Blunt Sword escrita por _TheDarkMoon


Capítulo 3
Corrente Nítida


Notas iniciais do capítulo

Finalizando humildemente minha história baseada em um dos grandes personagens de R.R. Martin. Boa leitura.



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Os deuses sabem o inferno que se acentuara em minha vida. Pequenos martírios cotidianos deixavam-me à beira da falta de razão. Jolia não mais possuía o brilho inocente e alegre em seus olhos e a dicotomia entre eles fazia-me lembrar dos meus. Seu olho cego possuía a cicatriz distorcida de seu antigo colar, e a íris tornara-se alva, revelando o mais puro vazio. E seu olho azul, agora exibia um temor constante e uma tristeza dominante. Quando eu o observava mais atentamente, ainda conseguia ver a moça que eu conhecera misturada a uma intensidade que eu desconhecia. Por fim, eu já não sabia mais até onde eu conhecia Jolia. E isso me tirava todas as certezas emocionais que eu, um deformado sem amor, poderia ter.

Jolia tornara-se ainda mais hesitante, e parecia fazer tudo de forma calculada. Quando colocava os pratos na mesa, eu podia ver seus dedos tremendo e suas veias pulsarem de forma nervosa. Eu quase podia escutar as batidas de seu coração implorando por sossego. Vê-la daquela forma aumentava a minha sensação de culpa – sentimento que tão pouca vezes visitara-me antes – e fazia-me perceber que não só eu estava incerto sobre ela, como também o contrário acontecia de forma ainda mais devastadora.

Recordo-me do dia em que a vi apagando as lamparinas dos corredores, e a chamei. Ela saltou, assustada, e voltou-se a mim, pedindo-me perdão por sua reação. Queria apenas passar boas horas conversando com a moça, mas não tive coragem de pedi-lo quando vi que seus olhos estavam cheios de lágrimas motivadas talvez pelo susto, talvez por uma tristeza súbita. Por fim, apenas perguntei se ela estava bem e ela confirmou sem se alongar.

Recordo-me de um dos almoços mais infernais de minha existência. Jolia enchia a taça de Tywin com vinho, quando ele, propositalmente, derrubou o recipiente, fazendo com que a bebida jorrasse na mesa.

– Não enche um cálice com eficiência. Inútil. Não me serves. – Tywin encarou-a com um sorriso de escárnio no rosto. – Não serviria nem em um bordel. Desapareça.

Tal comportamento certamente criou uma discussão. Se eu registrasse todas os conflitos que houveram entre mim e Tywin, certamente eu seria um egoísta e desperdiçaria em vão toda a matéria prima que origina estas folhas com todas as discrepâncias que dele ouvi. Entretanto, lhe disse que enquanto eu vivesse naquele lugar, Jolia não sairia dali.

Em todo o vasto território Lannister, não havia ninguém que pudesse curá-la. Não queria envolvê-la em diáfanas bruxarias e procurava com o que tínhamos mais próximo da racionalidade em nome da cura, mas ninguém mostrou resultados eficientes. Comecei então a pensar na hipótese de procurar por soluções em Porto Real. Tal ideia foi reforçada quando Jaime depois de uma rápida “visita” – daquelas em que ele aparecia para cumprimentar a mim e ao ouro de Tywin -, convidou-me para passar um tempo em Porto Real ao perceber-me as diferenças de humor.

Eu não queria deixar Jolia, mas podia ser uma de minhas únicas oportunidades para recuperar a moça que eu conhecera. Sabia que eu não podia levá-la e por isso encarreguei alguns guardas de maior tempo de serviço e competência para mim da missão de protegê-la. Deixei-lhes algum dinheiro para administrarem visando o conforto da vida dela e mandei que a protegessem. Exigi ainda que enviassem-me um relatório mensal sobre a vida de Jo. Tentei, por fim, fazer o mais difícil: despedir-me dela.

Encontrei-a sentada nos rochedos onde costumávamos ler juntos. Ela olhava além das árvores, mas seu olhar era vazio, como se olhasse para dentro. Sentei-me ao seu lado, e, mesmo percebendo minha presença, pela primeira vez ela não desculpou-se por não estar trabalhando ou por qualquer outra coisa que ela normalmente se desculparia e que, na verdade, não precisava de perdão algum. Contrariamente, ela não se deu nem ao trabalho de se mover ou de olhar em minha direção. Observei sua respiração e sua figura bela e triste.

– É um belo rio, não é? – ela disse com a voz trêmula.

– É... É sim.

Observei-o correr entre as árvores, mais ao fundo da floresta. Surpreendi-me ao constatar que, mesmo estando há uma longa distância e por isso não dando para ouvir seu barulho, eu conseguia imaginá-lo perfeitamente em minha mente e soava como uma mistura da respiração, batimentos cardíacos e movimento dos passos de Jolia.

Ela puxou de dentro de uma pequena bolsa presa em sua cintura uma pequena adaga, e segurou-a de forma a admirá-la e mostrar-me simultaneamente. Tinha um cabo envolto de couro que possivelmente era marrom inicialmente, mas que parecia ter tantos anos de idade que ganhara um tom alaranjado de desgaste e assemelhava-se aos cabelos de Jolia. A lâmina parecia quase torta de tão gasta e via-se claramente que estava muito longe do que se chama de bem afiada.

– É a única coisa que tenho da minha família em si. Minha mãe nunca me contou de onde veio ou a quem pertenceu, e, para falar a verdade, não me interesso mais em saber. Ainda assim, possui um passado cheio de brumas. Assim como é o meu presente, mas não meu futuro, pois ele não virá. – seu olhar voltou-se ao rio. – Um rio que não corre é poça vertical. É inútil. É lâmina cega.

– Jo, não o diga.

– Eu sou uma lâmina cega, Lorde Tyrion. – ela finalmente me olhou, o semblante carregado de desespero, as lágrimas rolando em sua fronte. – Eu sou uma lâmina cega.

Ela caiu em pranto, abraçada contra meu peito.

– Não é verdade. E mesmo que o fosse, até as lâminas cegas tem sua utilidade. Você não é apenas útil, como melhor que qualquer pessoa que já conheci. Eu buscarei pela sua cura em todo e qualquer lugar do mundo para vê-la como era antes. – acariciei seus cabelos, confortando-a.

– O senhor vai embora, não vai? – ela ergueu o olhar.

– Não, Jo. É só por um tempo, vou buscar ajuda. Em breve estarei de volta. – tentei sorrir para transmitir confiança, mas esta tarefa mostrava-se difícil.

– Eu imaginei que iria. – ela suspirou. Deu-me um último olhar e abraçou-me com tamanha vontade que pude perceber todos os seus sentimentos e ainda assim, eu soube que eu nunca poderia interpretar ou dar nome nem ao menos a metade deles. – Obrigada, Lorde Tyrion.

Ela sussurrou e foi embora com seus passos leves fazendo a grama farfalhar. Eu vi o dragão belo e devastador, tornar-se um pássaro machucado e temeroso. Eu vi a fascinante correnteza tornar-se uma lâmina cega.

****

Nenhuma das cartas que eu recebera falando de Jolia era específicas. Nenhuma delas descrevia seu andar ou o que seus olhos refletiam. Nenhuma delas dizia sobre as coisas cativantes que ela falava ou das histórias que contava. Eram apenas frios relatórios dizendo se ela estava ou não doente, se se envolvera em conflitos com a velha serva responsável, se precisava de mais dinheiro ou adjacências.

Passei cerca de um ano em Porto Real sem encontrar nada que pudesse ajudá-la. Decidi, por fim, retornar e viver com ela, mesmo em seu estado de cegueira parcial. Por mais que talvez Jolia nunca mais fosse a moça alegre que eu conhecera, ainda a possuía a esperança de uma vida confortável ao lado dela.

Assim que cheguei, sem nem ir aos meus aposentos para trocar-me, adiantei-me para a cozinha, local que eu deduzi em que estaria pelo horário, mas não a encontrei. Fui aos rochedos, e rodei todo o lugar, mas continuei sem saber onde ela estava. Acabei procurando pela velha serva, que, com toda a sua cisma com a moça, com certeza saberia onde ela estaria. Entretanto, assim que perguntei, o rosto da mulher tornou-se triste – expressão que nunca imaginei que esta teria. Ela olhou-me e disse:

– Ela não pertence mais a esse mundo, senhor. Quem sabe agora viva em um lugar digno de sua inocência.

Aquelas palavras atingiram-me de forma mais intensa do que se eu fosse partido ao meio por um machado. A história mostrara-se horrenda para com Jolia, e abominava-me acreditar que uma criatura tão gentil tivesse que passar por tudo aquilo, quando na verdade merecia nascer em berço de ouro, receber todos os privilégios e ser feliz como uma admirada senhora.

Três meses depois que eu partira para Porto Real, Tywin enfastiou-se da presença da moça e a colocou para fora. A velha serva, que parecia persegui-la, na verdade, a protegia, e acabou por conseguir fazê-la morar na casa de algum de seus filhos. Jolia nunca recebeu dinheiro algum que eu enviara, pois os guardas usavam as quantias para benefício próprio e mentiam sobre o estado dela. A moça viveu de vender flores e frutas que conseguira cultivar nas plantações e jardins do filho da velha serva, tornara-se amiga de sua esposa e contava histórias para seus filhos. Acabara por ter uma vida confortável, pois nunca precisara de muito para isso.

Porém, em um dia de suas nostalgias, decidiu caminhar pela floresta dos rochedos e deparou-se com dois homens que tentaram roubá-la. Frustrados pela ausência de dinheiro, achando apenas a lâmina cega, acabaram por matá-la com um golpe no peito, e só não a violaram, pois dois guardas da propriedade Lannister os afugentaram. Estes jogaram o corpo da moça no rio, e logo a história circulou, chegando aos ouvidos da velha serva, que até agora se mostrava consternada.

Tive vontade de degolar não só os homens que a assassinaram de forma frívola como também os guardas que contratei para protegê-la e que não o fizeram. Estes últimos haviam fugido assim que souberam que eu retornaria de Porto Real. Parecia que toda a fúria que eu sentia não podia ser colocada em gestos, em atitudes, não podiam ser exteriorizadas e isso parecia piorar a sensação mais terrível que eu tivera em toda a minha ínfima existência.

Não havia o que fazer. Pensava em Jolia, no que era, no que gostava, no que fazia, e apenas isso parecia suportar-me. Decidi-me a seguir, mas antes disso eu precisava fazer algo que pudesse pôr um fim digno na história da moça que mais gostava de ouvi-las e contá-las. Escrevi tudo o que eu sabia a respeito de sua vida, inclusive as partes que me incluíam, entretanto, sem citar nossos nomes, colocando-nos em um reino fantasioso e muito mais interessante, com dragões e rios que contavam histórias com o som de sua correnteza. Nunca pus autoria em tal obra e abandonei-a na biblioteca de Lannisporto. Anos depois, quando voltei a procurá-la, nunca a encontrei novamente. Gostava de acreditar que alguém gostara tanto da história que a levara para sempre. Mas, mergulhado em novo pessimismo, concluí que alguém provavelmente o estragara e jogara fora.

Fui até o rio da floresta do rochedo e finalmente pude ouvir o som real da correnteza e percebi que era exatamente semelhante ao que eu imaginara. Era excruciante saber que eu nunca mais a veria novamente e que a última coisa que ela dissera fora um agradecimento que, na realidade, era eu quem deveria ter feito. Abandonei no rio o colar que ela me dera, acompanhado com o meu sincero pedido de desculpas e de um agradecimento insistente. Ambos nunca pronunciados devidamente enquanto estava viva.

Eu poderia remoer sua morte para sempre, mas isso não ajudaria a montar a história que eu gostaria de viver com ela, por mais que eu o tivesse que fazer sozinho agora. Sua pureza era a correnteza, e eu não podia mais vê-la, ouvi-la ou tê-la. Arrependia-me de minhas decisões. Arrependia-me de desconfiar dela, de não lhe tomar como minha senhora, de procurar ajuda para algo que não precisava de solução. Ela era parcialmente cega e ainda assim podia ver melhor do que eu. Não lhe forneci o que ela mais precisava. E por isso preenchi meu passado de brumas, visando a nitidez do presente e um futuro com final digno.

Um coração coxo pôde amar uma lâmina cega, mas não de forma suficiente para poder salvá-la de si. Salvá-la de mim.

Sua cegueira encobria a perversão do mundo e enfocava suas virtudes. E desta forma, ela vira melhor do que qualquer um.


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Notas finais do capítulo

Essa é uma das poucas histórias que consegui fazer em um curto período e fiquei bastante satisfeita com o resultado. Espero que tenham gostado também e muito obrigada pelo carinho e incentivo. Obrigada.



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