Separate Ways - Requiem escrita por WofWinchester


Capítulo 43
Adeus, Esther


Notas iniciais do capítulo

Hello! Demorei um pouco, não é? Pois é... Como é um capítulo importante, eu ficava revisando e revisando, sempre achando que tava ruim. Então revisei até ficar decente, desculpem. Quero agradecer aos comentários e favoritos, vocês são demais! E o capítulo é bem grandinho pois na verdade era para serem dois, mas eu não queria dividir e deixar vocês esperando, então fiz somente um. Pelo título e gif já deu pra notar que teremos mais uma "sessão lencinho", né? Pois é.
Espero que gostem.
PS: No final coloquem a música "Leave out all the rest", da banda Linkin park para tocar. Ela dá bem o clima.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/508774/chapter/43

Mesmo antes de abrir os olhos eu já sabia que Castiel havia me trazido de volta, pois a última coisa que me lembrava era do anjo ter colocado os dedos na minha testa enquanto ainda estávamos no cemitério. Mas o cheiro de mofo misturado com café era diferente do aroma que eu me lembrava da oficina Singer, o que me fazia acreditar que eu não estava em Sioux Falls. A cama também parecia diferente, juntamente com o cobertor de pelos com cheiro de colônia masculina. Meus ouvidos captavam alguns ruídos vindos do andar de baixo, a voz baixa de Sam e outra que eu não conhecia.

— Vai ficar quanto tempo fingindo que ainda tá dormindo? — perguntou Dean logo ao meu lado. Desde quando ele estava ali? De qualquer modo, o fez de uma maneira tão silenciosa que eu não havia percebido sua presença até agora. Abri as pálpebras e dei de cara com uma cortina laranja cobrindo a janela e contrastando de uma maneira nada harmônica com a parede azul claro. Passei as mãos pelo rosto, tomando coragem para me virar. Eu não tinha me preparado para esse momento, a hora de encará-los depois de tudo que aconteceu.

Remexi-me na cama, as molas fazendo um ruído sonoro, e então puxei um dos dois travesseiros que estavam do meu lado para que eu pudesse abraçá-lo, como uma criança que agarra o ursinho de pelúcia, pois tem medo de dormir sozinha. No caso, eu tinha medo do que poderia ouvir agora. Dean estava deitado com os braços cruzados e os olhos verdes encarando o teto, logo que nossos olhares se encontraram ficamos vários segundos dessa forma. O caçador estava tão sério que eu não conseguia decifrar qual seria sua atitude a partir daqui.

— Pretende fugir de novo ou eu não vou precisar seguir você até dentro do banheiro? — questionou calmamente, fazendo com que eu me perguntasse se aquilo era uma piada ou não.

— Está aqui por que acha que eu vou pular pela janela? — devolvi de maneira divertida, mas meu tom saiu rouco e amargo.

— Talvez. — o loiro deu de ombros, piscando duas vezes — Você vai?

— Talvez. — rebati e nós continuamos a nos encarar por vários instantes. Dean não parecia bravo, e isso era o que mais me assustava, pois quando ele gritava e brigava comigo, pelo menos eu sabia que tudo iria ficar bem depois. Apertei mais o travesseiro contra o corpo, suspirando contra ele — Pode falar se quiser. Não precisa agir como se estivesse tudo bem, porque eu sei que não está.

— Tudo bem, eu vou falar. — o caçador se ajeitou melhor na cama, apoiando-se sobre o braço que estava próximo a mim e inclinando-se mais para perto — Estou feliz que esteja com a gente de novo.

— E? — incentivei e ele comprimiu os lábios.

— E o que você quer que eu diga? — questionou com um suspiro cansado, os dedos puxando o tecido do cobertor despreocupadamente — Que eu fiquei chateado por você não ter confiado em mim para me contar que não estava conseguindo lidar com a situação? Por ter mentido? Que no começo eu fiquei puto por você ter dito “sim” para o Diabo? Eu sei que você sabe disso.

— Sobre eu ter dito “sim”... — comecei, mas o mesmo me interrompeu antes que eu pudesse terminar.

— Você fez para nos salvar da genocida feiticeira e do bruxo esquisitão, eu sei. Para falar a verdade, teria feito a mesma coisa. — o loiro deu uma risada sem graça, batendo com a mão contra o colchão — Droga! Eu vendi a alma para ter o Sammy de volta, não sou a pessoa mais indicada para te dar sermão sobre isso. — ele voltou os olhos para mim novamente, totalmente sérios de novo — Mesmo assim, se eu tivesse escolha, não deixaria que tivesse feito aquilo.

— Eu não me arrependo e faria novamente. — falei antes que o Winchester mais velho pudesse me fazer prometer qualquer coisa que eu tivesse que descumprir mais tarde. As cenas daquela noite voltando à minha mente como se tivesse acontecido há horas. Os quatro amarrados nas cadeiras e Alfred prestes a sacrificá-los para abrir um buraco na jaula de Lúcifer, e eu no chão, inútil e sem alternativas com as mãos de Elisabeth forçando a minha traqueia.

Eu não me arrependia da escolha que os tinha salvado, nunca poderia.

Apoiei um braço para me sentar na cama com o travesseiro no colo, e no momento que fiz isso, minha vontade era de voltar à posição de antes e dormir. Eu não queria pensar sobre o que havia acontecido ontem, sobre o cemitério, sobre os meus pais, a morte desnecessária de Brawian. Eu não queria mais sentir aquela sensação de derrota que parecia me sufocar a cada segundo, um peso nos meus ombros que me forçava para baixo e eu já não tinha mais forças para me erguer novamente.

— Eu também não me arrependo de ter ido para o inferno para trazer o meu irmão de volta à vida, e faria de novo. — concluiu Dean, balançando a cabeça em afirmação, então seus lábios se curvaram em um sorriso zombeteiro — É uma pena que ela não tenha mais tanto valor como antigamente, já que demônio nenhum quer comprar uma alma que possa ser resgatada por um anjo a qualquer momento. — ele rolou os olhos com sarcasmo.

Encarei-o confusa por instantes.

— Onde exatamente essa conversa está nos levando? — questionei com a testa franzida. O loiro segurou meu olhar por vários segundos, o vento da janela entreaberta balançava a cortina e fazia alguns mínimos raios de sol escapulirem pela mesma, contrastando nos olhos verdes e os deixando mais intensos ainda. Por um momento era como se eu estivesse olhando através do vidro que dava para uma campina verde com aroma de flores e brisa fresca, tão perto do olhar e anos luz de distância do toque.

— Até isso. — ele se inclinou na minha direção, me deixando estática imediatamente, passando um braço para me envolver e então me abraçou apertado — No quê você estava pensando? Nós somos uma família! Não pode fazer isso com a gente, não pode fazer isso comigo. Entendeu? — ralhou com o rosto por cima do meu ombro, me sacudindo um pouco.

De início eu fiquei sem saber o que fazer, a última coisa que eu esperava que acontecesse era isso. Depois do que eu fiz, eu não achava que merecia ser recebida de volta com um abraço, embora fosse o que eu mais queria. Quando o torpor da surpresa finalmente passou, eu me ajoelhei sobre o colchão e retribuí o gesto. Acabei me deixando levar pelo momento, e era como se a sensação de proteção que eu sabia que Dean exercia sobre mim fizesse com que eu encontrasse o meu lugar no mundo, encontrasse a minha casa. Apenas por um momento eu senti como se junto deles fosse o meu lar, e não uma maldita poça de sangue, como Crowley dissera. Mas a sensação logo se dissipou e eu caí na fria realidade.

Eu estava destinada e já havia provado isso das formas mais amargas diversas vezes. Então a única coisa que me restava era aproveitar os poucos dias que eu ainda tinha, e no momento em que percebesse que a bomba relógio estava prestes a explodir, eu desapareceria da vida deles. O certo seria partir agora, sem tchau, sem mala, sem nada, mas eu era egoísta o suficiente para querer prolongar minha estadia até não poder mais. O caçador me soltou devagar, inclinando o rosto para o lado a fim de me fitar. Percebi que meus olhos estavam marejados, porém mesmo que eu forçasse, nenhuma lágrima sairia por eles, já havia derramado meu estoque para um mês naquele cemitério. Vagas lembranças voltavam agora, lembranças de passar incontáveis minutos — talvez até horas — atirada sobre o colo de um anjo enquanto eu chorava até não poder mais.

Dean então sorriu e apertou meu nariz de maneira impertinente, conseguindo arrancar uma risada minha. Ouvi alguns passos silenciosos próximos à porta do quarto. Virei o rosto para procurar a pessoa que havia chegado e percebi que Castiel estava parado com a mão na maçaneta.

— Ah, eu posso voltar outra hora... — começou totalmente sem jeito, gesticulando para os lados, algo que ele raramente fazia. Senti minha face ficar vermelha, notando que para quem presenciasse de fora, a cena poderia parecer íntima demais já que o caçador e eu estávamos perto demais e ele repousava uma das mãos na minha coxa (o que tinha passado despercebido por mim até o momento). Afastei-me um pouco e o loiro levantou-se, espreguiçando os braços por trás da cabeça.

— Eu vou avisar para o Sam que você já acordou. — notificou apontando para mim e ao passar por Castiel, tocou seu ombro — Cuida dela, e se ela tentar fugir tem minha permissão para atirar. — brincou com um sorriso de lado, e antes de desaparecer pelo corredor, se virou para trás e fez uma sessão de gestos agarrando o ar e simulando um beijo, então apontando para mim e para o anjo sem ele notar. Abri a boca, sentindo minhas bochechas queimarem, completamente desconcertada. O caçador deu uma risada sonora e Castiel se virou, procurando o porquê da graça, porém o mesmo já tinha saído do nosso campo de visão.

— Eu nem tenho uma arma. — ele deu de ombros, ainda parado no mesmo lugar. Pigarreei, focando um canto qualquer próximo da parede enquanto o sangue deixava meu rosto e voltava a circular pelo resto do corpo. — Como você está?

— Tirando o fato de que o rei do inferno me fez fazer um belo papel de otária e eu ainda entreguei um vampiro Alfa para ele? — questionei batendo no colchão para que ele se sentasse — Sem contar, claro, que eu vi alguém que estava tentando me ajudar morrer por minha causa? Estou ótima!

— Sua definição de “estar ótima” me parece um tanto confusa. — o anjo franziu a testa e eu fechei os olhos, balançando a cabeça em negação. Aparentemente, Castiel ainda não entendia muito bem o quesito “sarcasmo”.

— Eu só quero dormir até a porcaria do fim do mundo. — murmurei com um suspiro — Quando você precisar me matar, seja bonzinho e faça isso enquanto eu estiver sonhando com pôneis coloridos no país das maravilhas. — dobrei as pernas, ficando na posição de pirâmide e apoiando os cotovelos nos joelhos enquanto encarava um ponto fixo no chão que tinha algumas manchas de bebida.

Ele esperou alguns instantes.

— Você fala como se não existisse outra opção, já conversamos sobre isso. — começou o anjo calmamente, segurando meu pulso com delicadeza. O toque mandando uma sequência de impulsos elétricos por todo o meu corpo.

— Não existe outra opção, porque não tem como parar essa profecia. — devolvi mais ríspida do que pretendia — Vou seguir o conselho do Crowley e aceitar os fatos. Eu sou uma assassina, droga! Até a porcaria dos meus pais biológicos eram, por que comigo seria diferente? — lembrei dos papéis com os nomes de todos os meus verdadeiros pais, eu não podia culpar o rei do inferno por jogar a verdade na minha cara, literalmente, mas eu tinha que culpar alguém, então que fosse ele.

— Seus pais nunca significaram nada. — garantiu Castiel, ajeitando-se sobre o colchão e imitando a posição que eu estava, só que com os braços estendidos para segurar minhas mãos por cima do cobertor.

— Você sabia? — indaguei com incredulidade, o mesmo assentiu calmamente — É claro que sabia... — murmurei com uma careta azeda, dando um grunhido em seguida. — Bem, coincidência é que não é. — suspirei, deixando que ele movesse meus dedos como quisesse, até enlaçar os mesmos nos dele. Em nenhum momento o anjo olhava para o que estava fazendo, parecia até um gesto involuntário o fato de ele ficar tocando em mim a toda hora.

— Ouça, eu sei que tudo parece perdido, mas não está. Nós vamos dar um jeito nisso. — prometeu aproximando o rosto para prender o meu olhar no dele, o azul intenso me fazia sentir como se estivesse prestes a dar um mergulho no infinito do oceano. Era uma sensação de agitação que causava frio na barriga, inquietação por não ter certeza da profundidade que estava lidando, mas acima de tudo era pressa de me ver envolta naquela água incerta. Talvez aquele mergulho fosse mais do que eu podia aguentar e então eu me afogaria, sendo tragada para o fundo do mar gelado, rumo ao esquecimento. — Eu sei que você não tem motivos para confiar em mim, mas se puder fazer só dessa vez...

Balancei a cabeça, saindo do estado de hipnose que estava.

— Por que se enganar? Aceite os fatos. — desvencilhei minhas mãos, meu tom soando tristemente amargo. Então bufei, arrastando as mesmas pelos cabelos. Eu tinha plena consciência de que estava sendo rude e utilizando aquela conversa como uma válvula de escape para todas as minhas frustrações, mas por mais que eu quisesse controlar, a minha boca emitia as palavras que eram processadas no meu cérebro mais rápido do que eu podia trancá-las.

— Você desistiu. — constatou com um suspiro depois de alguns segundos em silêncio.

— Me desculpe se eu não consigo ver o pote de ouro no final do arco-íris como você. — larguei carregada de sarcasmo — Eu simplesmente cansei, já perdi demais. A única coisa que eu tenho é o desejo de passar os restos dos meus dias moribundos aproveitando a droga da minha vida com as coisas mais humanas possíveis! — levantei da cama, abrindo os braços ao redor para enfatizar — Vou beber, fumar e transar até me acabar! Sabe por quê? — me inclinei próxima a ele, apontando para o meu próprio peito — Porque eu não tenho mais nada!

— É claro que você tem! — Castiel elevou a voz de maneira ofendida, segurando meus pulsos e me puxando no momento que eu pretendia me erguer, fazendo com que eu mantivesse a posição, a centímetros dele — Você tem... — começou e então parou com a boca aberta, fechando os olhos e recompondo-se imediatamente — Você tem o Dean.

— O Dean? — fiz uma careta confusa, abrindo levemente os lábios e esperando uma resposta. O anjo me soltou e colocou-se de pé, dando alguns passos até parar a cerca de um metro de mim.

— Vocês estão namorando, suponho que seja um laço afetivo importante. — disse gesticulando na minha direção e eu engasguei visivelmente, uma foto da minha cara de pastel nessa hora seria muito oportuna.

— Namorando? De onde você tirou tamanha besteira? — exclamei com meu tom subindo algumas boas oitavas pelas paredes do quarto.

— Depois do que vocês fizeram, eu achei que... — começou sem graça e eu apertei os olhos tentando me concentrar, então bati na testa ao lembrar: O episódio em que acabamos passando a noite no Impala e voltamos quase sem roupa para a oficina, isso havia ficado bem mal explicado. — Ah...

— Vamos esclarecer uma coisa: Ninguém tá transando com ninguém. — garanti começando a rir de constrangimento e nervoso — Foi um teste estúpido que ele quis fazer e acabou com você surtando e uma cozinha destruída. — o anjo abriu a boca, como se procurasse pelas palavras, mas nenhum som saia dali. Então ele olhou para cima com um suspiro aliviado e a minha cota de vergonha chegou ao limite por um dia — Castiel, eu quero ficar sozinha. Você pode, por favor, sair do meu quarto? Desse quarto... Eu nem sei onde eu estou! — esbravejei para as paredes azuis e desconhecidas a minha volta.

— Você está em Denver, na casa de Chuck, um profeta do senhor. — respondeu em seguida, recompondo o tom calmo e casual. Ele disse “profeta”?

— Um profeta? — arqueei uma sobrancelha em descrença.

— Pode se dizer que sim. — ele assentiu, me fitando com uma mão na nuca, a expressão adquirindo mais seriedade do que o normal — E por falar nisso, eu preciso que ouça uma coisa.

Descemos as escadas, chegando a uma sala de estar completamente bagunçada. Livros espalhados pelas mesas, móveis e chão, juntamente com roupas e objetos. No meio de toda aquela pilha de tralha, eu logo reconheci Sam, sentado com o notebook disputando espaço com algumas flanelas e papéis que estavam sobre a mesa. Assim que me viu, o moreno abriu um largo sorriso, colocando o computador de lado e em cinco passos com as pernas compridas já estava me levantando do chão para me abraçar.

— Ei, grandão. — atirei as mãos pelo seu pescoço ao mesmo tempo em que sentia minhas costelas se espremendo. Mesmo com um pouco de desconforto, eu sentia falta dos abraços de urso do Winchester caçula.

— Você nos deu um susto enorme. — falou aliviado contra o meu cabelo.

— Sinto muito. — murmurei com o tom constrangido. Então o moreno me colocou no chão, fitando meu rosto com um meio sorriso gentil.

— Não ouse fugir desse jeito de novo. — ralhou seriamente — O Bobby nos enxotou de casa, o Dean ficou insuportável. — gesticulou em volta revirando os olhos que hoje estavam castanhos claríssimos, quase azulados.

— Eu to ouvindo isso, Sammy! — pronunciou-se a voz do Winchester mais velho, pulando do meio de um amontoado de roupa suja que estava por cima do sofá. Encarei-o com espanto momentâneo enquanto o mesmo puxava uma camiseta do ombro. Sam começou a rir com a cena e eu o acompanhei.

— Quem é você? O monstro do chulé? — brinquei e o loiro jogou uma meia na minha direção, eu a agarrei no ar e joguei em Castiel, que segurou a mesma com a ponta dos dedos e com uma sobrancelha arqueada, então a despejou na minha cabeça, um sorriso impertinente se formando em seus lábios.

— Eu adoro quando brincam com as minhas roupas. — disse um homem de maneira entediada, saindo de uma porta logo atrás da mesa e ajeitando o roupão cinza por cima do pijama. Os cabelos castanhos bagunçados, a barba por fazer e as olheiras em torno dos olhos azuis denotava que ele deveria ser o dono da casa bagunçada.

— Você deve ser o Chuck. — apontei educadamente, segurando a meia com uma mão e estendendo a outra para cumprimentá-lo. O mesmo se aproximou para me olhar no rosto.

— E você a garota que eles tanto falam. — constatou erguendo o braço para pegar a peça de roupa e então virou as costas, andando até um grande cesto que transbordava em camisas e calças jeans, amassando-a lá dentro. Recolhi minha mão que havia ficado avulsa e encarei o Winchester caçula, o mesmo piscou com uma expressão de “não leve para o lado pessoal”.

— Chuck é o profeta responsável por escrever o evangelho dos Winchesters. — contou Castiel ao meu lado.

— Evangelho dos Winchesters? — indaguei surpresa e Dean levantou-se do sofá desabando uma avalanche de bagunça, indo até a mesa para pegar um livro na mão, na capa dizia “Sobrenatural”.

— Toda a nossa vida está nesses livros e naquela porcaria de computador. — apontou o loiro com a voz irritadiça — Cada mínimo detalhe, cada frase e cada site pornô que eu acessei. Menos uma coisa. — ele cruzou os braços jogando o objeto por cima do ombro totalmente displicente, virando-se para me encarar.

— E o que é?

Quem. — corrigiu Sam, fechando o notebook e voltando para recostar-se na lateral do sofá.

— Você. — gesticulou Chuck, respondendo a pergunta no ar — A história que eu escrevi é totalmente diferente, vocês nunca encontraram uma garota em Elwood. Não existe essa profecia, esse Jimmy ou essa Maison. No momento vocês acabaram de matar Eve e descobriram que Castiel está trabalhando com Crowley para abrir o purgatório e coletar as almas para derrotar Raphael. — contou com o tom um tanto elevado, quase como se estivesse frustrado com o desenrolar diferente da situação. Olhei de soslaio para o anjo e ele suspirou.

— Eles já sabem. — esclareceu imediatamente, logo ficando um tanto constrangido — E eu não estou mais atrás das almas. — acrescentou.

— Não existe mais segredos entre nós, tudo as claras. — revidou Dean, mexendo as mãos em frente ao corpo para enfatizar.

— A pergunta é: Por que eu não consigo vê-la? — continuou Chuck, andando alguns passos até ficar de frente para mim. Os olhos me observando como se quisessem ver algo de errado — É como se fosse uma história paralela a realidade, um caminho alternativo que não deveria existir. — ele acariciou o queixo por alguns instantes, dando um grunhido de insatisfação em seguida.

— Está dizendo que eu não existo? — questionei com descrença, colocando as mãos na cintura.

— Não nos meus livros. — falou o profeta calmamente.

Maravilhoso. — rolei os olhos com sarcasmo — Como vocês vieram parar aqui, afinal?

— Depois do que aconteceu, Raphael atacou a oficina com alguns anjos, provavelmente os símbolos de proteção devem ter sido afetados com os feitiços de Elisabeth. — contou Sam. — Nós conseguimos fugir a tempo. Mas decidimos nos separar desde então, para dificultar as coisas para ele. Bobby foi para o Arizona, Jimmy e Maison para o Brasil, e nós ficamos por aqui para te procurar.

— Então nós soubemos que Chuck estava em Denver. E partindo do princípio de que nada pode ameaçar a vida de um profeta sem que um arcanjo tenha que intervir, o melhor lugar para se esconder seria debaixo da asa de um. — emendou Dean, gesticulando para o mesmo como se fosse um trunfo.

— Mas Raphael é um arcanjo. — destaquei tentando encontrar a lógica.

— Exatamente. É tão óbvio que é brilhante. — o loiro abriu os braços com um sorriso genioso.

— E quando eles me contaram o que estava acontecendo eu não acreditei. — disse o profeta andando de um lado para o outro — Na verdade ainda não acredito. Por que depois de tanta coisa a história simplesmente muda? — questionou encarando cada um de nós por vez, completamente incrédulo.

— Será que você não está tendo problemas com as visões? — perguntou Castiel e o mesmo lhe lançou um olhar mortal.

— Não! Eu estou completamente normal, tenho visões, escrevo sobre elas e continuo a história. — disse sacudindo os braços no ar. Então arrastou uma mão pelo rosto com um sorriso nervoso — Só eu que acho que tem alguma coisa muito errada aqui?

— Talvez seja por causa da profecia. — o Winchester caçula deu de ombros — Não é algo que deva ser contado em um livro, sendo que é escondido até mesmo dos anjos. E como a Esther se envolveu tanto com a gente, a presença dela é meio que “apagada”. — ele franziu a testa, olhando para o lado como se buscasse por algo a mais — Mas isso não explica o fato das suas visões terem tomado um rumo totalmente diferente da vida real.

— Ela afeta nossas decisões, talvez seja o caminho que deveríamos seguir se ela não tivesse entrado em nossas vidas. — ponderou Castiel.

— Mas por que ele ainda está lá? Não deveria ser apagado conforme nós o mudamos? — perguntou o moreno.

— O debate nerd já acabou? — quis saber Dean, recostado na beirada da mesa com semblante entediado — O que deveria acontecer não importa, o que importa é o que nós estamos vivendo agora. Dane-se a literatura ruim, ninguém quer saber quantos cheesburguers de bacon eu comi ontem.

— Isso não é engraçado. Essa garota vai acabar ferrando todos nós! — vociferou Chuck, sacudindo um dedo acusador para mim. Instintivamente eu recuei alguns passos, procurando por Castiel e o mesmo me lançou um olhar tranquilizador.

— Relaxa, o Chuck é igual barata. Tem mais medo de você do que você dele. — afirmou o Winchester mais velho. Suspirei franzindo os lábios, eu mal tinha voltado do mundo dos sonhos e já me sentia exausta novamente.

— Acho que eu vou dormir. — sibilei me dirigindo para a escada, os passos pesados pareciam demorar mais do que o necessário para obedecer meus comandos.

— E vai ignorar o fato de que você não deveria existir? — insistiu o profeta com impertinência. Ou ele realmente não ia com a minha cara ou estava assustado com o fato de eu ser uma incógnita no seu futuro previamente descrito. Mas se eu existia ou não no tal evangelho que seria contado algum dia, isso não importava. Eu não tinha feitos para me orgulhar, para espelhar as futuras gerações. Eu não tinha nada, de qualquer forma. Ser lembrada ou não, não importava.

— Boa noite para vocês. — murmurei subindo os degraus e deslizando a mão pelo apoio um pouco empoeirado.

— São oito e meia da manhã. — Sam arqueou uma sobrancelha olhando de soslaio para o relógio digital ao lado da televisão.

— Não importa. — dei de ombros e continuei trilhando meu caminho até o segundo andar.

Duas semanas depois.

— O que você acha? Depressão? — sussurrou a voz baixa e controlada do Winchester caçula do lado de fora do quarto.

— Ela não come direito, não fala com ninguém, não sai desse quarto, só quer dormir. — Dean enumerou a minha lista de atividades nas últimas semanas como quem enumera um resultado de exames terminais — Só pode ser isso.

— Temos que tirá-la dali. — continuou o moreno, enfiando a cabeça na abertura da porta como se eu não pudesse ver a sombra que ela fazia.

— E fazer o quê? Levar para passear? — ouvi o loiro dar uma risada sarcástica.

— Não é uma má ideia. — ponderou Sam.

— Por que você não a leva para assistir um desses filmes de menininha? Talvez o Pattinson a anime um pouquinho. — instruiu o mais velho.

— Por que eu tenho que ir ver o filme de menininha? — lamentou-se o Winchester caçula com um grunhido baixo.

— Por que combina mais com você e esse cabelo.

— O que tem o meu cabelo? — perguntou descrente.

— É de menininha. — constatou o irmão, e pelo baque a seguir devo constatar que o loiro levou um tapa. Suspirei pesadamente.

— Caras, eu to ouvindo tudo o que vocês estão falando. — comecei virando-me de barriga para cima, dando de cara com o teto iluminado pela luz que vinha da janela — Não preciso de intervenção ou que me internem em uma clínica de reabilitação. Só preciso de um tempo.

— Mas já se passaram duas semanas. — Dean se enfiou porta adentro, debruçando-se sob a maçaneta com as mãos apoiadas — Aposto que você nem sabe que mês nós estamos.

— Claro que sei, em outubro. — devolvi virando o rosto para observar os olhos verdes desafiadores.

— Baaang! Respostas errada, é novembro. — gesticulou divertido e eu fechei as pálpebras, desanimada até mesmo para rir.

— Tanto faz. — dei de ombros com o tom tão baixo que até eu tive dificuldade para me ouvir — Meu irmão deu notícias? — indaguei com uma pontada de esperança. Já fazia duas semanas que eu estava aqui e nem sinal de Jimmy, nenhuma ligação, nada. Eu estava tão preocupada, mas por outro lado sabia que se ele estivesse com Maison, ele tinha mais chances de estar seguro. Por várias vezes aquilo que Lúcifer dissera sobre o nefilim ser da linhagem dos Caçadores de Sombras passara pela minha cabeça, tirando meu sono. Poderia ser verdade? Eu me recusava a acreditar em uma coisa dessas. Se já não bastasse Castiel tendo que me matar, ter que lidar com o fato de que eu irmão poderia ser designado para me caçar era aterrorizador demais.

Era azar demais.

— Jimmy não ligou... — Sam fez uma expressão de pesar, inclinando a cabeça de lado por um momento. Seus olhos hoje estavam mais escuros, porém ainda tinha um leve brilho esverdeado. — Mas Maison disse que está vindo para cá. — emendou um pouco mais alegre.

— Quer torta? — perguntou o Winchester mais velho, um sorriso animado brotando em seu rosto ao pronunciar o nome da comida preferida.

— Não, obrigada. — descartei virando-me para a parede novamente e abraçando o travesseiro macio com a fronha azul clara. Eu passava tanto tempo ali que o meu cheiro já havia impregnado nas roupas de cama, o que tornava o local aconchegante para dormir.

— Chega! Eu vou chamar o Castiel. — decretou o loiro depois de alguns segundos em silêncio, logo abaixando a voz conforme o irmão sibilava para que o mesmo fizesse silêncio — Ela negou torta, a coisa é séria.

Castiel. Desde o dia em que eu cheguei aqui, eu não havia o visto mais. Talvez ele finalmente tivesse aceitado os fatos como eu pedi que fizesse, e o melhor a fazer nesse caso seria se afastar. Ao mesmo tempo em que eu queria desesperadamente sua presença, eu sabia que precisava me desapegar, pois sentia que o tempo estava acabando a cada volta que o ponteiro do relógio dava.

— Fecha a porta. — pedi ao ouvir os passos deles se afastarem, mas ao invés disso, um baque ecoou do andar debaixo e segundos depois uma voz apresentou-se as minhas costas.

— Onde está a moribunda? — perguntou Maison com o tom alto e ativo ecoando pelas paredes. Grunhi apertando os olhos em lamento. Não que eu não estivesse feliz em vê-la, mas já sabia que meus dias trancada dentro do quarto acabariam agora.

— Se decompondo no colchão. — sinalizou Dean e então o ruído dos saltos batendo contra o assoalho se aproximaram da cama.

— Eu não vim do Brasil até aqui para ver você jogada como se fosse uma velhinha de cem anos. Pode levantar daí. — ordenou dando a volta para ficar na minha frente, puxando o travesseiro das minhas mãos. — E os rapazes, vão dar um volta. Todos vocês. — acrescentou batendo palmas e em seguida passos se arrastaram pelo corredor.

— Maison, por favor... — grunhi novamente, suplicante.

— Não tem “por favor” e nem “meio por favor”. — interrompeu a garota, segurando o cobertor e o tirando de cima de mim. Então me lançou um olhar autoritário — Eu vou ter que te chutar escada abaixo ou você vai tomar um banho e colocar uma roupa bem bonita? E sem reclamar.

Sentei no colchão, bufando e contragosto. Eu preferia levantar por vontade própria a ser arrastada, algo que eu tinha quase certeza que ela faria caso eu me recusasse a ir de bom grado. Catei algumas peças de roupa e andei relutante até o banheiro, onde liguei o chuveiro aguardando até que a água esquentasse na temperatura ideal.

Fiquei vários minutos dentro do box, meus músculos doloridos pareciam um pouco melhores após o banho. Enrolei-me na toalha, me secando e vestindo a calça jeans e camiseta de mangas compridas vermelha.

Logo que sai do banheiro, percebi que Maison estava saindo da cozinha com um sanduíche de carne em um prato branco.

— E o Jimmy? — perguntei levantando a cabeça a fim de procurar pela figura do nefilim em algum lugar do cômodo.

— Ele ficou cuidando de um caso. — esclareceu a mesma, colocando o objeto em minhas mãos — Sanduíche de carne, nham nham — incentivou apontando para o mesmo.

— Achei que vocês fossem grudados. — arqueei as sobrancelhas, arrastando-me até a mesa, onde puxei uma cadeira para sentar. Empurrei um pouco os livros de Chuck para que o prato pudesse caber na superfície.

— Nem sempre. — ela deu de ombros, então puxou um papel dobrado do bolso da calça e o abriu, colocando-o em frente ao meu rosto. Era um recorte de jornal. — Eu vim por causa disso.

— Eu não sou caçadora e não quero um caso. — Desviei a atenção para baixo, onde meus dedos brincavam com o pão sem nenhuma vontade de comê-lo.

— Não vai nem ler? — insistiu ocupando a cadeira ao meu lado. Suspirei e pousei meus olhos no papel.

— Três garotas desaparecidas em Elwood... — comecei observando a foto do prédio com um grande portão de ferro, imediatamente reconhecendo o lugar. Segurei o recorte com as mãos para ver melhor — Espera, essa é a Saint Michael, minha antiga escola?

— Vítimas retalhadas, corações faltando. — assentiu acrescentando as informações conforme eu lia.

— Lobisomem? — arrisquei.

— É o que tudo indica. — ela balançou a cabeça em aprovação novamente — Se sairmos agora dá tempo de chegar para a formatura.

Geralmente as formaturas aconteciam em novembro, pois o terceiro ano na Saint Michael era mais enrolação do que matéria, diga-se de passagem. Lembrei que era a minha turma que iria se formar e o desânimo tomou conta de mim rapidamente. Por que eu iria querer ir lá para ver isso sendo que não fazia mais parte da minha vida ou meu futuro?

— Dean e Sam podem cuidar disso. — atirei o papel para Maison novamente.

— Na verdade, eu acabei de despachar todos os homens da casa. — elucidou com um sorriso de lado — Você precisa de... Como os humanos chamam mesmo? Ah! Uma noite de garotas. — vibrou sacudindo os braços ao lado do corpo.

— Tá brincando, né? — encarei-a sem o menor divertimento. Uma noite de garotas seria algo como assistir filmes, pintar as unhas e falar de homens, não caçar lobisomens por aí. Arrastei as mãos pelo rosto.

— Parece que eu to brincando? — indagou com a expressão séria e ameaçadora.

— Certo... Certo... — suspirei derrotada, balançando a cabeça com um sorriso sem qualquer graça — Podemos sair em quarenta minutos. — dei-me por vencida e nós ficamos em silêncio por alguns instantes, mas logo uma curiosidade me veio à mente — Você tem visto o Castiel?

— Faz algumas semanas que eu não o vejo, parece que ele está pesquisando alguma coisa na placa da revelação. — revelou a garota, displicente. Arqueei uma sobrancelha.

— Vocês já não tinham revirado essa placa e não acharam nada?

— Nós fomos até certa parte, então ele disse que não havia nada de importante e sumiu com ela. — esclareceu e eu franzi a testa — Você tem trinta e oito minutos. — contou Maison, empurrando o prato mais para perto de mim e apontando para o relógio. Bufei e, mesmo sem apetite algum, decidi comer. Afinal, saco vazio não para em pé e não caça lobisomens.

Devo dizer que sair da minha zona de conforto e pular na garupa da moto suicida de Maison não foi uma coisa fácil de ser feita. Não é porque ela não podia morrer facilmente que eu gostaria de virar um patê no asfalto caso colidíssemos com algo no meio do caminho. Foram algumas horas de viagem até Indiana, burlando todas as possíveis barreiras policiais entrando em atalhos perigosos e ultrapassando todos os sinais de trânsito. Eu não sei como ainda estava viva depois da corrida alucinada que fizemos.

Logo que entramos nos limites da cidade, eu comecei a reconhecer as casas e comércios familiares. Uma sensação de nostalgia me invadia por completo. Maison dirigiu até um estacionamento pago no centro, onde colocou a moto e jogou uma mochila preta e pesada no ombro.

— A hora custa três dólares, moça. — avisou o possível dono do local quando nós estávamos prestes a sair dali. Escavei meus bolsos, procurando por algum dinheiro que pudesse ter ali, mas a loira foi mais rápida ao se aproximar do homem de meia idade com boné laranja de aba para trás.

— Eu te dei dinheiro suficiente para deixar a moto aqui até o final da noite. — disse olhando-o fixamente nos olhos. Então o mesmo abriu a boca por um segundo, sacudindo a cabeça e assentindo em seguida, como se ela realmente tivesse acabado de pagá-lo. Ela voltou-se para a saída e eu a encarei com desaprovação. — Que foi? Ser um anjo caído tem suas vantagens. — retrucou para mim quando o homem já não podia mais ouvir.

Começamos a andar pela calçada, sob os olhares curiosos de alguns moradores que deviam estar estranhando os dois rostos novos. Coloquei uma mão próxima a minha bochecha, como se estivesse frequentemente ajeitando o meu cabelo, tentando ocultar minha identidade para alguém que possivelmente fosse me reconhecer. Tudo bem que eu morava em um lugar afastado e não tinha muita interação com os moradores, mas mesmo assim Elwood não é do tipo de cidade que esquece um rosto facilmente, muito menos se ele saiu no jornal.

— Qual é o plano? — comecei enquanto seguíamos pelo quarteirão — Eu simplesmente vou chegar na minha antiga escola, reencontrar os amigos que devem achar que eu morri e fazer algumas perguntas sobre um lobisomem que está comendo corações por aí? — questionei sarcástica e Maison me interrompeu, tirando uma máscara preta de dentro da mochila e a colocando as minhas mãos da sua casual maneira brusca — Que diabos é isso?

— Baile de máscaras, ninguém vai reconhecer você. — a loira apertou os olhos para o céu que começava a escurecer gradativamente com a noite que se aproximava.

— Maravilhoso. — sibilei irritadiça.

Terminei de passar o batom vermelho e ajeitei o cabelo que estava preso em um rabo de cavalo no alto da cabeça. O vestido revestido com brilhos avermelhados combinava com o salto agulha e a máscara de lantejoulas negras. Mais uma vez eu tinha que agradecer a Maison, que parecia ter uma grande satisfação em me fazer vestir roupas curtas e chamativas.

Dei uma última olhada no espelho trincado e respirei fundo antes de sair do banheiro público do shopping, parando na porta para tirar um pedaço de papel higiênico que havia grudado no sapato. Desci de elevador com diversos olhares em mim, já que o meu vestido chamava mais atenção que fogos de artifício, então caminhei ruidosamente pela calçada após passar pela porta giratória. Franzi a testa com surpresa ao avistar a loira escorada na parede de uma oficina mecânica que já estava fechada, a mesma usava um vestido vermelho com duas grandes asas revestidas de plumas brancas e macias nas costas.

— Um anjo caído com asas de mentira. — dei um sorriso de lado ao me aproximar e ela revirou os olhos claros, ajeitando a máscara branca no rosto.

— Pronta para a festa? — indagou levemente animada — Algo me diz que hoje vai ser inesquecível.

— Admito que estou com a mesma sensação. — murmurei encarando o horizonte enegrecido pela noite, na direção que devíamos seguir. O céu sem lua ou estrelas deixada as ruas mais escuras e amedrontadoras do que realmente pareciam, mas muito mais que isso, uma sensação de mal estar preenchia meu peito. Um pressentimento ruim sobre as próximas horas.

Mas o que mais poderia dar errado, afinal?

Passamos pelos grandes portões da Saint Michael já com as máscaras alguns minutos depois. Vários adolescentes e até mesmo professores seguravam copos de ponche — que eu tinha quase certeza que havia sido batizado por algum dos veteranos, eles sempre faziam isso — e conversavam alegremente do lado de fora. Havia diversas fantasias, Batman, Mulher Gato, vestidos de princesa, Diabinhas, Bruxas, Homem-aranha, era mais opções do que eu podia contar. Atravessei o pátio sentindo minha nuca formigar cada vez que via olhares em mim, com receio de que alguém pudesse me reconhecer, então o plano era ficar longe dos mais conhecidos, não que eu tivesse muitos.

Nós seguimos a batida da música até o ginásio de esportes, que agora era o centro da festa e pista de dança. Globos coloridos enfeitavam o teto e alguns estudantes tinham latas de tinta neon nas mãos, pintando uns aos outros com cores berrantes que provavelmente não sairiam das roupas tão facilmente. Um painel enorme decorava a entrada, passando fotos dos formandos, e logo em cima do palco improvisado estava uma mesa com vários certificados.

Senti-me estranha ao perceber que eu deveria estar aqui hoje, não caçando um lobisomem, mas sim recebendo um daqueles certificados junto com meus colegas.

— Por onde começamos, Capitã? — questionei me voltando para Maison, que estava chamando atenção desnecessária da parte masculina da festa.

— A maioria das vítimas eram garotos por volta dos dezessete anos. Fale com todos que conseguir, eu vou fazer o mesmo. — revelou inclinando-se perto do meu ouvido, em seguida me empurrando em direção a um bolinho de estudantes próximos do painel.

— A maioria dos garotos de dezessete anos é da minha antiga classe! — protestei controlando meu tom para não ser ouvida e a mesma apenas piscou.

— Então sugiro que faça uma voz diferente para não ser reconhecida. — instruiu desaparecendo no meio de várias fantasias.

Bufei de raiva, o último lugar na Terra que eu queria estar era aqui, pelo menos hoje. Era como se esfregasse na sua cara o bilhete de loteria que você perdeu e outra pessoa achou. Fui até a mesa e servi o copo de plástico colorido com ponche até a borda, logo constatando a minha teoria sobre o batismo da bebida, aquilo era pura vodka. Virei tudo goela abaixo, fazendo uma careta ao sentir o álcool na minha boca. Então procurei o primeiro que seria interrogado, meus olhos parando em um garoto que estava sozinho perto da porta de saída.

Pigarreei a fim de deixar a voz mais rouca do que o normal.

— Olá — cumprimentei com um sorriso e ele virou o rosto coberto pela máscara azul com penas para mim, retribuindo o gesto e imediatamente passando a mão pela minha cintura — Ei! Vai com calma. — pedi me desvencilhando sem graça. O mesmo cambaleou um pouco para o lado com uma risada e eu logo percebi o problema, esse já estava caindo de bêbado. Aposto que seria o primeiro a vomitar o banheiro inteirinho.

— Qual é, gatinha... — começou me puxando de volta e eu tentava manter distância com os braços apoiados no seu peito. Franzi a testa ao ouvir seu tom que não me era estranho. Então observei melhor os cabelos loiros e olhos castanhos por baixo da máscara. Eu não tinha dúvidas, se tratava de Derek Bones, o garoto mais nerd com quem eu já havia estudado. Ele havia crescido uns bons centímetros, porém ainda continuava magricela e atirado depois de meia dose de vodka.

Mas já que eu estava ali e era quase certo que a esponja de álcool não iria se lembrar dessa conversa depois, decidi começar minhas perguntas descaradamente.

— Você viu alguma coisa de diferente pela escola nos últimos dias?

— Você é diferente. — constatou inclinando-se para me beijar e eu desviei para o lado.

— Digo algo peludo, com garras, dentes afiados e que come corações. — acrescentei passando os dedos pelas penas que pendiam próximas ao rosto dele, me surpreendendo internamente por estar tentando arrancar informações de um garoto na base da sensualidade. Isso era algo novo. — Um lobo grande, feio e fedorento.

— Posso ser seu lobo mau se você quiser. — Derek sorriu segurando a minha máscara e eu imediatamente retirei a sua mão dali com um tapinha leve.

— Prefiro saber se você viu algum. — sorri constrangida, percebendo que eu já estava praticamente deitada para trás enquanto tentava fugir das investidas dele.

— Ei! Larga meu namorado, sua vaca. — protestou uma voz aguda perto do meu ouvido, ressoando até o meu cérebro de um jeito irritante. Eu me virei e levei um susto com a garota loira de vestido cor de rosa e uma espécie de chapéu gigantesco com vários laços de fita na cabeça. A mesma não tinha nada lhe cobrindo o rosto, então eu imediatamente a reconheci: Amélia Hoyer, a chefe das líderes de torcida.

Quem diria que ela algum dia iria namorar alguém como Derek Bones. Parece que as coisas mudaram bastante por aqui.

— Tchau, lobinha. — o loiro sussurrou alegremente no meu ouvido, segundos antes de ser puxado por Amélia que fez questão de esbarrar no meu ombro e derrubar o ponche que estava carregando no meu vestido.

— Quem me agarrou foi ele! — exclamei estupefata enquanto os via desaparecer — Sua vaca. — acrescentei trincando os dentes.

— A Amélia te deu um belo banho. — uma mão me estendeu um lenço de papel e eu prontamente aceitei, enxugando o máximo que conseguia da bebida que começava a ficar grudenta — Quer ajuda?

— Obrigada. — agradeci, então levantei os olhos para quem quer que estivesse ali e congelei no lugar, diante das feições conhecidas.

— Eu sou Lucas. — o mesmo estendeu a mão para me cumprimentar. Depois de Daniel, Lucas era o mais próximo de um amigo que eu tive na Saint Michael, era a última pessoa que eu podia conversar porque ele com certeza me reconheceria.

— Eu sou... Rachel — emendei com o tom de voz mais forçado ainda.

— Nunca te vi por aqui, e também não me lembro do seu nome o que me faz pensar que você não é da Saint Michael. — considerou o moreno, simpático. Diferente dos outros estudantes, ele não estava fantasiado, apenas vestia um terno formal e segurava uma máscara preta na mão direita.

— Eu vim com uma amiga. — gesticulei para trás.

— Vou admitir que quando te vi de costas achei que você fosse outra pessoa, uma amiga que desapareceu. — contou com um sorriso um tanto decepcionado — Vocês são muito parecidas. Expirei com uma risada nervosa.

— Deve ser impressão sua. — comprimi os lábios, desviando o rosto para o lado e percebi que Lucas estreitou os olhos para me observar. Então ele abriu a boca, como se estivesse prestes a falar alguma coisa, mas fomos interrompidos antes.

— Lucas, posso falar com você um instante? — questionou uma mulher com vestido dourado e longos cabelos cacheados descendo pelas costas nuas e bronzeadas. A mesma usava uma máscara de tigresa com algumas penugens.

— Claro, professora. — assentiu imediatamente, então me encarou — Eu já volto, Rachel. — emendou seguindo a mesma para fora do ginásio.

Eu tinha que sumir dali o mais rápido possível.

Sai da pista, entrando na ala dos banheiros e dobrando, o que me levava diretamente para o corredor que daria para as salas de aula. Eu não podia fazer isso, não podia. Tirei a máscara, ajeitando algumas mechas do cabelo que haviam se desprendido e respirando fundo. Sem me dar conta, eu havia vindo parar na frente do mural da escola, onde ficavam alguns troféus, medalhas e fotos. Uma grande estatueta dourada dentro de uma pequena vitrine representava o primeiro lugar no torneio de basquete, várias medalhas com fitas de diversas cores para as vitórias dos clubes de natação de xadrez, e mais a frente tinha um mural com imagens dos eventos que a Saint Michael participou.

Rolei os olhos pelo tecido azul marinho que revestia o painel, para as fotos. Em uma delas o diretor cortava a fita para inaugurar a nova Instituição de ensino — nessa época ele ainda tinha algum cabelo na cabeça e não usava óculos —, em seguida vinham os professores com alguns de seus melhores alunos. Havia uma com a tal professora tigresa que eu conheci segundos atrás, na legenda dizia “Jenna McLynn”, deveria ser nova ou então estagiária, pois eu não me recordava dela. Mais embaixo havia imagens de alguns estudantes que se saiam bem nos eventos. Passei os dedos por uma fotografia em particular, minha garganta se apertando enquanto podia relembrar o momento, mas era como se tivesse sido há muitos anos atrás.

Nela estávamos Daniel e eu representando a escola na feira de ciências do estado, onde ganhamos em primeiro lugar com um simplório vulcão de argila. Na época eu não conseguia acreditar que havíamos ganhado com algo tão patético, mas agora eu tinha certeza que o meu melhor amigo deveria ter trapaceado com seus poderes de anjo caído para que isso acontecesse. Era como se eu estivesse olhando para um filme em preto e branco, uma época congelada no tempo que havia sido arrancada de mim injustamente.

Eu deveria estar me formando hoje, enchendo a cara, arrumando as malas para a faculdade, começando uma vida. Mas ao invés disso eu me despedia dela cada dia que se passava e isso era tão injusto. Eu tinha tantos planos, tanta coisa que queria ver, sentir, aprender. Agora elas parecem tão distantes, assim como essa fotografia no mural.

Por que eu sentia que o tempo tinha passado para todo mundo menos para mim? Todos haviam mudado, feito escolhas, tornaram-se pessoas maduras. E eu continuava congelada no tempo, sem ter sequer uma esperança de que um dia eu poderia ser normal novamente. Havia um vazio dentro de mim que eu não sabia como preencher.

Limpei uma única lágrima que escorreu solitária pelo meu rosto.

— Esther! — mesmo antes de reconhecer a voz de Maison, eu já estava recolocando a minha máscara apressada. A mesma veio até mim rapidamente, a boca aberta.

— O que houve?

— O lobisomem atacou novamente. — pronunciou séria, tocando meu braço para que eu a seguisse.

— Quem? — questionei enquanto a deixava me guiar por entre a multidão que se embolava na saída do ginásio, provavelmente incitava pela curiosidade de ver o que havia acontecido.

— Um garoto. — exclamou por cima do barulho da música.

Fomos até o local onde várias pessoas se aglomeravam para ver a cena, as mais da frente colocavam a mão na boca, totalmente incrédulas. Empurrei uma garota para o lado enquanto a mesma chorava desconcertada e quase cai para trás, minha respiração trancando por dois segundos. Lucas estava sentado no chão com pernas e braços estirados como se fosse um boneco inanimado, sangue manchava a calçada e a parede atrás dele. Mas o mais chocante era o buraco oco em seu peito e a expressão de pavor em seus olhos castanhos.

Sai do meio de toda aquela confusão, apertando as mãos na tela que havia próxima da quadra de vôlei. Ouvi Maison me seguir em silêncio.

— Eu o conhecia. Era um dos únicos amigos que eu tinha aqui, e agora ele está morto. — fiquei alguns segundos lutando contra a sensação de inconformidade e amargo que palpitava dentro de mim, de repente uma pergunta que eu me fiz dias atrás ecoava na minha cabeça como um martelo batendo na superfície de pedra: “Quem eu estava culpando por tudo? E por que eu queria me convencer a não culpar?”. — Por que todos que eu conheço morrem? O que eu fiz para Deus, porque ele me castiga tanto? — rosnei ao enfatizar a última palavra, apertando as mãos fortemente contra a grade, como se pudesse arrancá-la dali e jogar por cima do telhado para extravasar minha fúria.

— Você pode ver isso como um castigo, mas eu vejo como uma provação. — disse a garota calmamente, seu tom transmitindo tanta tranquilidade que só conseguiu me irritar mais ainda — Nosso pai pode ser inflexível às vezes, mas ele não é cruel, Esther.

Dei uma risada de escárnio.

— Falou aquela que caiu. Onde estava seu pai naquele momento? — zombei rouca e sarcástica, só tendo plena consciência das minhas palavras depois que elas já haviam sido ditas. Apertei os olhos, me odiando por um segundo. A coisa mais sagrada para um anjo era suas asas e a ideia de seu pai, ou Deus. Gracejar à custa disso era terrivelmente cruel, além do mais com ela que nunca fez nada além de me ajudar. — Desculpe, eu não sei porquê falei isso.

— Eu sinto muito pelo seu amigo. — Maison inspirou profundamente, como se estivesse recompondo-se. Um silêncio constrangedor se estabeleceu entre nós por vários segundos que eu precisei olhar por cima do ombro para verificar se a mesma ainda estava ali — E parece que nós perdemos a pista do lobo, ele não vai se arriscar duas vezes em uma noite. — falou por fim.

— Se arriscar... — sussurrei para mim mesma, uma ficha crucial caindo de repente. — Maison, se você fosse uma loba sedutora, qual seria sua presa mais fácil?

— Garotos idiotas. — ela deu de ombros com a resposta mais óbvia.

— A professora nova, Jenna McLynn. — gesticulei voltando-me para a loira.

— Uma professora? É genial. — a mesma falou em um tom quase elogioso, franzindo a testa — Você acha que ela ainda está aqui?

— Eu vi Lucas há poucos minutos, nesse meio tempo ela deve tê-lo atraído até aqui e o matado. — continuei dando uma breve olhada para a multidão afastada que estava em torno do corpo, a polícia estava acabando de chegar juntamente com o carro do Instituto médico legal. — Suponho que esteja tentando sair despercebida ou então lanchando por aí.

— Vamos nos dividir. — instruiu Maison, apontando para a minha coxa esquerda onde eu havia camuflado o revólver por baixo do vestido — Use a munição de prata e acerte no coração.

— Vamos caçar a “She Wolf”. — murmurei com um sorriso lascivo brotando no meu rosto, por algum motivo a ideia de caçar e acabar com a raça de Jenna fazia com que eu me sentisse tão bem quanto não me sentia há dias, talvez semanas.

Dissimuladamente eu disse para que Maison procurasse na parte de trás da escola, pelo lado de fora, e aí eu ficaria com a parte de dentro. Mas o que ela não sabia é que a Saint Michael tinha alguns rumores de ser mal assombrada — lendas criadas por ex-alunos a fim de assustar os calouros —, por isso nem mesmo os vigias noturnos iam até certa parte do prédio à noite. Seria o lugar perfeito para um monstro se esconder. Entrei pelos corredores silenciosos das salas próximas a piscina, fechando a porta atrás de mim com delicadeza. Retirei a arma que estava prensada contra a minha coxa e a destravei, engatilhando.

— Lobinha, lobinha. — assoviei como se realmente estivesse chamando um cachorro enquanto caminhava atenta — Aqui, lobinha.

— É interessante quando a comida vem procurar você. — pronunciou-se Jenna, escorada contra uma das portas das salas de aula. Ela chupava os dedos sujos de sangue, os respingos escarlate se estendendo pelo vestido e os cabelos em um tom de loiro dourado.

— Vermelho não combina com você, amiga. — comentei sarcasticamente e a mesma me encarou dando uma risada gutural. A loba correu até mim, saltando no ar com as unhas e dentes afiados cintilando. Aparentemente ela não era do tipo que gostava de estender as preliminares, então ótimo.

Rapidamente eu desferi um tiro, acertando seu ombro, o que fez a mesma dar um urro de dor. Ela levantou-se e eu apertei o gatilho novamente, dessa vez a bala acertando sua perna, em seguida a outra, coxa, abdômen, tórax, barriga, braços. Eu podia mirar certeiro no coração, mas torturá-la dessa forma parecia aliviar toda a frustração que eu sentia, e isso era bom. De repente nada mais importava, a sensação de vazio que eu sentia parecia se preencher a cada grito de dor.

— Por favor... Pare... — implorou caindo de joelhos e com várias marcas de tiro pelo corpo. — Me mate logo.

— Matar você? Seria fácil demais — sorri mordaz, atirando contra o seu queixo e desfigurando parte do seu rosto, Jenna se jogou contra o piso com gemidos descompassados de dor, lavada em sangue. Eu estava prestes a apertar o gatilho novamente, mas antes que pudesse fazê-lo, o ruído de uma lâmina cortou o ar. A loba estendeu-se no chão com o objeto cravado no peito e Maison passou pela porta.

— Lâminas angelicais matam vários tipos de criaturas — ela deu de ombros, indo até a mesma a fim de retirar sua arma. Então me encarou por alguns instantes — Não sabia que sua mira era tão ruim.

— Parece que é. — admiti sem graça, com um misto de sensações me confundindo. Eu estava frustrada pela minha brincadeira ter acabado tão rápido e também estava aterrorizada comigo mesma por estar gostando de torturar para me sentir melhor. Tudo bem que era um monstro que matava pessoas, mas mesmo assim...

Um farfalhar de asas encheu o ambiente, imediatamente despertando a minha atenção.

— Cruzes, Castiel! Isso é jeito de aparecer? — sobressaltou-se Maison, virando-se para o anjo com uma expressão irritada. Ele deu alguns passos na minha direção, me fitando fixamente.

— Preciso falar com você em particular. — proferiu ainda sem desviar os olhos de mim, voltando-se para a garota calmamente — Vá para casa, irmã. — disse e ela franziu a testa.

— Ele bebeu o quê? — questionou confusa. E antes que eu pudesse dizer alguma coisa, ele segurou meu antebraço, nos tirando dali. Fechei os olhos por ter sido pega tão desprevenida, desequilibrando um pouco quando meus pés alcançaram o chão de madeira que guinchou com o meu peso.

Encarei as paredes escuras do pequeno cômodo que parecia ser uma sala inutilizada há tempos — devido à grande quantidade de pó. As janelas compridas revestidas de metal negro nas bordas estavam fechadas, mas mesmo assim eu conseguia ver o alto dos prédios do lado de fora.

— Onde nós estamos? — indaguei retirando a minha máscara e acompanhando Castiel se afastar em direção a uma mesa com vários objetos. Dentre eles estava uma tigela com ervas, uma adaga com cabo de prata e água.

— Um apartamento qualquer em Londres. — contou casualmente enquanto eu a jogava de lado.

— Londres? — arqueei uma sobrancelha, desconcertada. Então o mesmo segurou a adaga sobre a mão direita.

— O lugar não importa, peça para Balthazar levar você para casa assim que acabarmos. — e dizendo isso passou a lâmina pela pele, fazendo um filete de sangue escorrer para dentro da tigela de porcelana que estava logo abaixo, apertando o punho para que vertesse uma quantidade maior.

Engoli em seco, instintivamente recuando vários passos até dar com as costas na parede fria.

— Por que eu não estou gostando nada do rumo dessa conversa? — perguntei nervosa e Castiel virou-se para me fitar, andando até mim e elevando minhas mãos para cima com movimentos rápidos. Foi aí que eu notei as braçadeiras presas na altura da minha cabeça, e agora as mesmas envolviam meus pulsos fortemente — Por que me prendeu? Castiel, o que está acontecendo? — insisti com a voz alterada diante do silêncio dele, que era mais aterrorizador do que qualquer coisa.

— Eu não vou machucar você. — afirmou me encarando com uma careta derrotada. Seu semblante não era ameaçador, muito pelo contrário, ele estava tão calmo quanto possível, porém algo em seus olhos deixava uma tensão no ar.

— Me diga o que está havendo.

— Você se lembra da placa da revelação? — começou voltando-se para a mesa e pegando a tigela em mãos, misturando as ervas com o sangue.

— Que nós quase morremos para pegar e era inútil? — meu nervosismo por estar presa sem saber o porquê deixando meu senso de sarcasmo mais aguçado do que nunca — Claro que lembro.

— Não é tão inútil. Passou despercebido por Balthazar e por Maison, mas tem um feitiço escondido nela. — Castiel colocou algumas gotas de água, que provavelmente deveria ser benzida, e em seguida a mesma quantidade de um óleo que perfumou o ambiente com um leve aroma de alecrim — É uma transferência que só pode ser feita entre o Guardião e a Protegida. — revelou passando uma das mãos por cima da tigela e fazendo a mesma pegar fogo de repente, me sobressaltando.

— Pode me explicar do que você está falando? — questionei atônita ao vê-lo caminhar na minha direção com o objeto — Eu estou tentando entender, só que tem muita coisa passando pela minha cabeça agora. Muita coisa ruim. — ele parou a minha frente e pareceu ponderar algo por um momento, então por fim enfiou um dos braços por trás de mim até alcançar o fecho do vestido, puxando-o para baixo e me deixando só de peças intimas.

Encarei-o em pânico crescente.

— Desculpe por isso... — murmurou sem jeito enquanto deixava minha barriga exposta, agachando-se para ficar na altura dela. Ele molhou os dedos no sangue, deslizando-os pela minha pele e pintando um símbolo parecido com um ponto de interrogação fechado, com bordas em formatos triangulares. O toque morno roçava e fazia cócegas, também deixando uma trilha de eletricidade involuntária por onde passavam.

— Você ainda não me disse o que quer com esse feitiço — destaquei abaixando a cabeça para olhar seu rosto que estava concentrado no que fazia.

— Eu encontrei um jeito de abrir o purgatório. Vou fazer isso hoje, depois que transferir a Graça de Lúcifer para mim. — contou colocando a tigela de lado, sobre o braço de uma poltrona que havia logo ao seu lado. Abri a boca, sem palavras e me perguntando se eu havia ouvido direito. Ele havia ficado louco? — Você vai ficar aqui, não vai ser bonito de ver. — instruiu colocando-se de pé a minha frente.

— O que você vai fazer? — perguntei tentando manter meu tom calmo, porém o mau pressentimento que havia me consumido a noite toda parecia latejar dentro do meu peito como quem dizia “Eu te avisei”.

— Você só consegue suportá-la porque sua alma foi adaptada para isso. Já eu... — começou espalmando a mão sobre a minha barriga e abaixando os olhos de um jeito mórbido — É a única maneira de parar a profecia, por pelo menos uma vida.

— Não faça isso! — exclamei no momento em que o anjo recitou algumas palavras em enoquiano, e como na primeira vez em que tocou minha alma, ele estava enfiando o braço dentro de mim, só que agora era mais doloroso.

Era como se uma lâmina estivesse sendo empurrada para dentro e para ajudar tinha aquele sangue que parecia queimar, como se você esfolasse um machucado e depois passasse salmoura por cima. Trinquei os dentes e uma luz cinzenta começou a irradiar do meu corpo, subindo pelo seu braço e entranhando-se em sua pele. Quanto mais forte ela ficava, mais eu sentia como se algo estivesse se desgrudando do meu interior. Como se tivesse uma camada de pele colada e agora estivesse sendo arrancada, era doloroso demais. Seus olhos estavam com o brilho azulado faiscando, juntamente com a sombra de asas que se arqueavam e debatiam rapidamente atrás de si, causando um barulho infernal. Depois de vários segundos, eu senti um choque dentro do meu corpo, e no mesmo instante o anjo cedeu ao chão, ficando sob um joelho enquanto suas feições se contorciam em dor.

Eu respirava ofegante, minhas pernas bambearam sem qualquer força de me manter de pé por vários segundos.

— Castiel! — forcei-me para frente assim que consegui ar suficiente para projetar as palavras, porém as braçadeiras me impediam de mover os braços e logo me puxaram para trás. Eu parecia feita de manteiga.

— É como se queimasse de dentro para fora, é terrível... — ele balançava a cabeça para os lados, imerso em sensações.

— Você disse que não estava mais atrás das almas, sem mentiras, lembra? — comecei falando qualquer coisa decente que pudesse fazê-lo mudar de ideia sobre o que ia fazer. Eu não podia deixar que ele se matasse nesse ato desesperado — Vai decepcioná-los assim?

— Não quero saber das almas, só o purgatório. Eu vou explodir a mim e poderia levar metade do planeta junto, mas se acontecer no purgatório, então nenhum humano será afetado, só aquela dimensão condenada. — revelou e eu ofeguei só de imaginar a cena. Como ele podia falar na própria morte como se não fosse nada? Como se não fosse nada para mim?

Sacudi meus braços ferozmente, uma onda violenta de adrenalina irradiando de repente.

— Você não pode me deixar desse jeito, eu não aceito isso! — exclamei e ele segurou meus pulsos para que eu não os forçasse mais contra os empecilhos que me impediam de sair dali e dar um belo soco na sua cara por ser tão idiota.

— Se acabar com a minha existência for a única forma de te dar ao menos uma única vida feliz e humana como você merece, que seja. — falou com o rosto próximo ao meu, os olhos azuis ao mesmo tempo em que pediam desculpas estavam totalmente irrefutáveis quanto a essa decisão. Sacudi-me novamente, me sentindo inútil perante a situação. — Não chore. — pediu com uma careta tristonha, me fazendo perceber que eu já estava completamente lavada de lágrimas.

— Como você me pede para não chorar se está prestes a morrer para que eu possa ter uma droga de vida humana? — disse com a voz entrecortada e baixa — Dane-se a ligação do anjo Guardião! Você não tem que fazer isso, Castiel! — exclamei novamente e senti ele mover os dedos em um dos meus braços para soltar a braçadeira, segurando meu pulso livre contra a parede.

— Você acha que isso tem a ver com a ligação? — perguntou comprimindo ligeiramente os lábios — Você acha que eu estou protegendo você porque uma força maior me obriga a isso? Estou fazendo porque eu quero. — admitiu deslizando um dedo pela minha bochecha, um leve sorriso se formando.

— Por que você quer morrer?! — gritei inconformada com aquilo.

— Uma vez eu ouvi um humano dizer que na vida apenas duas coisas são certas: O amor e a morte. Bem, eu descobri o amor por sua causa e acho que mesmo a minha existência não tem tanto valor quanto aquilo que você me ensinou a sentir. Você me mostrou uma coisa maravilhosa e isso é o que eu posso te dar em troca. Não é o suficiente, mas é tudo que eu tenho. — falou dando um beijo na minha testa enquanto eu ouvia suas palavras ternas completamente estática. Meu coração não sabia se saia pela boca diante delas ou se despedaçava por saber ele estava se sacrificando justamente por que me amava. Castiel encostou o rosto no meu, inspirando fundo — Embora eu tenha negado e tentado mudar a todo custo, eu amo você. Sempre vou amar você.

E dizendo isso ele me encarou uma última vez, os dedos escorregando pelo meu rosto e no segundo seguinte o anjo desapareceu.

— Castiel! Volta aqui! — comecei lutando contra a outra braçadeira que ainda me prendia até conseguir me soltar — Você não pode fazer isso, seu grande idiota! — vociferei para os céus, com tanta raiva e tanto medo de perdê-lo definitivamente que espasmos percorriam o meu corpo violentamente. Então respirei fundo e gritei com todo o ar que eu tinha no meu pulmão — Balthazar!

— Chamou, princesa? — ouvi a voz depois de poucos instantes, o mesmo aparecendo logo ao meu lado, os olhos cinzentos se estreitando ao me analisar da cabeça aos pés — Isso é alguma espécie de fetiche?

— Ache o Castiel agora e me leve até onde ele está! — ordenei me agachando até onde estava o meu vestido e o enfiando de qualquer jeito.

— Por que a pressa? — perguntou o anjo, puxando o zíper que eu lutava para alcançar.

— Ele vai se matar! — exclamei e o mesmo pareceu desconcertado. O peguei pelo colarinho da blusa, sacudindo duas vezes — Faz agora ou eu enfio essa lâmina angelical do seu bolso na sua traqueia! — ameacei e Balthazar arregalou os olhos, ainda incrédulo com os fatos.

— Eu vou procurar. — avisou prontamente antes de se desmaterializar. Tateei o bolso interno da minha roupa até encontrar o celular escondido, puxando-o para fora e discando os números apressadamente.

Caiu diretamente na caixa postal.

— Droga, Sam! Isso é hora de desligar o celular? — vociferei ao ouvir o bipe para deixar recado — Aqui é a Esther, eu não tenho tempo para explicar, mas o Castiel ficou maluco, fez um feitiço para transferir a Graça de Lúcifer e agora vai se explodir dentro do purgatório. Assim que ouvirem essa mensagem chamem o Balthazar e venham nos encontrar, eu vou impedir ele nem que seja a última coisa que eu faça! — desliguei o aparelho, arremessando-o contra a parede, tamanho era o descontrole em que me encontrava agora.

As intenções dele eram nobres. Ele queria me dar a vida normal que eu sempre quis ter, mesmo que fosse apenas uma vez. Mas o fato era que eu não queria uma vida se Castiel não estivesse nela, porque isso não seria viver. No momento em que ele entrara no meu caminho — seja lá quando foi a primeira vez — ele havia sido mudado para sempre e irremediavelmente. Eu não havia me dado contra completamente antes, mas agora — a minutos de perdê-lo — eu sabia que nunca seria realmente feliz sem ele. Por mesmo antes de conhecê-lo nessa vida, eu já o esperava.

E ele havia dito que me amava e depois tinha sumido para morrer sem me dar a chance de dizer de volta. Isso era inaceitável.

— Encontrei! — falou Balthazar esbaforido, aparecendo na minha frente e me tirando dos meus pensamentos — E não é nada bom, Raphael está lá.

— Que se dane o Raphael, me leva! — segurei seu braço e nós imediatamente aparecemos em frente a uma escola fechada.

— Tem um sigilo que bloqueia qualquer anjo que estiver de fora, mesmo que eu quisesse ajudar, não posso, Esther. — o mesmo apontou para o outro lado do grande pátio, onde estava o prédio que ficavam as salas de aula. Assenti e antes que pudesse dar o primeiro passo, o anjo me segurou — Espera! O portal da foi aberto, eu consigo sentir a energia terrível que está fluindo de lá, se você entrar agora, totalmente humana como está, pode morrer. Não faça o sacrifício que ele fez ser em vão — pediu com a expressão preocupada.

Balthazar tinha razão, agora eu era humana. Se estivesse em perigo não teria poderes no piloto automático para me salvar, não teria Lúcifer na minha cabeça para me ensinar a lutar, não teria como lançar ondas de energia, controlar objetos. Não havia profecia, não havia anjos, não havia o medo de me tornar uma assassina, não havia inferno, gaiola do Diabo, céu. Não havia Castiel, não havia nada.

— Não existe nada para mim aqui sem ele. — desvencilhei-me do mesmo e corri, atravessando até o outro lado. Entrei pela porta da escola e percebi as paredes brancas ficando com longas linhas escuras, como se estivessem apodrecendo, estendendo-se do chão até o teto como grandes teias de aranha mortíferas e putrefatas. Então esse era o poder maligno que estava do outro lado do purgatório? Arrepios percorreram o meu corpo, estremecendo-o ligeiramente.

Apressei o passo, indo tão rápido que tive que me livrar dos saltos no meio do caminho, pois estava escorregando no piso liso. Dobrei um corredor em tamanha velocidade que fui diretamente de encontro aos armários de metal dos estudantes, me segurando para não cair. No final dele vi que Castiel estava com a mão erguida na direção de Raphael, e no segundo seguinte o arcanjo se desmanchou em uma poça de sangue grudento que respingou para os lados. Encarei o mesmo com pânico, e quando seus olhos se voltaram para mim percebi que havia vários hematomas parecidos com queimaduras em seu rosto. Como se sua casca estivesse prestes a se desfazer. Segui na direção daquela sala e no mesmo instante Castiel fechou a porta com um movimento de dedos, virando-se para a parede com um enorme símbolo pintado com sangue que girava com pequenas labaredas de fogo nas pontas. Fui de encontro à entrada com tudo, sacudindo-a com violência e batendo no vidro, mas a mesma estava fortemente trancada. As manchas negras agora tomavam conta das paredes, como enormes tumores que engoliam a vida ao seu redor. Então um redemoinho começou a puxar tudo dentro no local onde estava o símbolo.

A porta para o purgatório estava completamente aberta.

Castiel deu um passo naquela direção enquanto eu perdia a minha voz de tanto gritar do lado de fora. Lágrimas escorriam pelo meu rosto sem parar, medo, pânico e raiva se misturavam formando uma bola demolidora dentro de mim. Ele não percebia que se me deixasse, mesmo que respirasse eu estaria morta? Ele não percebia que era tudo que eu tinha? Que era a âncora de sanidade que me mantinha viva e impedia que eu afundasse?

O anjo deu outro passo e então me encarou por cima do ombro, os olhos azuis se despedindo de mim, tão intensos como o fundo de um oceano. Seus lábios se moveram devagar, a voz embargada sendo emitida dentro da minha cabeça.

Adeus, Esther.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Quanta coisa aconteceu, hein?
Devo dizer que Chuck é um personagem que eu amo, então obviamente ele não poderia deixar de aparecer. E esse final? Será que a autora homicida vai surtar e matar até mesmo o anjo do Senhor?
Veremos no próximo capítulo! Um beijão, babies!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Separate Ways - Requiem" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.