Separate Ways - Requiem escrita por WofWinchester


Capítulo 45
Mais um dia em Sioux Falls




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Na última semana as coisas estavam mais calmas do que nunca em Sioux Falls, sem aparentes notícias de casos nos jornais, sem ameaças iminentes, sem criaturas querendo nos lanchar no café da manhã. Estava tudo absurdamente, impossivelmente e até inacreditavelmente normal. Sam até brincou que os seres sobrenaturais estavam tirando férias por causa da época natalina, então só o que podíamos fazer era não fazer nada.

Era cerca de uma hora da tarde, Bobby estava assistindo televisão enquanto os irmãos se ocupavam consertando um carro e conversando amenidades. Já Castiel e eu, bem, nós...

Com os olhos vendados por um lenço preto, eu sentia sua presença silenciosa logo atrás de mim, respirando próximo ao meu pescoço — o hálito quente em contraste com a brisa gelada do inverno causava uma sensação de formigação na minha pele — Em seguida suas mãos apertaram a minha cintura, me puxando mais para perto de modo que ficássemos encostados um no outro.

— Você é rápida, use isso ao seu favor — instruiu com a voz baixa, dando um aperto mais forte no meu abdômen — E tencione aqui quando for usar a força.

— Ainda estou em dúvida sobre isso, não quero te machucar. — murmurei relutante, comprimindo os lábios.

— Confie em mim. — insistiu Castiel, seu tom se tornando ligeiramente mais confiante. Eu podia jurar que nessa hora ele estava dando um sorriso quase arrogante — Eu sou bom no que eu faço. — decretou por fim e eu revirei os olhos por baixo da venda.

Apertei a lâmina angelical entre os dedos e girei tentando passar o mais longe possível de onde eu achava que o mesmo podia estar. Consegui ouvi-lo se movimentar para baixo e com uma mão segurar meu pulso com a arma, puxando meu braço para trás e o prendendo as minhas costas. Usei um pé para lhe dar uma rasteira, conseguindo desequilibrá-lo e assim me soltando do seu aperto. Dei alguns passos, a terra molhada pelo orvalho da madrugada guinchando sob minhas botas de frio.

— Já treinou algum humano antes? — questionei ficando imóvel para sentir sua presença que agora podia estar em qualquer parte.

— Não, mas acho que sou qualificado já que treinei vários anjos. — a voz estava afastada, eu diria que vários metros a noroeste de onde eu me encontrava. Caminhei para frente, mapeando o caminho íngreme que já conhecia e logo as pontas dos meus dedos alisaram a superfície úmida e fria de uma das carcaças de carros que ficavam empilhadas pela oficina.

Capitão Castiel? — provoquei em uma estratégia para fazê-lo falar mais uma vez — Estamos importantes. — emendei com um sorriso zombeteiro e ouvi uma risada em resposta, o som vindo de cima. Mas antes que eu pudesse raciocinar direito, um ruído metálico encheu meus ouvidos e o anjo pulou logo atrás de mim, as mãos imediatamente me prendendo contra o veículo.

— Comandante do exército, na verdade. — corrigiu próximo o suficiente para que eu tivesse dificuldade de manter a respiração instável, e mesmo sem ver eu sentia seus olhos me analisando por vários segundos, aproximando-se do meu rosto lentamente e quando seus lábios roçaram no meu queixo me fazendo pensar que ele iria me beijar, o mesmo então se afastou. — Você está pegando leve. — constatou voltando o foco para o nosso treino.

— Tem noção de que eu estou vendada e com uma arma que pode te matar? — devolvi gesticulando com a lâmina em mãos.

— Você é muito pequena para me acertar. — provocou tão seriamente que se eu não o conhecesse sua falta de tato para o sarcasmo e ironia, podia levar para o lado pessoal.

— Como se você fosse muito alto. — retruquei com uma risada e escárnio e no segundo seguinte ouvi um farfalhar de asas ao meu lado e Castiel me abraçar por trás, segurando minhas mãos para baixo e junto ao corpo.

— Humanamente falando, eu tenho a altura do edifício Crysleir. — elucidou divertido enquanto eu me debatia, inconformada por ter sido pega todas às vezes, com o susto acabei deixando a arma cair. E como a terra estava molhada, acabei me desequilibrando e caindo sentada no chão, mas o anjo se inclinou por cima de mim para me manter presa.

— Eu me rendo! Eu me rendo! — exclamei lamuriosamente, colocando em prática minha última tática — Por favor, não me machuque. — murmurei fazendo um biquinho. Segundos depois, ao sentir que o mesmo soltou meus braços, eu rapidamente inverti as posições, passando a mão por onde ouvi que havia caído a lâmina e a colocando contra o seu peito.

Tirei a venda rapidamente e Castiel me fitava com uma expressão curiosa e divertida.

— Que abordagem foi essa? — questionou pousando as mãos nas minhas coxas enquanto eu exibia um sorriso triunfante.

— Tática padrão de fragilidade feminina. — esclareci arqueando as costas para frente, a fim de ficar mais próxima dele ao falar.

— Muito eficaz. — o mesmo sorriu de lado — Meus parabéns, soldado.

— Que tal uma recompensa para parabenizar e motivar meus esforços? — incentivei largando o objeto de lado enquanto o anjo se sentava, me mantendo na mesma posição.

— O que você quer? — indagou inclinando a cabeça de lado, gesto que em cem por cento das vezes me fazia derreter tamanha fofura.

— Pôneis cor-de-rosa com certeza seriam um bom presente — pisquei duas vezes, sarcástica, puxando-o de leve pelo sobretudo e dando um beijo delicado em seus lábios, Castiel logo entendeu o recado. Ele deslizou uma das mãos até a minha nuca, me fazendo chegar para mais perto e mantendo a outra firme na minha coxa direita. Mas quando nós estávamos prestes a aprofundar mais o beijo, ouvi passos sonoros atrás de nós.

— Ei, que tal fazermos uma noite especial? — interrompeu Sam, de pé logo ao meu lado. O moreno fitava algo nas copas das árvores distantes, tentando focar o olhar para outro lugar. Suspirei, manhosa como uma criança que não ganhou doce, enquanto o anjo sorria com uma expressão divertida e ao mesmo tempo constrangida.

— Tipo o quê? — perguntei me colocando de pé e estendendo a mão para puxar Castiel comigo, aproveitando para limpar os resíduos de terra que haviam ficado no meu moletom.

— Alugar alguns filmes, por exemplo. — opcionou o Winchester caçula, visivelmente mais confortável agora que nós não estávamos agarrados como dois adolescentes.

— Por que será que isso soa normal demais para nós? — brincou Dean casualmente, vindo até o irmão e estendendo uma cerveja para ele enquanto bebericava outra. Sam deu uma risada anasalada.

— Vamos nos dividir e buscar tudo antes que todo mundo comece a sair por causa da véspera de Natal. — alertou o moreno.

— Nós podemos pegar os filmes e vocês a comida. — me prontifiquei.

— Para vocês ficarem se agarrando na fila do mercado e esquecerem metade das coisas? Nem pensar. — falou o loiro, sarcástico, enquanto dava um gole na bebida. Abri a boca para protestar, mas parte de mim desconfiava que aquilo pudesse realmente acontecer, então decidi não dizer nada. — Eu vou com o Cass e você vai com o Sam.

— Alguém acordou de mau humor hoje — zombei por fim, abraçando o anjo. Então ele me deu um beijo no alto da cabeça, acariciando de leve o meu queixo com a ponta dos dedos, o gesto ocasionando cócegas que me fizeram encolher os ombros.

— Cuidado com a minha baby — Dean avisou com a expressão mortífera, puxando as chaves do bolso e lançando-as para Sam, que pegou as mesmas no ar. Em seguida Castiel foi para perto do Winchester mais velho, que deu uma piscadela em gracejo — Vem, me agarra, gato.

— Dean, isso foi estranho. — apontou com uma careta apreensiva que fez o irmão caçula e eu cairmos na gargalhada.

As ruas de Sioux Falls estavam até então calmas, as casas e jardins — cobertos por uma fina camada de neve, que deveria ficar mais intensa até o final da semana — decorados com bonecos de papai Noel, guirlandas, luzes e alguns pinheiros. Mesmo as pessoas pareciam mais felizes e agradáveis nessa época, como se ser “bonzinho” durante um único dia fosse amenizar o que elas fizeram de errado no ano todo. Mas eu não me sentia no direito de julgar ninguém e nem queria me preocupar com essas coisas, eu me sentia feliz e contaminada pelo espírito natalino, era isso que importava.

A única coisa que ainda tirava o meu sono era o fato de Jimmy ter desaparecido do mapa. Eu nunca duvidei do meu sexto sentido e agora ele me dizia que tinha algo muito errado acontecendo com meu irmão, eu só não sabia o quê. E ainda tinha a questão da profecia que nós não tínhamos sequer ideias de onde começar a procurar meios de impedir, e ela só não me assustava mais por que agora eu tinha Castiel ao meu lado. Eu me sentia forte com ele, sentia que poderia enfrentar qualquer coisa, por pior que fosse.

Era um motivo bem grande para que eu seguisse em frente todos os dias.

A locadora “Filmes&Cia” ficava logo ao lado do bazar da senhora Ford, o que era muito oportuno para o que eu pretendia. Porém a fila que estava lá dentro podia desanimar até o mais motivado comprador.

— Não sabia que você gostava de “Senhor dos Anéis”, seu nerd. — comentei apontando para a pilha de DVDs que Sam carregava para dentro da loja.

— É um clássico. — o mesmo deu de ombros — Jason? Não sabia que você era do tipo “sangue e tripas”.

É um clássico. — apontei, imitando seu tom. — Então, o que quer ganhar de Natal, grandão? — questionei enquanto pegava o cesto cor de rosa gentilmente oferecido por uma vendedora que tinha um gorro de papai Noel e um sorriso forçado por estar trabalhando hoje.

— Nós nunca fomos do tipo que dá presentes, sei lá. — devolveu com uma careta. Comprimi os lábios por um momento, imaginando como não deve ter sido a infância deles. Acho que a vida de caçador não reserva muitos feriados e muito menos tempo para comemorar e trocar presentes com a família. Sibilei com uma pontada de tristeza lancinando no meu peito.

— Sério? Bom, pra tudo tem uma primeira vez. — insisti com um sorriso e ele abriu a boca, puxando os lábios para imitar o meu gesto de um jeito sem graça. O moreno catou uma miniatura de pinheiro que estava tombada em uma parte alta da prateleira bagunçada, esticando-se para o lado a fim de ceder passagem para uma mulher apressada que corria atrás dos filhos travessos.

— Não sei o que comprar para o Dean. — suspirou olhando ao redor enquanto eu desviava de várias pessoas que passavam cheias de objetos que mal podiam equilibrar nos braços. O lugar estava tão lotado que era difícil até encontrar espaço para caminhar nos estreitos corredores, a música natalina que tocava se misturava com as vozes, ocasionando mais ruído do que algo inteligível.

— Um pedaço de bacon? — brinquei e ele me acompanhou em uma risada, segurando na parte de trás do meu capuz para não se perder — Ah, sei lá. Que tal um CD do AC/DC? Ou talvez não, já que ele tem todas as fitas. Talvez um vinil original, com certeza ele iria surtar. — assenti e o mesmo arqueou uma sobrancelha de um jeito que eu não consegui decifrar.

— Você conhece o meu irmão melhor que eu, Jesus. — falou um tanto espantado.

— Nós mulheres somos observadoras. — esclareci apontando de leve para o seu peito — Agora vai para o outro lado da loja enquanto eu compro os presentes e você os seus. Se souber o que é antes da hora não tem graça.

— Quem disse? — provocou o Winchester e eu forcei uma careta brava que logo fez o mesmo levantar as mãos em rendição. Sam abriu espaço entre duas senhoras que fitavam insistentemente e encurvadas alguns jogos de copos em uma prateleira, as mesmas ficando momentaneamente desnorteadas quando o homem de quase dois metros passava por elas, quase as levando junto. Balancei a cabeça para os lados, achando uma graça quase inexistente na cena.

Dar presentes podia parecer uma coisa fácil e até mesmo superficial se você não tivesse um ponto de vista simbólico, e eu devia o meu a Lucius e Elena que sempre me ensinaram que um presente de verdade não é aquilo que você pode dar materialmente, mas sim aquilo que vai fazer a pessoa lembrar o porquê é bom ter nascido. Parece complicado a primeira vista, porém é bem simples. E partindo desse ponto de vista, eu já tinha tudo escolhido em poucos minutos, só faltava um.

— Comemorar o Natal? Que coisa mais chata. — comentou uma voz ao meu lado, me assustando e fazendo com que eu praticamente fizesse malabarismo com o quadro em mãos para que ele não caísse no chão. Larguei o objeto cuidadosamente no lugar onde estava e encarei o anjo com total desagrado.

— Oi para você também Lúcifer, agora tchau. — disse com o tom ríspido, virando-me para a prateleira seguinte, onde havia vários livros bagunçados uns por cima dos outros, liquidação misturada com lançamentos.

— Você é tão ingrata. — bufou me acompanhando de perto — Aposto que nem o Sammy seria ingrato dessa forma comigo.

— Ah, você acha? — indaguei com escárnio, tomando certo cuidado para que as pessoas não me vissem falando sozinha. Tateei os objetos e meus dedos logo alcançaram uma superfície acetinada que não parecia em nada com capas ou folhas, puxei-as e me deparei com um par de gravatas perdidas, uma preta e outra azul marinho. Provavelmente largadas por algum comprador que achou algo melhor andando pela loja. Encarei-as, mordendo o lábio inferior com indecisão.

— Nós até conversávamos. — o anjo deu de ombros, em seguida apontando para uma delas — Escolhe a preta, vai acentuar melhor. — deu a opinião que ninguém havia pedido. Deixando-me com certa raiva, pois eu estava realmente pensando em levar a da cor que ele havia indicado.

— Por que você não some? — grunhi agarrando a azul e colocando no meu cesto cheio.

— Olha para você, comprando presentes, que ridículo. — esbravejou Lúcifer em tom debochado — Já se esqueceu que a profecia ainda está ativa? Que você ainda vai morrer?

— Não Lúcifer, eu não esqueci e tenho certeza que se tivesse esquecido você continuaria aqui para me lembrar. — revirei os olhos, me apertando entre um homem cerca de quatro vezes maior que eu e uma mulher que tentava arrancar o filho chorão de um brinquedo movido a pilhas que mexia os braços de forma bizarra no ar.

— Ótimo, continue fantasiando sua vidinha perfeita e limitada. Mas quando você tiver uma lâmina angelical enfiada nas suas entranhas, vai doer muito mais neles do que em você. — o anjo colocou-se a minha frente, apontando um dedo para o meu peito, como se estivesse enfiando uma adaga. — Principalmente nos Winchester, que não terão o benefício de terem a memória apagada ao final de tudo, igual o meu irmãozinho. Então continue sendo a irmãzinha perfeita, isso só vai destruí-los mais e me divertir bastante. — sentenciou cruzando os braços e dando um sorriso diabólico.

Eu nunca havia realmente parado para pensar nesse ponto, em como ficariam aqueles que ainda teriam memórias para lembrar. Mas isso não podia acontecer, pois se o anjo Guardião tem todas as lembranças apagadas sobre mim e tudo relacionado, como ficaria um Guardião que tem contato direto com os humanos que me conheceram? Isso era uma falha no plano divino, mas o que me preocupava é que nunca há falhas quando se trata de assuntos celestiais.

Encarei Lúcifer que ainda mantinha a mesma expressão, provavelmente se deliciando com mais um assunto que iria tirar o meu sono à noite.

— Vá se ferrar — cuspi as palavras enquanto a imagem do anjo se desmaterializava a minha frente como se fosse vapor quente, atrás dela revelando o rosto assustado de uma senhora de idade que me estendia um quadro pequeno, retratando a figura de um papai Noel.

— Eu só queria que você olhasse o preço para mim, eu esqueci meus óculos... — murmurou a mesma, recuando alguns poucos passos enquanto vários olhos se voltavam para mim com desaprovação. Fiquei sem reação por alguns instantes, logo sentindo meu rosto ferver e minhas pernas automaticamente se encaminharem para longe dali, soltando um grunhido de raiva em seguida.

Sam terminou as compras alguns minutos depois de mim, nós dois já carregando os presentes devidamente embrulhados e em sacolas grandes. Depois de ajeitá-los no banco traseiro, saímos do estacionamento e de cara já previmos que a cidade estava um caos. Vários veículos se enfileiravam no pico das quatro horas da tarde, todos no sentido da interestadual, o que nos prendia no engarrafamento.

Toda estação de rádio que eu procurava, estava aconselhando as pessoas que queriam viajar a não saírem de casa agora, assim evitando o transtorno de passarem uma hora e meia paradas na estrada. Olhei pelo vidro entreaberto, sentindo o vento ficar mais frio conforme a tarde avançava rumo à noite. O céu tinha raios fraquíssimos de sol, encobertos por nuvens espessas que deixavam o dia totalmente nublado. O carro que estava ao nosso lado na pista, um Crossfox azul, acelerava constantemente denotando a impaciência do motorista, um homem de meia idade que não parava um segundo de falar no celular. Recostei a cabeça contra a janela e observei que o mesmo gesticulava várias vezes, afrouxando a gravata e quase gritando palavras como “documentos”, “reunião” e “compradores”, era bem óbvio que esse homem era o tipo de pessoa que podia sair do trabalho, mas o trabalho não sairia dele. Em contrapartida, a mulher loira ao seu lado mantinha os olhos fechados e massageava as têmporas constantemente conforme uma adolescente de aproximadamente doze anos tagarelava nervosa, juntamente com um garoto um pouco mais velho que tinha os ouvidos tampados por fones de ouvido. E mais perto do Impala estava uma garotinha, cerca de seis ou sete anos, devorando doces como se não houvesse amanhã e jogando os papeis fora pela janela.

Do que adiantava tirar férias para ficar com a família se era visível que eles não podiam estar mais distantes um do outro?

— Por que todo mundo tem que sair exatamente na mesma hora? — lamentou-se o Winchester caçula atrás do volante, inclinando-se para desligar o rádio.

— Sam, posso te perguntar uma coisa? — indaguei franzindo a testa, olhando de soslaio para perceber que o moreno assentiu uma vez. — Como era... Na jaula?

Eu não sabia exatamente o porquê de ter feito aquela pergunta repentina, parte de mim acreditava que era uma curiosidade plantada por Lúcifer hoje mais cedo quando o mesmo havia dito que eles “conversavam”. Mas a julgar pela reação do Winchester, que fez um silêncio tenso pairar sobre nós, não era o tipo de assunto que ele queria falar sobre.

— Eu não me lembro. — disse quando eu estava começando a achar que ele não iria responder, a sua voz saindo mais baixa do que o casual.

— Ah, é claro que ele lembra. — pronunciou-se Lúcifer, agarrando o banco do passageiro na altura do meu ombro para colocar a cabeça entre nós dois. Fechei os olhos, me sobressaltando. Depois de tantos dias sem vê-lo, eu estava me acostumando muito bem a sua ausência. Sam arqueou uma sobrancelha para o meu gesto e eu ponderei mais de uma vez dissimular, porém eu já tinha experiência suficiente nisso para saber que não era a melhor opção.

— Ele disse que você lembra. — murmurei virando o rosto para observar sua reação.

— Ele? — questionou confuso, logo sua expressão ficando surpresa — Espera! Lúcifer está aqui?

— É a primeira vez que eu o vejo depois de ter a Graça de volta. Achei melhor contar. — dei de ombros, a mandíbula ligeiramente tensa. Ficamos mudos por alguns instantes enquanto o Winchester assimilava a notícia, os lábios comprimidos não me deixavam saber se ele estava desconfortável, incrédulo ou recordando-se de coisas que preferia esquecer.

— Como é? — questionou por fim, e a pergunta era plausível. Como eu conseguia ver o Diabo em um plano de realidade alternativo que ninguém mais conseguia? Como ele podia interagir comigo como se fosse de carne e osso? Será que ele podia mexer tão fundo na minha mente a ponto de me controlar?

— Ele está com a forma de um adolescente. — contei encarando-o pelo espelho retrovisor. Os olhos verdes e rosto juvenil eram o contraste injusto da real perversidade que continha dentro daquele ser — Era estranho no começo, mas depois de um tempo eu acostumei. É como ter um amigo invisível, só que é Lúcifer.

— Ela me chamou de amigo, que fofa. — brincou o anjo, fazendo um biquinho com os lábios.

— Ele me ajudou algumas vezes, como quanto eu usei um exorcismo enoquiano e para descobrir as tramas de Alfred e Elisabeth.

— Claro que ajudou... — Sam deu um leve grunhido de escárnio — Mas você não pode confiar nele. Lúcifer é cruel e vai tentar manipular você. Eu fiquei muito tempo com ele e Miguel na jaula, sei do que estou falando.

— Eu não disse que ele lembrava? — enfatizou vitorioso, apoiando as duas mãos nos bancos e inclinando-se para mais perto do meu ouvido.

— Mas você disse... — comecei e o moreno me encarou.

— É complicado. — interrompeu quebrando o contato visual, os nós dos dedos se apertando mais nos volante, e por um momento eu achei que ele pudesse arrancá-lo do lugar — Quando eu voltei, não sabia, mas conforme as lembranças do inferno foram voltando era como se estivessem mais vivas do que nunca. Foi como se eu tivesse passado anos lá, sendo cortado, queimado, rasgado, todo tipo de tortura que você possa imaginar. Só que depois aconteceu algo pior.

— Algo pior? — sussurrei incentivando-o a continuar. Minha mente não podia evitar de imaginar as cenas, uma espécie de Jogos Mortais do inferno.

— Você sabe o que acontece com as almas humanas que passam muito tempo no submundo, certo? — o Winchester virou o rosto para me lançar um breve olhar.

— Elas se tornam demônios. — assenti, não conseguindo me lembrar se fora Dean quem havia me dito ou se eu havia lido em alguma anotação de Bobby.

— Eu achei que me tornaria um, por algum tempo acreditei nisso. — falou tão baixo quanto um murmúrio, os olhos esverdeados vagos e perdidos entre os veículos parados na pista.

— Por que nós viramos amiguinhos lá embaixo. — emendou Lúcifer e eu evitei encará-lo com incredulidade naquele momento.

— A jaula não é bem uma jaula, como dizem. Está mais para um prédio grande e vazio. — continuou o moreno — E depois de passar anos lá , sem falar com ninguém, Lúcifer e eu acabamos por ficarmos mais próximos, já que Miguel não conseguia olhar para ele sem que uma batalha que durava semanas começasse. — ele suspirou, abaixando o rosto por alguns instantes antes de me fitar novamente — Eu nunca contei isso para o Dean, acho que ele não me perdoaria.

— Você não tem que ter vergonha disso, Sam. — disse colocando uma mão em seu ombro.

— Um dia ele olhou para mim e disse “Quando eu olho para você, vejo a mim mesmo”. E naquele momento eu senti tanta raiva, tanto nojo que eu soube que nunca iria querer me tornar alguém como Lúcifer. — falou de forma inexpressiva.

— Estou ofendido. — enfatizou o anjo, batendo com a mão no banco e imitando uma careta perplexa.

— Se você estiver ouvindo, seu desgraçado, eu ainda vou matar você. — prometeu o Winchester caçula, observando o espelho retrovisor incisivamente. E naquele momento os dois estavam se encarando de uma forma tão ameaçadora que parecia que até o ar dentro do veículo havia ficado mais denso, mas Sam não sabia disso.

— E eu estou esperando ansioso, velho amigo. — Lúcifer piscou para o reflexo.

— Ele não está mais aqui. — disse tocando seu ombro novamente para que o moreno se voltasse para mim.

— Uma vez mentirosa, sempre mentirosa. — o anjo deu uma risada sonora, inclinando-se para trás e recostando-se no banco.

— Me sinto melhor sabendo disso. — murmurou com o olhar tristonho, parecia quase um cachorro que caiu do caminhão da mudança. Sorri de lado, cutucando seu abdômen e conseguindo arrancar uma risada do mesmo. Mas os sorrisos duraram pouco quando nós percebemos que ainda faltavam bons quilômetros de engarrafamento.

— Acho que compensaria mais se fôssemos de a pé. — soltei um gemido, me afundando para trás e deixando os braços caírem sob meu colo.

— E deixar o Impala? Dean arranca nossas cabeças a dentadas. — comentou com a expressão levemente espantada, provavelmente imaginando a situação.

— Você tem razão. — devolvi com um riso anasalado.

Logo que chegamos, Sam e eu compartilhamos um olhar conspiratório e pegamos as sacolas de presentes, entrando rapidamente com as embalagens embrulhadas para escondê-las em um lugar seguro até o dia de Natal. Subi as escadas, notando que não havia ninguém na sala, e então entrei no meu quarto, camuflando os embrulhos dentro do meu guarda-roupas e deixando apenas um do lado de fora.

Retirei a gravata de dentro da caixinha aveludada e a guardei no bolso do casaco de moletom, eu tinha que dar um toque especial nela. Ao passar pela porta, dei de cara com Dean saindo do seu quarto, o loiro logo me lançando um sorriso nervoso.

— E então? — comentou puxando a maçaneta atrás de si.

— Então o quê? — devolvi tentando manter o tom casual, evitando que ele percebesse que eu tentava esconder algo.

— Nada, ué. — o mesmo deu de ombros, parando no topo da escada junto comigo. Nos encaramos por um instante e ele gesticulou para baixo.

— Legal. Vamos descer? — incentivou para que eu desse o primeiro passo.

— Você primeiro. — disse recuando quando senti sua mão nas minhas costas, me impulsionando devagar para frente. Algo me dizia que ele estava tão cuidadoso quanto eu para “esconder” coisas.

— Só depois de você. — insisti puxando seu braço e nós descemos ao mesmo tempo, quase lado a lado. Quando cheguei ao último degrau e percebi que Sam e Bobby estavam passando da cozinha com xícaras fumegantes de café, enquanto Castiel escavava os bolsos do sobretudo de tirava vários papeis amassados, colocando-os sobre a mesa.

— Se juntou a coleta de lixo? — perguntei sarcástica, contornando o móvel para tirar a xícara da mão de Sam e dar um gole, o moreno me fitou estreitando os olhos e eu dei uma risada pertinente.

— Por algum motivo, várias mulheres vieram depositar esses papeizinhos com números nos meus bolsos hoje. — esclareceu franzindo a testa, retirando o último. Arqueei uma sobrancelha em incredulidade, parte de mim se contorcendo em espasmos de ciúmes só de imaginar um bando de piranhas se atirando em cima de Castiel para arrancar um pedaço que fosse. Mas quem podia culpá-lo? Com aqueles olhos, sorriso e pose de “come quieto” ele poderia levar desde uma adolescente até uma quarentona ao delírio. Eu era a prova viva dessa teoria.

— É hoje que a casa cai! — começou Dean, colocando um livro em cima da cabeça e andando apressado para o lado oposto do cômodo — Protejam as cabeças! — emendou debochado sob os olhares atentos que pareciam esperar que eu entrasse em erupção e soltasse fogo pelas ventas.

— Bobby, será que você me empresta a espingarda de caça? — perguntei imaginando o quão mortífera estava minha expressão naquele momento, acho que eu poderia explodir aqueles números de telefone só de olhar.

— Desde que não atire em ninguém dentro da minha casa. — o velho Singer deu de ombros, colocando a xícara sobre a mesa e derramando um pouco a bebida quente em alguns papeis que ele logo tratou de balançar no ar na tentativa de limpá-los.

— Por que esses papeizinhos são importantes? — indagou Castiel, gesticulando para as bolas amassadas de diversas cores.

— Não importa, se livre deles. — apontei com o tom ameaçador, depositando um beijo suave no seu rosto em seguida. Duas facetas da mesma mulher: A enciumada carniceira e a doce garota apaixonada. Mas no fundo eu fiquei feliz por descobrir que eu lidava bem com o ciúmes. Bom, pelo menos não tentei matar ninguém. — Ah, Bobby, eu lembrei que uma vez havia visto uma máquina de costura no porão. Ela ainda funciona? — questionei mudando o rumo da conversa.

— Vai costurar a cara de quem? — perguntou Sam, quase deixando o café cair tamanho o espanto.

— De ninguém, eu preciso... — comecei a rir, tranquilizando-o e quase falando demais. — Arrumar uma roupa, apenas.

— A última pessoa que usou foi a minha esposa, deve estar enferrujada, mas funciona. — respondeu o velho Singer.

— Posso pegar emprestado? — pedi mordendo de leve o lábio inferior.

— Claro. — assentiu Bobby casualmente e eu sorri vibrante em resposta, já mirando meu caminho para o porão.

— Quer ajuda? — ofereceu Castiel, andando logo atrás de mim e eu me virei para barrá-lo.

— Não! É que eu vou ajustar uma peça íntima, então vou precisar tirar a roupa. — inventei a primeira coisa que me veio à mente para que ele mantivesse distância de lá por algum tempo. O anjo arregalou os olhos por um instante, o rosto levemente constrangido. — Fique longe do porão. — repeti tentando disfarçar o nervosismo com uma risada e passei pela porta.

Depois de terminar o meu “toque final”, guardei a gravata novamente dentro da caixinha e a escondi no guarda-roupas, junto com os outros presentes. Aproveitei o tempo que os rapazes estavam entretidos lá fora e tomei um banho rápido, colocando um pijama de mangas compridas. Logo que saí do banheiro, senti um cheiro forte de pipoca amanteigada no ar. Arrastei as pantufas cor-de-rosa e vi que Sam já estava em frente ao fogão, Dean terminava de colocar um DVD no aparelho e Bobby estava esparramado na poltrona.

— Vamos começar a sessão de filmes. — anunciou o Winchester caçula, buscando o saleiro para despejar algumas pitadas no pote que ele agitava no ar.

— Cadê o Cass? — questionei depois de olhar ao redor e perceber que não havia sinal da minha coisinha linda de sobretudo bege em nenhum canto.

— Estou aqui. — disse o anjo, aparecendo ao meu lado com uma sacola de compras em mãos.

Anjo Delivery é mais rápido do que usar o telefone. — esclareceu Dean, passando o braço por cima da minha cabeça para pegar uma das fatias de torta que estava dentro da embalagem de plástico, em seguida eu peguei a outra e coloquei o embrulho em cima da mesa, passando pela pia a fim de catar um garfo.

— Quanta exploração. — comentei colocando um pedaço na boca e balançando a cabeça em desaprovação. O gosto de creme de limão fresco era divino.

— Dean não tem escrúpulos quando se trata de torta. — apontou Sam, gesticulando com o pote de pipocas e indo até a geladeira para pegar cerveja.

— Fica quieto Sammy, e me passa essa cerveja. — esbravejou o irmão de boca cheia, fazendo o outro imediatamente lhe lançar uma das garrafas.

— Vocês colocaram a droga do filme pra ficar fofocando na cozinha igual um bando de tias velhas ou vão sentar e assistir? — ralhou Bobby da sala.

— O canto é meu! — gritaram os dois Winchesters ao mesmo tempo, disparando em direção ao sofá. Comecei a rir, dando um passo para segui-los, porém Castiel me puxou de volta.

— Espera, tem... — começou apontando para o meu rosto, até passar o dedo gentilmente no canto da minha boca, limpando qualquer vestígio de torta que pudesse haver ali. Sorri conforme ele se aproximava e terminei de encurtar a distância quando passei os braços por seus ombros, tomando cuidado para não derrubar a embalagem que ainda tinha em mãos. O anjo me beijou delicadamente, explorando a minha boca com calma enquanto eu saboreava o gosto doce entre os meus lábios. Senti ele me enlaçar pela cintura, o aperto firme subindo alguns centímetros até seus dedos escapulirem para debaixo da minha blusa de algodão fino, o toque quente fazia parecer que o mesmo tinha passado horas no sol. Conforme nós aprofundávamos o beijo, senti que suas mãos se mantinham fixas e cada vez mais fortes, até o ponto em que um gemido baixo saiu pela minha garganta.

— Desculpe — murmurou imediatamente relaxando os músculos e deslizando os lábios pelo meu pescoço até depositar um beijo suave.

Não era novidade para mim que anjos possuíam força sobre-humana, porém eu nunca havia parado para pensar muito nisso. Se agora nós já estávamos tendo problemas, prefiro nem imaginar o que poderia acontecer se tentássemos algo mais... Avançado. Não que uma noite com ele não compensasse sentir um pouco de dor. Balancei a cabeça para os lados, afastando os pensamentos pecaminosos — com um anjo do senhor — da minha mente. Se eu pudesse morrer definitivamente, tinha certeza que iria para o inferno por causa deles.

Mas até lá...

— Vamos? — indaguei baixinho e ele assentiu. Olhei para os irmãos brigando igual duas crianças no sofá e Bobby revirando os olhos, tirei as pantufas e corri pelo assoalho, deslizando com as meias alguns segundos antes de me jogar por cima dos dois que deram um gemido em protesto pela disputa de espaço. Castiel materializou-se sentado ao meu lado, encurtando mais ainda enquanto nós nos ajeitávamos o máximo possível para cabermos todos ali.

O anjo passou o braço em volta de mim e eu me aconcheguei mais para perto dele, Dean escorou o pote de pipoca nas minhas pernas e Sam aumentou o volume da televisão enquanto Bobby abria mais uma cerveja.

Nós até parecíamos uma família americana normal.


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Notas finais do capítulo

Capítulo mais light, assim como o próximo, MASSSS ainda teremos muitas emoções e tretas, não se preocupem! Quero agradecer aos comentários, favoritos e ao carinho de todos vocês! Um beijão, babies.



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