Imagens do Inconsciente escrita por Marcela Melo


Capítulo 16
Capítulo 16




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Passaram-se alguns dias e Samantha só saia do quarto à noite, quando todos já haviam dormido, para comer alguma coisa. Era notável sua perda de peso, seu rosto estava fino, com olheiras profundas que contratavam com seus olhos azuis, agora sombrios. O inchaço ao redor de sua boca havia diminuído, mas seus pulsos ainda estavam roxos e com marcas das cordas que a prendera. Sempre que olhava aquelas marcas, Samantha sentia seu sangue ardendo em suas veias.

Para não preocupar a senhora Lurdes, Samantha havia lhe deixado um bilhete, dizendo que estava se alimentando e estava bem, mas “precisava” ficar um tempo sozinha. Por duas vezes, Lurdes havia chamado por ela no quarto, mas não obtivera resposta alguma e, embora essa fosse a menor das preocupações de Samantha, ela era educada de mais para descontar sua infelicidade em uma senhora tão gentil.

Além de Lurdes, Leonardo também tentara entrar em contato com Samantha, sem sucesso. Ela não queria falar com ninguém, fazia quase uma semana que não ouvia a própria voz e, quando não estava deitada em sua cama, se afogando em seus pensamentos, estava sob o chuveiro, tentando tirar com agua e sabão as marcas internas e as lembranças de tudo que acontecera. Isso não funcionava.

Samantha sabia que iria precisar sair do quarto. Sabia que precisaria retomar sua vida, mas ela não se sentia preparada, nem segura, para isso. Por vários momentos o desespero tomava conta de sua vida, havia feito planos, pensava em ir para a faculdade, queria mudar o mundo, mas de repente nada disso importava. Sua culpa e sua frustração eram dominantes e consumia sua vontade de viver.

Era mais de meia noite quando Samantha resolveu ir comer alguma coisa, em uma sexta feira. Desceu as escadas no escuro tateando o corrimão e foi até à cozinha sem ascender quaisquer das luzes, queria ficar no escuro. Preparou um pouco de leite e sentou-se ao chão, sentindo o frescor e o silêncio da noite. Não ouviu quando Leonardo desceu, minutos depois e ascendeu a luz da cozinha.

— Desligue essa luz! — Samantha gritou fazendo com que Leonardo se assustasse.

— O que você está fazendo aí no escuro, sua maluca. — Com o susto Leonardo apagou as luzes novamente, permanecendo estático junto à porta.

— Já estou indo, assim poderá ficar à vontade. — Samantha se levantou e passou por Leonardo, no escuro.

— Calma Sam! O que está acontecendo? Eu posso te ajudar?

— Não pode! Me deixe em paz. — A voz de Samantha saiu mais grave do que pretendera, carregada de rancor e de uma angustia que Leonardo não entendeu.

Samantha subiu as escadas em passos largos, trancou a porta do seu quarto e começou a chorar. Sentia que não voltaria mais a ser a mesma pessoa e que talvez a melhor alternativa fosse voltar para Alemanha. Porém, conflitando com suas convicções, ela teve vontade de conversar com Leonardo, contar para ele tudo o que ocorrera na festa e que seu tio, Rafael, teria sido o principal responsável por toda sua vergonha. Mas afastou esses pensamentos, não poderia contar com Leonardo, ele não estava lá para protege-la quando ela precisou, aliás, ele diria que isso não era da conta dele. Samantha o odiou por ter dado aquela festa, por não estar lá, e odiou mais a si mesmo por estar pensando nele.

— Samantha! Por favor, vamos conversar — Leonardo batia na porta insistentemente, mas ela preferiu ignorar.

Depois de alguns minutos, que Samantha não soube identificar, Leonardo foi embora e parou de chamar. Ela preferiu assim, não queria conversar com ninguém sobre quaisquer assuntos e, principalmente sobre o que lhe ocorrera.

***

Leonardo não sabia mais o que fazer. Havia quase duas semanas desde o episódio que encontrou Samantha na cozinha, com as luzes apagadas. Seus pais chegariam na manhã seguinte e ele sabia que haveria perguntas cujo não poderia responder.

Tanto Lurdes quando o senhor Geraldo também estavam preocupados, mas não tentaram conversar com Samantha, em respeito à sua vontade de não ter contato com ninguém. Porém era notável que ela não estava bem.

Samantha, por sua vez, ficava o dia todo em seu quarto. Na maioria das vezes fazendo pesquisas na internet sobre assuntos que, até pouco tempo atrás, acharia assustadores. Ignorou todas as ligações de suas amigas, todos os e-mails de Amanda e toda tentativa de contato de qualquer pessoa do museu. Não se sentia digna da presença de ninguém, não iria conseguir fingir que estaria tudo bem e a solidão era sua melhor companhia agora.

Na parede do seu quarto havia dezessete rostos desenhados em folhas de papel. Rostos que expressavam detalhes sórdidos de uma noite de sábado, há quase vinte dias. Ordenados desde o mais irrelevante até o rosto do seu primo Leonardo. Todos esses rostos estavam frescos na memória. Samantha lembrava do cheiro, da voz e, principalmente, do olhar de cada um deles. Sua obsessão por aqueles rostos a levaram a criar um perfil fake, no Facebook, em que ela havia adicionado todos eles, entre outros, apenas para não parecer estranho. Frequentemente, Samantha estava ciente das coisas que eles exibiam na rede. Até uma foto, no perfil de Karem, que mostrava suas próprias pernas manchadas com seu sangue e todos aqueles que estavam enfeitando suas paredes em volta de si. Eles ajudavam ela a ter o controle de suas próprias vidas, já que tinham certa mania de postar tudo o que faziam no facebook. Faziam check-in em todos os lugares que estavam, portanto, Samantha tinha acesso direto a todos, em qualquer momento.

Durante as duas semanas que passaram Samantha monitorou os passos dos nove garotos e das oito garotas que foram responsáveis pela mudança em sua vida. Ela não percebia, mas alimentava uma ideia fixa que deturpava toda sua personalidade, levando-a a pensamentos obscuros sobre si mesma. Samantha já não era aquela menina com ideais definidos e a vontade de ajudar correndo em suas veias. Aquela Samantha havia morrido no momento em que Karem a levara para o covil de todos aqueles rostos, agora moldurados na parede de seu quarto.


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