha em sua mente, eram as cenas de Igor e Felipe tocando seu corpo e lhe falando obscenidades, sem sua permissão. Fora Igor quem amarrara sua boca, fora Felipe quem tirara a mordaça, obrigando-a, em meio a puxões de cabelo e socos, chupar seu pênis. Samantha reprimiu uma lágrima e caminhou para perto dos garotos.

— Quem é essa loirinha linda que está em nosso meio? — Um rapaz se aproximava dela sorridente, já tirando onda de pegador.

— Desculpe, não quero incomodar, eu não sou daqui e me perdi dos meus amigos. Eles pediram para que eu os encontrasse próximo a entrada para o metrô, do Leme. Estou na direção certa? — Samantha se esforçava para não impor tanto seu sotaque.

— Está sim, doçura. O metrô é logo ali na frente. Se pudesse lhe acompanhava, mas tenho uma onda para pegar agora.

— Tudo bem, não se preocupe. Acho que não poderia me perder novamente, não é? — Samantha lançou um sorriso para Felipe. Não sabia o que estava fazendo.

— Eu levo você, gata. Será que já não conheço esses olhos azuis? Eles dariam uma boa grana no mercado negro.

Todos riram, Samantha teve medo.

— Acho que me lembraria se te conhecesse. Não precisa se incomodar, eu agradeço.

— Eu faço questão. As ruas estão desertas por causa desse aguaceiro, melhor ter companhia. E depois, não precisa ter medo de mim. Sou uma criança inofensiva.

— É claro que é. Tudo bem então, se faz tanta questão, aceito sua companhia.

Caminharam alguns metros em silêncio, Samantha estava nervosa, tinha planejado tudo, mas agora lhe faltava forças. Queria chocar esse garoto de alguma forma, queria fazê-lo sofrer. É claro que o estudara o suficiente para saber suas fraquezas, incertezas e medos. Lera o suficiente sobre como usar os pensamentos de uma pessoa - um paciente, talvez - contra, ou a favor de uma ideia, mas, na prática, todo conhecimento escapara de suas mãos.

— Como vai seu pai, Felipe? Você tem irmãos da nova família dele, não é mesmo? — Felipe não se dera conta que ele não lhe falara seu nome. — Nesses dias de chuva a ausência de um pai é melancólico. Eu sei como é...

— Eu não ligo para essa besteira de pai, desde que o meu continue pagando minhas contas.

— Claro que não. Você já é bem crescidinho para isso. Eu quis dizer que deve ser chato ter que dividir tudo com irmãos que você não gosta, com uma família intrusa. Seu pai poderia lhe dar muito mais se não fosse por aqueles pirralhos. E as viagens, sempre caras... ah, odeio meu pai por isso, por gastar menos que deveria comigo.

— Como sabe de tudo isso? Quem é você afinal?

— Não estou aqui por acaso. Temos um amigo em comum e desde que te vi me interessei por você. Parece ser tão bom... mas nunca tive a chance de me aproximar de ti, estas sempre rodeado de garotas e amigos.

— Não lembro de ter lhe visto, mas é muito linda, então está valendo o esforço.

Samantha caminhava rumo ao mar e Felipe a acompanhava. Ao longe, podia ver os amigos dele, que agora, achavam que as ondas estavam um pouco mais agitadas que o normal. A chuva diminuíra, mas os ventos uivavam insolentes.

— O mar não está para brincadeira. Melhor que Igor não invente de se exibir. — Felipe constatou, mais para si mesmo.

— Acho o mar violento convidativo. Como se as ondas pudessem arrancar quaisquer lembranças do passado que encravara no peito. As vezes tenho vontade de mergulhar nessas ondas e ver até onde elas podem me levar.

— Você é louca! Linda, mas louca... venha aqui, não lhe acompanhei para conversar, podemos ir até a boia de sustentação e ter uma transa gostosa, seria divertido. — Felipe sorria sarcástico enquanto Samantha se lembrava do real motivo de estar ali. O sorriso dele arrancou o dela, não acreditava em como ousara lhe tocar. O ódio crescia como um veneno impregnado em suas veias, quase impossível de se conter, como uma explosão de euforia e angústia cravando uma guerra dentro do peito.

— Tudo bem. Parece exótico. Vamos, antes que volte a chover.

A boia estava há uns vinte metros da praia, mar adentro, e só estava visível porque flutuava sobre as ondas inquietas. Havia uma corda que a ligava ao farol, indicando os lugares em que as embarcações poderiam atracar, Felipe e Samantha utilizaram a corda para se segurarem até chegar ao local de destino. Fazia frio, Felipe logo tentou agarrar Samantha que se jogou imediatamente no mar, enquanto fingia que subia pela corda, ela desfez o nó, deixando apenas um laço frouxo que ligava a praia àquele lugar. Era difícil se equilibrar, ambos perceberam que fora um erro ter ido até ali.

— Vamos embora! Não sei o que estamos fazendo aqui, está perigoso, frio e escuro. Vamos logo.

— Você não vai a lugar algum, Felipe.

— Olha, menina, isso está passando dos limites, ok. Não me faça bater em você porque eu seria bem capaz disso.

— Eu sei bem do que você é capaz! Eu estava lá, lembra? Na casa do Leonardo. Eu senti o peso de sua mão, o gosto do seu corpo e de outros onze me usando como um objeto. Eu sei, Felipe, exatamente quem é você. Seu erro foi não saber quem sou eu.

Antes que Samantha sentisse Felipe perto dela, ela se jogou na água, se puxando o mais rápido que pode pela corda. Ouviu o garoto sussurrar algumas palavras, mas enquanto ele não percebia que ela estava fugindo, teria uma vantagem. Estava exausta, com muito frio e quase à beira de uma desidratação, por beber tanta água do mar. Chegou à praia e deitou-se na areia, observando o movimento da boia onde Felipe estava, via apenas um pequeno ponto tomado pela escuridão, pelas ondas do mar e pela chuva que voltara a cair sobre o Rio de Janeiro.


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