Separate Ways - Requiem escrita por WofWinchester


Capítulo 41
Os dois lados de uma mesma moeda


Notas iniciais do capítulo

Olá, babies! Obrigada a todos pelos comentários sempre tão lindos e carinhosos!
Não vou falar nada sobre o capítulo para não estragar a surpresa do final, então...
Espero que gostem!



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— Não sei o que houve! Eu juro que tinha dinheiro na minha carteira! — exclamava a mulher de cabelos curtos e bolsa importada diante do balcão da lanchonete, perante a cara de poucos amigos do gerente. Dei um sorrisinho disfarçado e tomei o último gole do meu suco de laranja, levantando da mesa próxima à janela e guardando os dólares recém extraviados no meu bolso, deixando o suficiente para pagar a conta.

— Deixa que eu pago para ela, e quero uma porção de fritas para a viagem. — anunciei para a garçonete sardenta e de aparelho.

— Muito obrigada, você é um anjo. — agradeceu a mulher enquanto eu dava uma nota de cinquenta para a garota e pegava meu pedido. Sorri de forma educada para a mesma, que saiu envergonhada pela porta, diante dos olhos atentos de todos os fregueses.

— Estou mais para Diabo. — murmurei comigo, mordiscando uma batata.

Conviver com os Winchesters e suas falsificações de cartão de crédito não tinha sido uma boa influência para mim, já que a primeira opção para me virar sozinha durante essas semanas — e foragida de um bruxo, de Raphael, de possíveis demônios e monstros que quisessem minha cabeça — na rua tinha sido aprimorar meus poderes para “extraviar” algumas coisas. Não era muito difícil, eu apenas tinha que me concentrar nos impulsos elétricos pelo meu corpo e mandá-los para um objeto, fazendo com que a energia traçasse uma borda ao seu redor. E então eu ordenava que ela voltasse para mim, materializando-se na minha mão juntamente com o objeto. Obviamente só servia para coisas pequenas, mas eu conseguia dinheiro dessa forma, logo conseguia me virar para tudo.

Sai da lanchonete com o pacote transbordando de batatas fritas, começando a trilhar meu caminho pelas ruas frias de Illinois. Eu estava quase perto de Sioux Falls e ainda não tinha nenhum plano decente para saber se todos estavam bem, com as cabeças no lugar e não fazendo loucuras que pudessem matá-los depois (o que eu não tinha muita certeza). É claro que eu podia ligar, mas isso os faria ter uma pista minha, e isso eu não queria que acontecesse. Para falar a verdade, eu estava muito bem enrascada.

Assim que dobrei uma esquina, passando por uma mulher solitária e seu poodle na coleira cor-de-rosa com pedrinhas brilhantes, meu sexto sentido me alertou. Olhei para trás por segundos suficientes para perceber o homem que estava sentado na mesa do canto, enquanto eu tomava meu suco, vindo na minha direção. Ele era alto e magro, usava uma calça jeans surrada, um casaco de veludo preto e um cachecol verde musgo por cima. Porém o mais chamativo nele era uma tatuagem em forma de estrela negra na pele de bronzeado latino, que ia da nuca até a frente da garganta.

Fisicamente falando, ele não aparentava nenhuma ameaça com seus poucos músculos e corpo magricela, mas algo estava me dizendo para me afastar.

Continuei caminhando e na primeira oportunidade que tive, dobrei outra esquina, e logo que o mesmo fez igual, comecei a andar mais rápido. O ar úmido da manhã entrava pela minha garganta e arranhava, secando-a e tornando mais difícil respirar. Quando me enfiei em uma ruela cheia de caixas de papelão nos contêineres de lixo, encostei-me à parede, abaixando-me para agarrar um pedaço de madeira que estava jogado no chão sujo. Quem era ele? Ou melhor, o quê? Quando você é caçada por diversas criaturas sobrenaturais ao mesmo tempo, fica difícil saber com o quê está lidando até o momento derradeiro.

Fui me esgueirando junto à superfície enquanto me afastava do lado que ele deveria surgir, se eu pudesse chegar até a rua de trás, podia despistá-lo, quem quer que fosse. De repente senti mãos me agarrarem por trás, o desgraçado havia sido esperto e dado a volta, me pegando pelo lado que eu pretendia fugir. Ele me segurou pelo pescoço, colocando um pano com um cheiro terrivelmente forte tampando minha boca e meu nariz. Tentei me debater, mas em milésimos se segundo minhas pernas já estavam bambas, e tudo apagou de vez.

Acordei com as minhas narinas ardendo, provavelmente devido ao produto que me fez desmaiar. Minha cabeça dava giros nauseantes enquanto eu me impulsionava para me levantar, meus dedos se arrastando pelo chão de terra. A primeira coisa que vi foram as paredes de pedra rochosa, havia diversas bugigangas empilhadas nos cantos do local minúsculo e uma escada de madeira que subia para cima, até uma pequena abertura de onde entrava alguns poucos raios de luz. Apertei os olhos com uma careta quando foquei uma figura ao lado de diversos garrafões de água mineral vazios, o modo como suas roupas eram sujas e seu corpo estava curvado o fazia se camuflar ali.

— Quem é você? Onde eu estou? — questionei e o estranho voltou o rosto cheio de fuligem para me fitar de maneira estática, os olhos escuros arregalados. Ficamos assim por quase três minutos. — Fala comigo!

— Rog não fala com estranhos, Malcom diz para não falar. — murmurou desviando o olhar e encarando os dedos grossos que se enroscavam uns nos outros com nervosismo. Ele parecia assustado, ou até mesmo constrangido. Encurvado ali naquele canto, e devido ao estado de suas roupas e a sujeira que se impregnava em sua pele, o mesmo mais parecia um pedaço de carvão jogado. O cabelo ralo e preto, juntamente com a pele bem bronzeada, fazia os olhos azuis se destacarem. Notei também que o homem era muito grande, embora ele estivesse encolhido, eu podia suspeitar que ele era daquele tipo de homem-armário.

Mas quem era Malcom? Meu sexto sentido estava apostando que era o cara da tatuagem no pescoço que me seguira na lanchonete, mas para qual propósito?

Observei o local de novo, mais precisamente a escada que dava para a abertura. Eu provavelmente deveria estar em algum lugar subterrâneo. Mas há quanto tempo? Como vim parar aqui? Eu deveria estar surtando agora, mas por algum motivo conseguia manter a calma. Acho que já estava acostumada a ser sequestrada e levada de um lado para o outro como um maldito poodle. De qualquer forma, entrar em desespero não era sensato, eu precisava manter a calma e bolar uma estratégia.

— Meu nome é Esther. Você disse que seu é Rog? — indaguei para o rapaz e ele assentiu uma vez. Embora sua aparência indicasse uns vinte e poucos anos, o mesmo tinha uma atitude retraída demais para alguém da sua idade, ou talvez sofresse algum distúrbio mental. Apertei os olhos, me arrastando no chão de terra úmida e indo para mais perto dele. — Esse Malcom que você falou tem uma tatuagem no pescoço? Ele é seu amigo? — conforme via que o mesmo mantinha-se calado, eu insistia de maneira mais gentil — Parente? — continuei minhas especulações para reconhecer o terreno onde estava pisando e Rog assentiu depois de uma pausa.

— Malcom é irmão de Rog. — respondeu enfiando a mão dentro do bolso do macacão jeans surrado e apertando algo com força. O objeto fez um “crack”, como um plástico duro quando vai quebrar.

— Seu irmão traz outras amigas para cá? — arrisquei mantendo meu tom para quem fala com uma criança pequena, o que estava dando certo até agora.

— De vez em quando.

— E o que ele faz com elas? — perguntei e ele apertou o objeto no bolso mais forte, olhando para uma das pilhas de bugigangas. Franzi a testa por um instante e então acompanhei seu foco, onde meus olhos destacavam alguns pares de salto alto junto com roupas femininas imundas.

Minha boca se abriu de surpresa, e não daquele tipo de surpresa boa. Que tipo de criatura sobrenatural dá cabo em garotas desprotegidas? A resposta seria: A maioria. Mas algo ali não estava se encaixando, a não ser que... Perfeito! Um assassino psicopata. Não podia ficar melhor.

Notei que Rog tirou um celular do bolso e ficava apertando as teclas do aparelho repetidas vezes para fitar o visor, como se esperasse uma ligação. De repente um plano arriscado se formou na minha mente.

— Eu acho que bati a cabeça, preciso de um hospital. — comecei depois de alguns segundos, lançando a minha primeira tática fugitiva. Concentrei a energia adormecida dentro de mim até que a mesma começasse a escorrer e pulsar por debaixo da pele, então a enviei para fora, projetando-a em um caminho até as mãos do rapaz.

— Não é uma boa ideia.

— Mas eu estou machucada, eu preciso de um hospital. — enfatizei levando os dedos até a parte lateral cabeça, onde realmente estava dolorido, mas devia ser por causa do chão duro onde eu fiquei deitada por sabe-se-lá quanto tempo. O importante é que eu estava prendendo a sua atenção em mim enquanto envolvia o objeto.

— Malcom diz que não pode sair daqui. — devolveu de forma mais rígida. Respirei fundo, medindo se deveria ou não insistir, mas faltava tão pouco que eu optei pela primeira opção.

— Mas...

— Não pode sair! — explodiu o mesmo, o tom alto e ameaçador parecia fazer as paredes estremecerem. Ele colocou-se de pé, deixando o celular cair em um canto próximo as garrafas vazias, e então eu confirmei a minha teoria do homem-armário, só que era absurdamente maior que isso, deixava o Sam no chinelo. Senti um arrepio de medo percorrer o meu corpo, e quando dei por mim, já estava batendo as costas na parede rochosa onde eu estava antes. Agora eu entendia o porquê do meu sequestrador deixar o irmão gigantesco e com problemas temperamentais para cuidar das suas vítimas, ninguém ousaria tentar fugir.

— Tudo bem, calma. — senti a energia terminar de envolver o objeto e fiz com que a mesma se materializasse na minha mão escondida rente as costas, meus dedos se apertando no celular recém obtido. Agora eu só precisava conseguir fazer uma ligação. Mas para quem?

Obviamente eu poderia ligar o número dos Winchesters, e em poucas horas eles dariam um jeito de me achar, já que parecia que eu estava completamente fora do radar de Castiel — provavelmente devido a algum feitiço que Brawian colocou em mim para me ocultar do Guardião. Mas embora fosse a opção mais garantida e favorável, não estava no meu plano principal, eu havia prometido a mim mesma que não os procuraria, por enquanto, para mantê-los a salvo. Então tinha que dar outro jeito.

Uma maneira quase eficaz seria ligar para a polícia, só que aí eu teria que explicar porquê uma garota que sumiu de Elwood há mais de seis meses, depois de uma carnificina demoníaca camuflada pelas autoridades, está fazendo em um cativeiro. Seriam muitas explicações sobre aquela noite que eu não poderia dar, ou mesmo tentar explicar sem ser mandada diretamente para o sanatório. Mas por outro lado, eu podia aproveitar o tumulto inicial quando me encontrassem e fugir. Era um plano arriscado, mas o que na minha vida não era, afinal?

— Tem algo para comer? — indaguei minutos depois, Rog, que estava andando agitado de um lado para o outro, se virou para mim — Eu estou com fome, por favor. — pedi com a cara mais triste que podia fingir. O mesmo pareceu ponderar por vários segundos, em seguida assentiu uma vez. Ele subiu as escadas, os passos pesados levantando poeira nos degraus, e empurrou a abertura para cima fazendo um ruído metálico, saindo pela mesma e a fechando novamente. Imediatamente puxei o celular, constatando tristemente que não havia sinal ali embaixo.

Vasculhei o local a procura de qualquer coisa útil, encontrando apenas tralhas. Não havia uma arma, uma faca, nada pontiagudo. Olhei ao redor, prendendo meus olhos de repente na parede escura atrás da escada, onde tinham vários papeis dependurados. Neles haviam os mais variados desenhos abstratos, feitos com giz de cera de diversas cores berrantes. Passei os dedos pelas formas suavemente ásperas dos contornos, a pele em contato com o papel adquirindo as cores impressas ali.

Bufei de raiva, eu não podia machucar Rog, ele não tinha plena noção do que estava fazendo. O irmão deveria estar se aproveitando dele por causa do retardo mental.

Se eu conseguisse ir lá fora tempo o bastante para fazer uma ligação...

Ouvi a entrada se abrir e voltei rapidamente para a minha posição de antes, escondendo o aparelho no bolso do casaco. O rapaz enfiou o corpo grande para dentro da abertura com dificuldade, fechando-a em seguida e descendo os degraus de madeira que pareciam quase se partir a cada passo. Ele se aproximou de mim, inclinando-se e estendendo a mão na minha direção.

— Frutinhas. — falou enquanto abria os dedos e revelava cerca de uma dúzia de amoras com um meio sorriso amarelo.

— Obrigada. — agradeci pegando-as com uma mão. O mesmo voltou-se a se sentar no mesmo canto em que estava antes. Comi uma das frutas, esperando alguns instantes. — Você tem amigos? — ele balançou a cabeça para os lados, como um garotinho triste e solitário. — Quer ser meu amigo? — questionei e seus olhos azuis brilharam, enquanto o rapaz assentia rapidamente.

Amigos. — repetiu em um tom alegre.

Ficamos algum tempo em silêncio, eu me sentia péssima por estar enganando alguém assim, mas era a única forma de sair daqui sem ter que encontrar um meio de machucá-lo.

— Eu preciso fazer xixi. — anunciei e prontamente Rog empurrou um balde na minha direção — Não posso fazer aqui, preciso de um banheiro. Ou algum lugar em que possa ter privacidade. — coloquei o objeto de lado e o rapaz me encarou em dúvida.

— Não é bom você ir lá fora.

— Tudo bem, Rog. Somos amigos, você pode confiar em mim. — garanti, embora fosse mentira o fato dele poder confiar que eu não sairia correndo na primeira oportunidade que tivesse.

— Malcom diz para não deixar ninguém sair.

— Malcom não quer se sejamos amigos. — disparei me aproximando do mesmo e lançando uma cara de cachorro que caiu do caminhão de mudanças — Por favor.

— Tudo bem.

Assim que coloquei os pés para fora do meu cativeiro subterrâneo, tentei captar algum ponto de referência, qualquer coisa que pudesse me dar uma pista sobre onde estava. Mas tudo que encontrei foi apenas árvores e vegetação rasa. Com Rog me escoltando de perto, eu não teria muito tempo para agir. Então pedi que se afastasse um pouco e me escondi atrás de um arbusto de flores espinhentas, retirando o celular do bolso e constatando que havia um único ponto de sinal. Imediatamente disquei os números da polícia.

Uma voz feminina atendeu no segundo toque.

— Alô? Por favor, eu fui sequestrada! Estou sendo mantida em cativeiro! — exclamei controlando a voz para soar o mais baixo possível.

— Onde você está? — questionou ela do outro lado da linha.

— Eu não faço ideia! Tem muito mato, eu estava em Illinois... Talvez alguma cidade do interior, eu não faço ideia! — continuei apertando o aparelho contra o meu ouvido com força. Ouvi passos quebrando os galhos na minha direção e percebi que Rog tinha percebido a minha demora, ou a falta do telefone. Desliguei e imediatamente me coloquei de pé.

— O celular, você o roubou! — acusou o rapaz, apontando o dedo nervoso para mim, a mandíbula se contraindo conforme ele rangia os dentes.

— Não... Eu não... — antes que ele pudesse ter outro ataque de fúria, sai correndo pelo meio das árvores, pulando alguns troncos pelo caminho.

A julgar como aquela mata era fechada, e que Rog devia conhecê-la como a palma da sua mão, eu não teria chances de achar o caminho para fora dela. Quando percebi que o mesmo estava próximo de mim, escondi-me atrás de um eucalipto de raízes expostas, respirando fundo e com a minha pulsação acelerada. A policia nunca me acharia, partindo do princípio de que eu não tinha conseguido dar uma mísera localização, então o jeito era sinalizar. Agarrei o caule da árvore, fazendo com que a energia que saia do meu corpo fosse toda para ele, passando pelas minhas mãos com uma ardência dolorosa. Em seguida senti um calor flamejante na minha pele e a planta começou a soltar uma fumaça acinzentada e com cheiro de borracha queimada, entrando em combustão até atingir a copa de galhos. Eu usei tanta energia de uma forma tão desesperada que quando cortei a ligação, ela me repeliu, atirando-me quase dois metros para trás.

Senti uma mão agarrar a parte de trás do meu casaco juntamente com um punhado do meu cabelo, e então comecei a ser arrastada para longe do fogo. Eu tentava me debater e arranhar seus pulsos para que me soltasse, mas o mesmo não parava. Em menos de dois minutos, eu estava sendo jogada para dentro do cativeiro novamente. Desci rolando as escadas poeirentas até dar de encontro com a parede ao final delas, minhas costas ardiam devido ao contato com a terra, que mesmo através da roupa, fora o bastante para ralar minha pele.

— Você tem que me deixar ir embora! — exclamei engatinhando para longe de Rog.

— Não! Não pode! — gritou exaltado e de forma ameaçadora, vindo atrás de mim — Você mentiu! — disse levantando o braço no ar, como se fosse me acertar. A mão dele era praticamente maior que a minha cabeça, e um golpe com certeza ia doer, e muito. Encolhi-me, escondendo o rosto e esperando o impacto que não veio. — Você mentiu! Malcom vai ficar bravo comigo por sua culpa! — acrescentou recuando e começando a andar pelo espaço pequeno, seus passos levantando terra do chão, ele estava descontrolado, levava as mãos até a cabeça e chorava compulsivamente.

— Não é certo me manter aqui, precisa me deixar ir embora. Nós somos amigos, e amigos fazem isso uns pelos outros. — supliquei calmamente, me colocando de pé e andando com receio até o mesmo. No momento em que ele optou por não me bater, eu sabia que ele conseguia discenir o certo do errado, e estava contando com isso. Ele não era mau, só não sabia o caminho correto a seguir. — Tem que me deixar ir, Rog, ou ele vai me matar. — sussurrei tocando seu braço e percebendo que ele estava visivelmente mais calmo.

— Amigos... — murmurou e eu assenti. De repente um barulho familiar encheu os meus ouvidos, aproximando-se com velocidade.

— São sirenes de polícia? — instintivamente fitei a entrada do cativeiro — Eles me acharam.

— Não! Não! Não! — Rog começou a ficar exaltado novamente, dessa vez seus braços voavam no ar para todos os lados, me atirando para trás. O mesmo recuou até a parede atrás da escada, encolhendo-se no canto escuro enquanto batia a cabeça na parede, totalmente fora de si — Eles vão levar Malcom! Não!

— Rog, me escuta! — corri até ele, as sirenes tão alto que eu precisava quase gritar para ser ouvida. Segurei seus pulsos para que ele prestasse atenção em mim e fitei seus olhos seriamente — Quando eles entrarem, não faça nenhum movimento brusco, ok? Apenas não se mexa. — instrui para o mesmo. Um cara enorme daqueles em total descontrole faria a policia atirar primeiro e perguntar depois, eles não tinham como adivinhar que ele era especial e não estava agindo de má fé, e sim por ordens do irmão.

A entrada por escancarada com um baque.

— É o FBI! Mãos para cima! — uma voz masculina de ordem de prisão, descendo as escadas rapidamente com a 9mm apontada para Rog, que arregalou os olhos azuis em total desespero.

— Não se mexa! — disse novamente, sacudindo-o para que olhasse para mim e não para as armas. Logo vários homens de uniforme começaram a encher o cativeiro, então eu senti braços agarrarem a minha cintura e me puxarem para trás e em direção a escada.

— Fique parado! — exclamou um dos policiais, mexendo o revólver para Rog que se levantou bruscamente enquanto eu estava sendo levada. O mesmo avançou até mim, e um homem franzino que estava mais atrás deu o primeiro disparo, acertando sua perna.

— Não! — gritei tentando sair dos braços do policial que me empurrava escada acima e assim interceptar o que eu sabia que ia acontecer. Mas antes que eu pudesse me libertar, Rog ficou violento novamente, devido ao pavor que estava, e quando deu o primeiro passo na direção da polícia, uma chuva de tiros começou a acertar o mesmo e empurrá-lo novamente em direção a parede escura. Seu corpo dançava com os disparos — Não atirem! Parem! — exclamei passando pela entrada, minha última visão foi a expressão de dor em Rog, enquanto os papeis dos seus desenhos caiam por cima do corpo sem vida.

Seria algo que eu nunca ia esquecer.

Do lado de fora tinha vários carros de polícia, homens uniformizados com jaquetas da perícia se acotovelavam em voltar de um cadáver estendido no chão. Meus olhos focaram a tatuagem no pescoço bronzeado e eu logo constatei que se tratava do meu sequestrador. Havia também uma ambulância e alguns carros comuns estacionados ali, muitas vozes, e eu completamente em choque. Fui encostada na lateral de um veículo e o policial me virou para si, um gesto que me pegou de surpresa, então eu encarei os olhos verdes por baixo do uniforme do FBI e abri a boca em descrença.

— Brawian...

— Se tentar gritar ou fugir, você morre na hora. — garantiu o mesmo com uma cara nada amigável.

Horas depois, chegamos numa cabana de madeira cercada por árvores. O bruxo me pegou pelos braços de maneira rude e arrastou para dentro, passando a chave na porta.

— Você foi bem esperta, descobriu a falha no feitiço e usou. Pergunto-me se foi você ou o Diabo no seu ombro. — falou enquanto andava até mim e prendia meus pulsos em correntes pré-colocadas nas paredes, em seguida fazendo uma careta descrente — Quem é que foge e liga para a polícia? Foi absurdamente fácil rastrear você.

— Eu precisava saber se meus amigos estavam bem. — comecei a tentar dar uma explicação decente. Brawian começou a tirar o uniforme e jogar por cima de uma poltrona cheia de pó, o que devia dizer que esse lugar não era usado há algum tempo. — Estava perto quando acabei sendo sequestrada, de novo.

— James Stance, um assassino serial de jovens garotas adolescentes. O FBI estava há anos procurando ele, juntamente com o irmão Roger Stance. Ambos imigrantes ilegais do México. É uma pena que Roger não tenha sobrevivido. — disse com um tom de poucos amigos.

Engoli em seco, a sensação de aperto pesava dentro de mim. Embora eu soubesse que não poderia fazer nada por Rog, eu ainda me culpava um pouco pela morte de um inocente. Mas seria tão inocente assim alguém que escolhe acobertar atrocidades de uma pessoa por amor a ela?

— Não foi certo fugir daquele jeito, mas eu não podia continuar presa. — comecei remexendo as correntes com os braços, o metal formigando em contato com a minha pele — Ouça, tem uma maneira de quebrar a profecia, então ninguém precisa ser morto.

— Você é uma mentirosa. — proferiu displicente, o que me fez dar um grunhido de contrariedade. Uma onda involuntária de energia saiu do meu corpo e eu ouvi um “creck” nos meus pulsos.

— É verdade!

— Por que será que eu estou inclinado a não te dar ouvidos? — questionou sarcástico.

— Eu poderia ter matado Rog para fugir a qualquer momento, mas não o fiz. Eu poderia matar você e fugir, sendo que já me livrei das correntes, mas não quero. — libertei os braços, o metal caindo retorcido e batendo no chão. Esse poder dentro de mim se mostrava cada dia mais útil.

— Alguém andou treinando os poderes. — elogiou Brawian de maneira irônica — Mas mesmo que possa colocar fogo em árvores e roubar algumas carteiras, acha mesmo que é páreo para mim? — tranquei o ar, há quanto tempo ele estava me observando desde que eu fugi?

— Eu não sou, e não quero testar isso. — garanti imóvel e de frente para ele, que cruzou os braços com o olhar desafiador — Só quero que me ouça.

— Comece a falar.

— Na noite que eu fugi, encontrei alguém que disse haver uma maneira de parar a profecia, e assim impedir que Lúcifer obtenha sua graça novamente. Aparentemente a chave está no mistério de quem são os meus pais biológicos. — contei e o bruxo esfregou o queixo algumas vezes.

— É apenas um palpite, mas eu acho que essa pessoa cheira a enxofre. — apontou franzindo a testa.

— Crowley.

O rei do inferno? — questionou com uma surpresa debochada — Por que a sua índole de se juntar aos vilões não me agrada nenhum pouco?

— Demônio ou não ele diz ter um jeito, e é a única coisa que me resta.

— Por que você não quer morrer. — constatou Brawian calmamente.

— Por que se eu morrer pelas mãos do conselho, Castiel morre comigo! — exclamei mais exasperada do que pretendia.

— Você quer proteger o anjo que está destinado a matar você? — duvidou com um sorriso mordaz, como se estivesse se divertindo com aquilo.

— Ele não merece isso, e faz muito mais diferença aqui do que eu. Não preciso levá-lo junto. — dei de ombros, encarando a janela por um momento solene.

— E eu suponho que o demônio queira alguma coisa em troca. — arriscou com um suspiro depois de uma pausa dramática.

— Ele quer que eu pegue o vampiro Alfa para ele.

— Por que ele quer um Alfa? — questionou arqueando uma sobrancelha.

— Para abrir o purgatório, mas eu duvido que a criatura saiba o caminho. — Depois de tanta coisa eu não duvidava de nada, mas se Brawian achasse que não era possível, talvez fosse um ponto ao meu favor para que ele me desse algum crédito.

— E você não só é a chave do apocalipse, como também quer dar ao rei do inferno algo para que ele solte mais monstros na terra? — indagou abrindo os braços no ar — Em que mundo eu concordaria com isso?

— Se não der certo, você pode me enjaular ou colocar Lúcifer dentro de mim novamente, e assim Castiel pode me matar e a profecia se cumprirá. Como sempre foi destinado a ser. — ofereci e o bruxo deu uma risada monótona.

— Colocar Lúcifer? Eu só consegui tirá-lo porque o anjo é incompatível com a casca, por isso eu não matei você naquele instante. Você não está corrompida o suficiente para que ele possa assumir o controle ou se manter em você por mais que algumas horas. — esclareceu seriamente.

— Então nem tudo está perdido. — falei com uma pontada de esperança, andando alguns passos na sua direção — Estou pedindo uma oportunidade. Se eu não tentar, ninguém mais vai. Brawian ponderou por vários segundos, me olhando fixamente, os olhos verdes pareciam analisar mais do que realmente estavam vendo.

— Pegamos o Alfa e no momento que Crowley aparecer, ele morre também. Não vou arriscar que ele possa realmente encontrar o purgatório. — sentenciou gesticulando para mim.

— É perigoso, não estou pedindo que vá comigo atrás do vampiro. — descartei, eu não precisava meter mais alguém nas minhas enrascadas suicidas.

— E vou deixar minha refém sair sozinha para caçar vampiros. — cantarolou sarcástico — É o único jeito, pegar ou largar.

— Tudo bem. — assenti com um suspiro derrotado.

— Antes disso você vai passar por um treinamento reforçado. — ele falou me apontando um dedo, seus olhos sérios com um brilho quase mortífero — E antes que você pense em sair por essa porta, não é porque eu não tive tempo de fazer um feitiço para selar a cabana que você pode fugir. Se pisar lá fora, eu atiro em você. — avisou com um sorriso cruel, engoli em seco, sentindo a promessa de morte.

Brawian andou até um dos cômodos da casa e eu arrastei uma cadeira, sentando-me a velha mesa de carvalho empoeirada, minhas mãos segurando minha cabeça, que parecia mais pesada do que o habitual. Ter tanto peso nos meus ombros estava me enlouquecendo. Encarei a janela encardida, onde dava para ver o sol descendo pelo céu e o manto escuro da noite começando a surgir através das árvores.

O que aconteceu naquele cativeiro podia ser contado como uma vitória ou uma derrota? Dois homens haviam morrido, dois seres humanos. Um deles era cruel e assassino, já o outro amava o irmão e acobertava seus crimes sem realmente saber o que estava fazendo. A polícia comemorou o extermínio de um assassino em série de jovens mulheres, e eu lamentei a morte de um pobre inocente sem sorte no mundo. Os dois lados de uma mesma moeda.

Tudo que eu precisava agora era de algumas horas de tranquilidade no mundo dos sonhos.

Senti meus pés contra uma superfície úmida, que logo eu pude reconhecer como sendo areia. O vento quente, totalmente contrário a estação que estávamos, sacudia meus cabelos para trás e o som das ondas quebrando na beira da praia era a única coisa que eu podia ouvir. Encarei minhas mãos e em seguida o céu repleto de estrelas no horizonte.

Eu obviamente estava sonhando, mas o que me preocupava era que tudo era real demais, e por experiência própria, quando isso acontecia...

Virei-me para o lado e meus olhos se arregalaram quando eu constatei o que temia: Castiel estava ali. O sobretudo balançava com o vento e ele estava imóvel, a expressão indecifrável. Prendi o ar, meu coração pulando uma batida. Eu não estava preparada para ficar cara a cara com ele, e agora não sabia o que fazer.

— Ah... Oi... — comecei, levantando uma mão em um aceno sem graça. O anjo começou a caminhar até mim de maneira apressada, os olhos fixos nos meus. Parte de mim tinha receio daquela atitude, mas a outra parte — uma muito maior e mais dominante —, me impedia de me mover, pois queria ficar tão perto quanto pudesse dele.

Quando Castiel parou a minha frente, eu não conseguia me lembrar como se respirava. Sabia que estava prestes a ouvir um sermão por ter dito “sim” para Lúcifer, por não ter dado as caras depois que a profecia deu uma trégua — se é que podemos chamar assim o fato de que ele, momentaneamente, não precisasse me matar —, e por ter escondido tanta coisa. Mas ao invés disso, sua expressão se amenizou de maneira aliviada quando ele me puxou para um abraço apertado, me erguendo do chão.

— Achei que não pudesse mais alcançar você. — murmurou enterrando o rosto contra o meu cabelo e expirando. Eu podia sentir seus braços me envolvendo e dissipando todo o medo e incerteza que havia dentro de mim. E quando dei por mim, eu estava praticamente dependurada no seu pescoço, agarrando-o como se fosse o último bote de salvação, com tanta força que — se ele fosse humano — poderia causar hematomas.

Você sempre vai poder me alcançar. — sussurrei com a voz embargada, minha garganta se fechando.

Eu achei que talvez nunca mais fosse vê-lo de novo, antes de chegar a hora, mas ele estava aqui. Mesmo que fosse apenas um sonho, eu conseguia sentir seu calor contra o meu corpo, e isso já era mais do que eu achei que pudesse sentir novamente. E mesmo que Castiel não me quisesse como eu o queria, ele estava aqui agora. Eu podia estar do outro lado do planeta, em outra galáxia, mas ele sempre iria poder me alcançar, porque tinha uma conexão direta com o meu coração, com tudo que eu era.

O anjo se afastou centímetros o suficiente para me fitar, ainda mantendo os braços ao meu redor, como se eu pudesse simplesmente evaporar no ar.

— Eu procurei você por toda a parte, onde você está?

— Eu estou bem, em segurança. — garanti erguendo o rosto para conseguir encará-lo. Em segurança enquanto Brawian não achasse que eu estava totalmente corrompida e me queimasse como um pão que assou tempo demais no forno. — Conheci um bruxo, ele tirou Lúcifer de mim naquela noite e está me ajudando. — revelei e ele balançou a cabeça para os lados.

— Bruxos não são confiáveis. — disse com certa reprovação. É, eu sabia disso mais do que ninguém, todos que passaram pela minha vida tentaram me matar.

— Ele não é só um bruxo, é um caçador das sombras. — mordi o lábio assim que deixei a informação vazar, não sabia se tinha sido prudente revelar isso. Castiel abriu a boca, um tanto surpreso.

— Esse homem vai matar você assim que tiver chance! Diga-me onde você está. — insistiu deslizando as mãos pelos meus braços para segurar meu rosto. Admito que seria tentador tê-lo cara a cara comigo e poder ficar tão perto, porém isso não podia acontecer. Eu estava decidida a ir até no fim na minha escolha de tentar dar um fim a isso, e além do mais, tinha dado minha palavra a Brawian. — Dean e Sam estão feito loucos atrás do seu rastro, seu irmão está torturando demônios atrás de você e até Maison não para de te procurar. — continuou ao perceber que eu permanecia em silêncio. Soltei um grunhido de contrariedade ao imaginar Jimmy fazendo algo do tipo, ao mesmo tempo em que meu coração se apertou por estar preocupando tanto todos eles. E como eu sentia saudade daqueles idiotas.

— Pode dizer para eles que eu estou bem? Eu sei que não sou a pessoa mais confiável do mundo, mas vocês precisam confiar em mim agora. Sei o que estou fazendo. — afirmei com determinação.

— Como fez quando escondeu que estava vendo e conversando com Lúcifer? — ele arqueou uma sobrancelha — Eu não percebi antes, pensei que isso só acontecesse no final. Mas você devia ter nos contado, devia ter me contado. — exigiu de maneira calma e eu me desvencilhei de suas mãos, recuando alguns passos.

— Eu pensei que pudesse lidar com isso sozinha, desculpe. — falei cruzando meus braços gelados pela brisa noturna e encarando o mar a minha frente, as ondas se quebrando e impulsionando a espuma branca próxima aos meus pés descalços.

— Você não tem que passar por isso sozinha, essa é a questão.

— De qualquer forma, preciso que me deixe tentar isso. — pedi com os olhos fixos no horizonte escuro e desconhecido, assim como o caminho que eu estava trilhando agora — Pode haver uma forma de parar essa profecia maluca e eu tenho que tentar, não tenho muita coisa a perder.

— Eu não concordo com isso... — começou gesticulando com os braços para baixo e eu o interrompi com um suspiro cansado.

— Castiel...

— Me deixa terminar. — ele me cortou, em dois passos ficando ao meu lado e me virando para encará-lo. Os olhos azuis eram como dois faróis sérios, brilhando na escuridão — Eu não concordo com isso, mas não vou discutir com você agora. Primeiro eu te acho, e depois enfio na sua cabeça que isso é loucura. — terminou me apontando um dedo sugestivamente.

— Obrigada por isso. — agradeci, deixando o silêncio repentino se instalar sobre nós. Meu olhar percorreu a praia, buscando alguma referência nas dunas de areia ou nas grandes formas montanhosas no horizonte. Franzi a testa, sentindo uma nostalgia me invadir conforme eu vasculhava o lugar — Onde estamos? Sinto uma leve impressão que já estive aqui antes, como um déja vu.

— Deve ser impressão sua. — desconversou sentando-se em meio à areia, de frente para o mar. Permaneci de pé mais alguns instantes e então procurei um pedaço de chão ao seu lado, mas Castiel me puxou para sentar de costas para ele, passando os braços em volta de mim.

Minha careta confusa se misturou com um sorriso irônico. Primeiro ele me despreza, depois a gente detona a cozinha, em seguida ele tem uma crise de ciúmes e agora nós estamos aqui, encarando o mar como um casal. Isso era no mínimo... Muito confuso. Eu não entendia essas súbitas demonstrações de afeto dele, mas sabia que eram verdadeiras. Eu sabia que ele se preocupava comigo e queria me proteger, mas não sabia se Castiel tinha ciência dos seus gestos — às vezes íntimos demais — e o que eles significavam para mim.

E o que uma mulher decidida a esquecer faria nessa situação? Se afastaria para um cantinho com uma distância segura. Mas como eu já estava concorrendo para o Oscar de “melhor papel de trouxa” do ano, continuava aqui. Repousei a cabeça para trás, virando-a de lado para fitar seu rosto iluminado pelo brilho da lua. Os olhos encarando de maneira concentrada um ponto fixo no horizonte, a expressão serena, a barba por fazer... Será que eu tinha um babador reserva no meu bolso? Era incrível o poder que esse anjo tinha de quebrar minhas barreiras, meu orgulho, tudo.

E eu era uma mera humana sem forças suficientes para resistir.

— Como estão as coisas no céu? — questionei depois de alguns minutos embasbacada.

— Péssimas. — revelou com um suspiro — Raphael só joga com peões, dificilmente aparece pessoalmente. Típico dele.

— Cass, posso te fazer uma pergunta? Até onde você iria para deter Raphael? — perguntei e ele fez uma pausa antes de responder, voltando-se para mim.

— Ele nunca foi ligado aos anjos, só pensava em poder, guerras, seguir ordens. Eu admito que por séculos pensei da mesma forma, fomos criados para isso, para servir e proteger o céu. — contou com a voz baixa e grave — Mas depois que conheci os humanos, sei que se eu deixasse que Raphael atingisse seus objetivos, eu estaria matando toda a essência dentro de mim. Por isso não posso deixar que ele vença e que o apocalipse acabe com toda a esperança que ainda resta para todos nós.

— Esperança? — repeti desanimada. O modo como ele via as coisas, era algo que eu nunca fui capaz de entender.

Vivendo na sociedade de hoje, eu não saberia dizer se existe algo pelo qual valha à pena salvar. É óbvio que queremos manter nossos amigos e entes queridos em segurança, mas e o resto? Os desconhecidos que andam pela rua, toda a maldade e corrupção ignorada. Por mais que eu quisesse lutar para que a humanidade pudesse continuar existindo, tinha uma parte dentro de mim, escondida e obscurecida, que sabia que só se atinge a paz depois de lavar tudo com sangue.

— De um mundo melhor. — murmurou. Ajeitei-me melhor em seus braços, de maneira que pudesse apoiar a cabeça contra seu ombro, minha testa encostando-se ao seu queixo.

— Isso inclui fabricar almas e achar o purgatório? — indaguei de repente e ele se enrijeceu por um instante, logo soltando um suspiro.

— Crowley, eu devia saber. — o anjo olhou para cima por alguns segundos — A verdade é que eu queimaria o céu, mas você está fazendo a pergunta errada. Não me orgulho de dizer isso, mas eu chegaria a grandes extremos. — ele inclinou-se para colocar uma mecha atrás da minha orelha, abaixando o rosto para me encarar — Só que não por Raphael.

Era ilusão de garota pateticamente apaixonada ou isso foi uma indireta?

— Tem uma coisa que eu preciso dizer... — comecei um assunto que eu precisava esclarecer, embora não quisesse desenterrar — Eu sinto muito pelo que aconteceu, você sabe, por Elisabeth. Deve ter sido difícil para você. — sibilei desviando o olhar, meus dedos nervosos remexendo a gravata azul.

— Eu devia ter mandado-a de volta no segundo em que foi ressuscitada, mas não pude perceber a tempo que era só um fantasma movido a ódio e ambição. Não era ela, Esther. — falou calmamente, mas eu podia sentir uma pontada de mágoa no seu tom de voz. — Por que ela é você.

— Eu não sou a Condessa de sangue. — devolvi um tanto rude. Eu não suportava essa comparação, porque ela era quase um aviso constante do que eu iria me tornar.

— Eu não falo da Condessa, falo da garota, da alma, da essência. — esclareceu o anjo e eu continuei em silêncio. Era inegável que eu já fui várias mulheres em todas as minhas reencarnações sanguinárias, eu aceitava e compreendia isso, contragosto. Mas talvez Castiel tivesse razão, Elisabeth nem sempre foi má, eu me lembrava das visões que tive antes de tudo acontecer, da sua infância, da garota que ela era. Uma versão antiga e perturbada de mim. Ou será que eu era uma versão nova e mais perturbada dela?

Eu não sabia dizer.

— Vai contar onde estamos ou eu vou ter que arrancar isso de você? — questionei de maneira divertida, puxando sua gravata de leve e decidida a afastar todos esses pensamentos da minha mente, pelo menos por agora.

— Praia de Copacabana, Rio de Janeiro. — revelou com um sorriso de lado.

— Deixa eu adivinhar: Brasil? — arqueei as sobrancelhas, Maison não era a única viciada nesse país, pelo que eu podia perceber — Você gosta mesmo daqui, o que tem de tão especial? — olhei ao redor, admirando as formas do solo brasileiro. Era a segunda vez que Castiel me trazia aqui em um sonho, a primeira fora em Porto Alegre. Definitivamente isso já estava se tornando um hábito.

— É um dos poucos lugares que me traz paz. — o anjo sorriu de novo, erguendo a minha mão solta e brincando com os meus dedos no ar — As pessoas aqui, embora tenha tanta dor e injustiças, conseguem superar com um sorriso. Elas são unidas, fortes, elas tem calor na alma. E toda vez que o sol nasce, elas vislumbram o céu e são gratas por isso. Elas têm esperança. — contou de maneira admirada.

— Parece lindo. — murmurei, um fio de luz começava a surgir no horizonte. Estava começando a amanhecer.

— Parece tão... — ele franziu a testa com uma expressão engraçada — Você. — concluiu e eu dei uma risada.

— Um dia eu preciso vir aqui de verdade, e não em sonhos.

— Nós voltaremos aqui de novo, tem uma coisa que eu preciso te dizer. — garantiu abrindo a minha mão no ar e espalmando a sua, que era bem maior em contraste com a minha, pálida e pequena.

— E o que é? — perguntei com a curiosidade começando a martelar.

— Não em sonhos. — falou me olhando de soslaio enquanto dava um sorriso torto, o sol dava um tom alaranjado ao céu, deixando a água do mar intensamente azul e as íris do anjo num belo tom de dourado anil.

Revirei os olhos sorrindo, puxando a sua gravata de novo de maneira impertinente, então ele enfiou os dedos pelo meu cabelo, descabelando-o totalmente. Abri a boca diante daquele gesto que havia declarado guerra e Castiel me lançou uma expressão desafiadora enquanto eu dava uma sequência de tapas que não deviam estar fazendo nem cócegas no seu braço.

— Vai ter que fazer melhor que isso. — provocou mostrando a ponta de língua, segundos antes de sair correndo pela praia. E como eu não admito ser desafiada, entrei no jogo.

Nós parecíamos duas crianças brincando enquanto o sol nascia. Duas crianças sem monstros a temer, hora para voltar ou coração a ser quebrado. Tudo que importava — pelo menos naquele momento — era ser feliz.


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Notas finais do capítulo

Só eu tô emocionada com esse final Esthiel? E SIM, essa é a praia do filler em que ele se declarou, mas a moça não sabe (destaque para a parte que ele promete voltar ali para dizer "algo" u.u). Esse capítulo é (como diz o título) o outro lado da mesma moeda, ou seja, os monstros não pertencem só ao mundo sobrenatural, e nem sempre as coisas têm um final feliz. Agora Esther e Brawian vão caçar o vampiro Alfa, e algo me diz que isso não será fácil. E o bruxo ainda quer a cabeça do Crowley em uma bandeja de prata... Será que ele consegue? Será que a Esther vai conseguir, através do rei do inferno, a saída para essa profecia milenar? Saberemos a seguir pois é atualização dupla! ♥



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