One Shot - Madrugadas mortas de terrores bem vivos escrita por O Viajante


Capítulo 1
Cuidado com o que te vigia na soleira da porta




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A coisa mais normal do mundo é você dormir com uma perna para fora do cobertor. Dormir com uma porta trancada também é natural. Te passa um sentimento de privacidade e proteção.

O que não é normal é você sentir uma mão gelada alisando seu calcanhar no meio da escuridão da madrugada.

Eu senti isso, há dois dias. Desde então só tenho dormido com o nascer do Sol. Devo confessar, aquilo me fez gelar o sangue, e todos os pelos do meu corpo se arrepiaram. Eu não me mexi, continuei parado, sentindo a perna molhada, aquela coisa secando aos poucos, enquanto tinha a sensação que dois olhos malditos me encaravam. A sensação de estar sendo observado... Aquela agonia mental, que vai crescendo aos poucos. A vontade de correr, mas o medo de fazer isso é maior do que ficar parado.

Imagina. Uma mão gelada te puxando direto para o chão, o que aconteceria depois?

Gritos demoníacos enquanto uma lâmina perfura sua barriga, várias e várias vezes? Mãos enfiando dedos longos e podres nas suas entranhas, rasgando sua barriga enquanto levam suas tripas para uma boca cheia de dentes afiados? Ou simplesmente a agonia?

Aquela agonia que você sente quando está lendo algo, mas ignora e pensa: Isso é só por causa da história.

Isso é apenas uma pequena parte das coisas que minha cabeça pensou naquele instante. Naquela madrugada que deixou um clima morto dentro do meu quarto. No dia seguinte, tranquei todas as portas, nos dois andares da casa. Não posso deixar de lembrar que eu ficava constantemente olhando para trás. Até para as paredes. Há sempre algo nos observando, e só conseguimos perceber quando aceitamos isso.

Na noite passada eu não dormi, fiquei com a luz do quarto acesa, mexendo em meu computador, tentando me distrair. Ouvi música, daquelas antigas, que são impossíveis de gerar um sentimento ruim.

Mas eu juro que ouvi passos no corredor.

Por Deus, eu ouvi. Eu já não aguento mais essa pressão. Já não aguento ter a certeza que isso é real, mas não poder fazer nada, enquanto a sanidade diz que é tudo coisa da minha cabeça.

Mas não é.

Não é.

Uma dica? Se sua intuição sente que tem algo atrás de você. Realmente tem. E isso irá te observar enquanto dorme.

Mas talvez tudo isso tenha passado. Já é quase quatro horas da manhã, e nada aconteceu. Leio um pouco pra passar o tempo, os filmes também ajudam. Por mais estranho que isso possa parecer, deixo as luzes apagadas. Elas me incomodam.

Meu telefone vibra. Sim, acha que sob essas condições eu deixaria o toque ligado, para me assustar a essa hora? Mas quem me ligaria a essa hora?

— Alô?

Silêncio. Mas ouço água corrente, um pouco distante.

— Alô? – repito.

Apenas o barulho de água.

Desligo o celular. Quem seria o idiota que iria me passar trote a essa hora?

Vou no registro de chamadas, e vejo o número de quem me ligou.

Espera, eu conheço esse número...

É o número do celular da minha irmã. Ela usava esse número há três anos.

Quando morreu afogada.

Puta. Merda.

Joguei o celular pra longe, tremendo na cama. O ar não queria entrar nos meus pulmões, e meu corpo amoleceu. Eu não precisava disso. Realmente, não precisava. Qual o sentido disso? Qual a lógica?

E lá longe, perto da parede, o celular tocou novamente. E tocou. E tocou. E tocou.

Eu o encarava petrificado, como se o rosto dela fosse aparecer na tela. Eu queria chorar, mas não conseguia. Minha garganta tinha um nó.

Isso é demais pra mim. O Sol apareceu, mas eu senti que ele demorou dois dias para fazer isso. Meu corpo estava todo tenso. Ao descer da cama, torci para que nada saísse debaixo dela. Eu precisava fazer algo. Por medo, ou coragem, caminhei até o celular e o agarrei. 12 chamadas não atendidas. Ela tinha 12 anos quando morreu.

Destranquei a porta do quarto com a mesma cautela que um ladrão abre um cofre. Olhei para os dois lados do corredor. Vazio. Uma parte de mim dizia que isso era bom. Outra dizia que nada estava vazio. No canto das paredes, ou detrás das portas. Sempre há algo. Caminhei pelo corredor, mas parei na frente de um quarto. O quarto dela. Encostei o ouvido na porta, atento a qualquer ruído. Nada. O mais puro silêncio.

Depois que ela morreu, meus pais decidiram morar no interior, longe da cidade, ou de qualquer coisa que lembrasse ela. Eu decidi ficar, mesmo sabendo que sentimentalmente não seria a melhor escolha.

E quem poderia imaginar que ela me ligaria no meio da madrugada?

Decidimos não mexer na decoração do quarto. Estava do jeito que ela gostava. Talvez ela gostasse tanto, que decidiu voltar.

No resto do dia eu fiquei do lado de fora, no quintal, vendo as árvores. As pessoas passeando pela rua, despreocupadas, sem imaginar o que se passava dentro da minha casa. Eu não queria voltar, mas uma curiosidade mórbida dentro de mim me obrigava. Além do mais, quem acreditaria em mim? Depois de muitas horas, é engraçado como conseguimos ficar parados quando estamos com medo, mesmo por tanto tempo, eu entrei novamente.

Nem preciso dizer que a cada luz que eu apagava pra ir dormir, meu medo aumentava. Subi para o quarto, andando rápido. Rápido demais. Me tranquei, e dessa vez, deixei a luz acesa. Meus pensamentos me atormentavam. Iria embora dessa casa no dia seguinte.

Às duas da manhã, eu estava sonolento. Não havia dormido na noite passada, nem de dia. Eu não podia dormir. Coloquei um filme no computador, e me encolhi na cadeira giratória.

Minhas pálpebras pesam. Não posso dormir, mas quem pensa em perigo quando está com sono pesado? Eu fechei os olhos, aos poucos. Eu lembro vagamente disso. Cochilei.

Senti a mão gelada na minha nuca, suave como um arrepio. Gritei, sobressaltado. Levantei da cadeira, chorando. O telefone tocou, e movido pela confusão eu atendi.

— Quem é? – perguntei desesperado, ouvindo apenas o barulho de água.

QUEM É!? – gritei.

Minha nuca se arrepiou quando ouvi aquela respiração pesada.

— Eu vou matar você! – e chorando, desliguei o celular, abrindo a porta do quarto, e entrando na escuridão da casa.

Não me importei com o medo. Eu não me importava mais com nada. Acendi as luzes por onde passei, indo até a cozinha, pegando um martelo no armário embaixo da pia. Cheio de raiva e frustrado, com os dedos pesados, digitei o número sombrio na tela do celular. Inspirei fundo, e liguei.

Ouvi o celular dela tocando no quarto dela.

Meu Deus, está aqui.

— O que você quer aqui? – gritava, enquanto subia as escadas. Talvez para afastar o medo.

— Responde assombração! – martelei a maçaneta. Uma. Duas. Três vezes.

Chutei a porta, abrindo ela com força, e acendi a luz.

Ela estava em pé na cama.

Gritei. Inferno, como eu gritei. Sem olhar pra trás, eu corri até o fim do corredor. Chorei. Encolhido no canto. Foi angustiante ver a sombra dela se aproximando devagar da porta. E um segundo depois, a garota com vestido branco e podre, de cabelo negro nojento grudado ao rosto pálido, com olhos sujos como vidro, colocou a cabeça pra fora lentamente.

E olhou pra mim.

Me encarou. Não, eu não tinha pensamentos na hora. Apenas pavor.

O mais puro pavor.

E voltou pra dentro do quarto. Instantes se passaram. Segurei o martelo com força. Eu não iria mais voltar atrás. Eu não iria aguentar mais uma noite. Corri, e entrei no quarto, pronto pra atingi-la com toda força. Pronto para sentir o martelo acertar aquela carne podre e úmida. Mas ela não estava mais lá. A adrenalina deixou meu sangue gelado, eu estava quase dormente. Olhei para a cama, e vi o celular dela em cima de alguns papeis rabiscados. Me aproximei devagar, colocando o celular pro lado, e segurando os papeis. Eram desenhos infantis, feitos quando ela era mais nova.

No primeiro desenho, ela estava sorrindo, olhando pro lago, mas no lago havia uma mancha negra, saindo da água.

E no canto da folha estava escrito “Ele ficou me olhando. Eu senti muito medo.”

No segundo desenho, havia a silhueta enorme de um homem, totalmente negro. Ela estava perto dele, mas não sorria.

“Ele me disse que só eu poderia vê-lo”

No terceiro desenho, havia apenas o desenho perturbado de um rosto sem nariz, com olhos totalmente brancos. A boca era retorcida, gengivas contraídas, os dentes afiados como adagas. O que se passava na mente de uma criança ao desenhar isso.

“Ele disse que me veria de novo. Ele me dá medo.”

A veria de novo? Então... ela não se afogou? Algo afogou ela? Olhei novamente o primeiro desenho. O lago onde ela havia morrido. Não sei descrever o que senti. Se foi ódio, medo ou impotência. Mas eu fiquei tonto, o quarto girou, parecendo mais uma alucinação. Ainda tonto, sai do quarto. Eu iria até o lago.

Já com a chave do carro, saí no meio da noite. Atravessei o quintal, e abri a garagem. Entrei no carro, jogando o martelo no banco do lado. Com os nervos à flor da pele, dirigi pela cidade. Dez minutos depois, já podia avistar o lago. A luz do carro estava acesa. Mas ela piscou e apagou. Quando acendeu, vi a boca nojenta cheia de dentes no banco de trás.

- MEU DEUS! – gritei.

E o carro capotou. Por um instante, perdi a consciência, e sem pensar, de cabeça pra baixo, tateei o teto do carro, que estava coberto de cacos de vidro, atrás do martelo. Consegui pegar, mas duas mãos geladas como a morte me puxaram para fora pelo pescoço, quebrando o cinto contra meu corpo. Meu ombro e minha barriga arderam como se fosse óleo quente. Gritei, engasgado, tentando acertar a coisa com o martelo.

Aqueles dentes estavam tão pertos de mim. Apertou minha garganta mais forte. Eu não conseguia mais respirar. Me jogou com força contra o chão. Bati a cabeça e fiquei tonto. Ele me arrastou. Aquela mão gelada tão horrível. E logo senti a água me cobrir...


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Notas finais do capítulo

Para aqueles que estavam ansiosos, e se decepcionaram, peço desculpas e prometo que a próxima será melhor.