Separate Ways - Requiem escrita por WofWinchester


Capítulo 3
Anjos e demônios




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Acordei com um latejar insistente no lado direito da cabeça. Eu estava deitada em algo macio, uma cama talvez? Sons de vozes vinham logo abaixo de mim. Eu não conseguia entender o que elas diziam, mas eram muitas. De repente me lembrei de tudo que havia acontecido e sentei bruscamente na cama, ocasionando uma tontura repentina. Respirei fundo, observando o abajur velho, o sofá de couro preto, a cortina empoeirada. Eu não lembro desse lugar. Onde diabos eu estou?

– Acordou, finalmente – falou o homem loiro ao escancarar a porta do meu cativeiro. Pulei da cama e peguei a primeira coisa que vi pra me defender.

– Eu tenho um abajur e não tenho medo de usar! – ameacei, me sentindo ridícula logo depois de terminar a frase.

– Eu não vou machucar você – disse levantando as duas mãos – Relaxa, somos os mocinhos.

Outro homem entrou pela porta, era velho, usava um boné, e estava armado. Joguei o abajur por reflexo, ele se abaixou e o objeto virou uma pilha de cacos depois de bater na parede.

– Bela pontaria – disse o velho, soou como um elogio.

– Droga, Bobby! Abaixa essa arma! – gritou o loiro. O velho colocou a arma no chão lentamente. Nisso o outro cara apareceu, mais alto que todos e também armado.

– Bobby! Dean! Eu ouvi grit... – catei qualquer coisa pra jogar nele também, catei um... Osso! Um osso de gente! Joguei a coisa longe, mas com uma incrível sorte ela deu bem no meio da cara do grandalhão que gemeu de dor, levando as mãos ao nariz. Senti-me momentaneamente culpada.

– Que porra! Mais alguém vai aparecer armado por essa porta? – exclamei.

– Sem armas! Não joga mais nenhum osso na gente! – falou o loiro. Em seguida se virou para o grandalhão – Você tá bem, Sammy?

– Sim – gemeu ele – Ela tem uma ótima pontaria.

– Eu disse – falou o velho, levantando os ombros.

– Chega. Vocês estão assustando ela – a voz de Daniel soou como música para os meus ouvidos. Ele apareceu na porta usando um terno azul marinho, diferente do jeans casual e camiseta que costumava usar. Ele veio em minha direção e me abraçou – Desculpe por isso.

– O que está havendo? – perguntei atônita, sentindo meus braços e pernas tremerem – Meus tios estavam mortos, depois entrou um cara na sala, e depois eu apareci aqui...

– Isso pode ser bem difícil de explicar – disse ele, me fazendo sentar na beirada da cama. Daniel me encarou, não sabia se estava escolhendo por onde começar ou se estava esperando eu me acalmar. Com um suspiro, disse baixinho.

– Eu sou um anjo.

Uma hora depois.

– Ok – me levantei da cama e comecei a andar de um lado para o outro. Daniel me lançava um olhar apreensivo. Dean Winchester, o loiro, estava encostado na parede, Sam, seu irmão mais novo, estava sentado no sofá estancando o pequeno sangramento nasal que eu ocasionei, e Bobby estava sentado numa poltrona com uma agenda velha no colo.

– Deixa-me ver se entendi. Você – apontei pra Daniel – é um anjo. Tipo, anjo de verdade, com asinhas e tudo mais. Quando minha mãe morreu, você não sabe por que, mas simplesmente sentiu que precisava me proteger sabe-se-la-do-que. Tem me vigiado desde então, e decidiu se aproximar quando eu entrei pra escola. Ok. – eu andava pra lá e pra cá, o tom da minha voz era incrivelmente cínico - Ontem a noite um demônio invadiu a minha casa, matou todo mundo sabe-se-la-porque também, e eles – apontei pros três homens a minha volta – são...

– Caçadores – completou Sam, anasalado.

– É. Salvar pessoas, caçar coisas... – começou Dean, mas foi interrompido por Bobby e Sam.

– O negócio da família – disseram, com ar de quem já tinha ouvido aquilo centenas de vezes. Dean fechou a cara.

Um anjo – repeti. - Ok – falei, tentando transparecer calma. Mas cada célula do meu corpo gritava “Loucos!” – Isso é loucura! Pra que lado eu saio daqui? – perguntei dando uma volta de 360º graus.

– Você não pode voltar, Esther – disse Daniel.

– Eu posso sim, eu preciso voltar.

– Estão todos mortos! – interrompeu Sam – tá uma zona e você foi a única que sumiu, eles acham que você surtou e matou todo mundo. Se você voltar vai ser presa, internada, ou morta se aquele demônio for atrás de você. E pode apostar que ele vai – o tom dele era sério. Eu puxei o ar devagar enquanto processava a informação. Num momento eu sou uma garota normal, e no outro eu sou uma louca psicopata perigosa e foragida.

– Vocês – eu estava controlando a voz, mas eu sentia a raiva aumentando o meu tom – aparecem do nada, com demônios! Fazem a bagunça geral e eu levo a culpa? Vocês são loucos! Insanos! O que uma droga de demônio ia querer comigo?! Porque ele ia matar a minha família?!

– Seu irmão – disse Dean. – Eles querem o seu irmão e acham que você pode levá-los até ele. Nós não sabemos o porquê, só sabemos que James é importante pra alguém lá embaixo.

– Você sabia disso? – perguntei me virando pra Daniel. Ele balançou a cabeça. Senti meus olhos ardendo, finalmente todas as fichas caindo. Meus tios estavam mortos.

– Sim, mas eu estava cuidando da situação, mas aí esses dois – ele apontou para Sam e Dean – apareceram lá fazendo perguntas e foi tudo pro brejo!

Cuidando da situação?! – esbravejou Dean – Um garoto está estripando pessoas por aí, e você chama enterrar a cabeça na terra de cuidando da situação?

– Jimmy não é minha responsabilidade, Esther é! Vocês não têm a mínima noção do quão difícil foi mantê-la longe dos demônios e anjos durante todos esses anos, e vocês simplesmente chegaram lá e jogaram tudo pro alto!

– Que espécie de anjo você é afinal?! Kevin Costner emo?!

– Para! – gritei. Minha cabeça havia dado um nó. Eles me encararam. – Você sabia sobre Jimmy o tempo todo? – perguntei, o tom acusador. – Você sabia que tinham demônios atrás de mim? Meus tios estavam em perigo o tempo todo! Porque você não me disse? Ele é meu irmão!

– Estava tudo sob controle! Eu estava apenas te mantendo segura...

– Mentindo pra mim? – interrompi com raiva. – Eles eram a minha família! ? James é meu irmão! - De repente algo me veio como uma bomba.

– Espera. Você me separou de Jimmy de propósito? – Daniel arregalou os olhos, ficando sem resposta. Eu não podia acreditar no que estava acontecendo. Passei as mãos no rosto com força, respirando forte algumas vezes, senti meu sangue ferver de raiva.

– Esther...

– Não! Não fale comigo! – gritei – Agora por sua culpa meu irmão está por aí, estripando gente – usei o termo que Dean havia usado – isso não teria acontecido se eu estivesse com ele!

– Eu precisava colocar você em um lugar seguro. Você corria, e corre, risco de vida! Eu não sei o que os demônios querem, mas é algo grande, imensamente grande! Eu não teria conseguido te proteger por tanto tempo com Jimmy junto! – ele tentava se explicar.

– Em algum momento você pensou em me contar tudo isso?

– Eu não podia, não era seguro.

– Dane-se o seguro! É sobre a minha vida que estamos lidando aqui. Espera – o nó da minha cabeça começava a se desfazer, e uma coisa assustadora me surgiu de repente – Se você nos separou... Então você matou a minha mãe?

– NÃO! – disse ele rapidamente. – Como pode pensar isso?

– Eu estou pensando um monte de coisas agora. – encarei-o, e senti que Daniel estava escondendo coisas de mim. – Fale a verdade, uma vez que seja!

– Marina – começou ele – Não era sua mãe.

Meu corpo estremeceu. Se ele queria me enlouquecer, parabéns, estava conseguindo.

– Como é que é? – perguntei atônita – Como assim ela não era minha mãe?

– Eu não queria ter que te contar isso, mas você pediu, Marina também era um anjo. Ela era sua guardiã no momento em que demônios a acharam, ela usou o seu último poder pra te lacrar no guarda-roupa e apagar sua memória. Logo depois eu fui designado pra te proteger e essa última lembrança me foi passada, junto com a marca – Daniel levantou a manga da camiseta, mostrando a estranha tatuagem que tantas vezes havia relutado a me mostrar.

– Um anjo... – minha voz falhou e meus olhos ardiam como se estivessem pegando fogo por dentro. Tentei controlar as lágrimas, mas elas vinham muito rápido. – E Jimmy...

– Não – interrompeu ele – Ele não é seu irmão, Esther. Desculpe.

– E meus tios...

– Também não eram seus tios. Eu coloquei pensamentos na mente deles, pra eles acharem que você fosse uma sobrinha.

– Ei, isso aí é novo – comentou Bobby. Daniel suspirou devagar.

– Não é o típico poder que um anjo deveria ter.

Tantas mentiras. Isso só podia ser um pesadelo. De um dia pro outro você simplesmente descobre que sua mãe era um anjo, e na verdade não era sua mãe, seu irmão não é seu irmão, a pessoa que você mais confiava mentia pra você, e que você é perseguida por demônios que chegam na sua casa e matam sua família, que na verdade não era sua família. Surreal não é?

Eu sentia minha garganta apertada, como se mãos invisíveis a apertassem. Eu precisava respirar. Caminhei pela porta, passando por Dean que mantinha a cabeça abaixada, ouvi os passos de Daniel atrás de mim, mas ele logo parou.

– Esther precisa de um tempo sozinha – disse Bobby. Girei a maçaneta e sai pra fora do apartamento que eu estava. Minha mente estava um turbilhão, eu mal via pra onde estava indo, eu só queria respirar ar puro. Peguei o elevador e subi até o último andar, procurando a porta que levava ao terraço.

Tudo que eu havia ouvido. Cada palavra tão insana, ilógica, sem sentido e carregada de verdade. Eu ia precisar de algum tempo pra assimilar tudo isso, e talvez muito tempo pra perdoar todas essas mentiras.

Agachei-me contra a porta de metal, caindo lentamente no chão. Coloquei a cabeça entre os joelhos, formando uma bola. Segurei meus braços com força, chorando compulsivamente enquanto minhas unhas arranhavam minha pele sem perceber. O céu estava claro e limpo, as nuvens brancas dançavam no horizonte. O sol aquecia delicadamente, enquanto alguns pássaros cantavam em árvores próximas ao prédio. Mas pra mim, era como se meu mundo estivesse escuro e frio, com uma pitada de tragédia e autopiedade. Mesmo com meu coração apertado e sufocando, eu consegui rir da minha própria desgraça.

Dois dias depois.

Eram quase seis da manhã e eu ainda estava acordada encarando o teto. Não posso acreditar no quanto a minha vida mudou em dois dias. Num momento eu era apenas uma garota normal, e hoje sou uma garota caçada por demônios. Loucura? Pois é, mas quando a loucura é coletiva ela tem que ser levada a sério.

Passei as últimas horas digerindo todas as novidades sobre a minha vida. Pelo menos uma coisa eu havia descoberto: O que realmente matou Marina. Provavelmente um demônio, ou um anjo, ou sabe-se lá o que, atrás de mim. Faria sentido. Embora não ajudasse em nada saber que minha suposta mãe morreu me protegendo.

Depois de algum tempo, eu me acalmei e decidi conversar com Daniel a respeito de toda essa situação, claro que a sensação de traição não passaria tão fácil, mas eu já conseguia entender. Embora fosse errado, ele queria me proteger.

Segundo Daniel, quando Marina morreu, a marca de guardião foi transferida pra ele e assim ele passou a ser meu guardião. Sam, Dean e Bobby, que eram os especialistas aqui, disseram nunca ter ouvido nada a respeito. Eles tentaram contactar um anjo amigo deles, mas parece que ele não estava com “a rádio angelical ligada”.

Com alguma relutância, concordei com Daniel que deveríamos permanecer com os Winchester até descobrirmos o que os demônios estão armando, estaríamos mais bem protegidos assim. Mas o fato que realmente me fez ficar foi Jimmy. A única família que me restava. Não importava as circunstâncias, pra mim Jimmy era meu irmão, pode não ser de sangue, mas meus sentimentos em relação a ele não iriam mudar. Eu iria procurá-lo e protegê-lo, e eu tinha mais chances de conseguir isso estando junto com os especialistas em sobrenatural.

Levantei da cama, e caminhei até a sala, Dean estava esparramado no sofá e Bobby na poltrona, Sam olhava a tela do notebook, concentrado. Ele demorou alguns segundos para notar minha presença.

– Ei – disse baixinho – Acordou cedo.

– Não consegui dormir mais, e pelo visto você não dormiu – constatei, vendo que ele ainda usava as mesmas roupas de ontem.

– Só pesquisando – falou, forçando um sorriso.

– Nós vamos encontrar alguma coisa – encorajou Daniel, Daniel? Virei-me abruptamente pra trás, tropeçando numa cadeira. Ele estava parado logo as minhas costas.

– Coisas de anjo – falou Sam.

– Desculpe – disse ele – Eu tenho asas, posso ir a qualquer lugar num piscar de olhos. Se você ouvir um farfalhar tipo de pássaros, é porque um anjo está perto de você, lembre-se disso, assim você não se assusta mais – ele sorriu. Assenti com a cabeça, me lembrando do farfalhar que eu ouvi logo depois de ligar o carro, na fuga desesperada.

– Ontem no carro, eu ouvi esse barulho, mas... Não era você – disse, lembrando dos olhos azuis que eu vi logo antes de apagar, Daniel tinha os olhos negros. Sam arqueou uma sobrancelha.

– Castiel – falou. Eu o encarei com dúvida. – Ele estava com a gente, aí sumiu. Quando chegamos no carro você estava desacordada e ele não estava mais lá. Não apareceu mais.

– Estranho – murmurou Daniel.

– Ótimo, anjos misteriosos – falei – Sem ofensas Dan. – brinquei. Ele riu e deu de ombros.

– Você vai precisar de umas aulas de tiro – disse ele, depois de dois segundos.

– Com essa pontaria? Acho que nem precisa muita aula – falou Sam, estendendo a mão para pegar uma caneca de café ao lado do notebook.

– Não acho uma boa ideia, crianças e armas – a voz de Dean veio do sofá, ele estava levantando com a cara amassada.

– Você está uma droga – constatou o irmão mais novo.

– Eu não sou criança, tenho dezessete anos – revirei os olhos. Dean deu de ombros.

– Não adianta fazer cara feia. Se ela vai se envolver nisso, nós vamos treiná-la, não vou atirar ela aos cães sem uma arma – avisou Daniel. Quando ele havia se tornado tão protetor? Nem parecia o mesmo Daniel que eu conheci, que me arrastava pra cabular aula e perambular por cemitérios.

– Você é um anjo, não entende de armas – revidou Dean.

– Não sei com que tipo de anjos você tem contato, mas eu sei sim sobre armas. Precisei usá-las pra me defender, não posso usar minha graça, chama atenção.

– E não existe nós, nem sei se podemos confiar em você – interrompeu o loiro.

– Calem a boca suas pestes – Bobby reclamou, ajeitando-se na poltrona – Ficar brigando que nem cão e gato não vai ajudar a garota.

– Por mim ela vai ficar trancada no quarto até resolvermos isso – disse Dean.

– Uma ova que vou! – exclamei, olhando pra ele de cara feia.

– Partindo do princípio que a gente nem sabe por onde começar, nada de trancar a Esther no quarto – se meteu Sam – por enquanto – emendou.

– Sam! – protestei com a trairagem do “por enquanto”, ele deu de ombros.

– E quando a gente tem demônios nervosos a solta e não faz ideia de como começar... – Bobby levantou, indo até a mesa pegar uma garrafa de cerveja já aberta. Em seguida se virou pra Dean, fazendo uma reverência sarcástica. O loiro deu um suspiro pesado.

– Porque eu?

– Porque não importa quantas vezes eu o chame, ele não vem. Mas se você espirra, ele aparece só pra dizer “saúde” – disse Sam, parecendo meio ofendido. Dean fez uma careta.

– Castiel, se você está ouvindo, por favor, venha aqui. É importante.

Todos ficaram em silêncio por um tempo. Dean retorceu a boca, suspirando novamente.

Algumas horas mais tarde, depois de ouvir os Winchester recitarem um sermão sobre os diversos tipos de seres sobrenaturais, como matá-los e como reconhecê-los, Daniel conseguiu me raptar pra dar uma volta na cidade. O apartamento estava ficando pequeno pra nós e a hostilidade de Dean. Ele parecia desconfortável com o fato de Daniel ser um anjo.

Estava no final da tarde, o sol sumia por trás dos prédios do centro da cidade de Elwood. O vento abafado jogava os meus cabelos rebeldes pra trás e causava uma sensação boa na pele. Tínhamos combinado de ir amanhã de manhã bem cedo pra Sioux Falls, onde morava Bobby. Olhei pra cima, vendo as nuvens passarem rapidamente acima de nós, e uma pergunta me veio a mente.

– Como é lá? – perguntei, quebrando o silêncio – No céu? – Daniel me encarou surpreso, dando um sorriso em seguida.

– Digamos que é harmônico – falou – Mas não é nem de perto comparável a terra.

– Claro, aqui é terrível. Tanto roubo, tantas mortes.

– Não, Esther. Você não faz ideia de como a terra e vocês, humanos, são maravilhosos não é? – disse ele. Agora foi a minha vez de encará-lo com surpresa. – É claro, tem seu lado ruim, mas o lado bom compensa isso. Os sentimentos que vocês são capazes de sentir são tão indescritíveis... Olhe pra isso! – ele abriu os braços, girando ao redor. Estávamos em meio à avenida principal, pessoas passavam olhando e carros buzinando – É lindo.

– Eu não vejo assim – falei, olhando ao redor e vendo apenas barulho e confusão.

– No céu é tudo ordem e sobre seguir ordens. Anjos não tem vontades próprias.

– Mas você tem – constatei.

– Aprendi a ter no momento em que vi você. Pequenininha e assustada. Meu ser se encheu de ternura, Esther. – falou, dando um meio sorriso. Meus olhos se encheram de lágrimas. Eu não conseguia ter mágoa ou raiva de Daniel. Embora ele tivesse mentido pra mim.

– Porque você fala coisas assim? Não é justo – disse.

– Desculpe, li muitos livros de inspiradores – ele riu – O que eu sinto por você é... Eu não sei explicar, eu amo você.

Encarei-o meio boquiaberta, franzindo o cenho, ele pareceu confuso e depois começou a rir. - Não. Não dessa forma. Eu digo, amo você como... Uma irmã mais nova.

– Você me assustou – eu dei uma risada envergonhada – Tem coisas que você precisa me explicar.

– Pergunte.

– Como você estava perto de mim antes de eu ir pra escola?

– Lembra do seu amigo imaginário...

– Jebediah! – exclamei. Lembrando de algumas partes da minha infância que eu havia esquecido. – Era você!

Daniel fez uma reverência.

Idiota. Elena dizia que eu estava conversando com satanás. Você podia ter aparecido, isso evitaria muitos castigos e surras.

– Eu ia aparecer e dizer “Oi, sou um anjo”. Ela ia me bater com o crucifixo na cabeça – Daniel rolou os olhos.

– Você fez algum tipo de hipnose com a zeladora quando matamos aula?

– Sim. Eu posso, induzir pessoas a fazer o que eu quero de vez em quando – admitiu ele. Eu sabia! – Mas... Isso não é bem um poder que um anjo é capaz de fazer.

– Como assim?

– Eu meio que estou perdendo meus poderes primários, eles estão mudando. Como eu desisti do céu pra ficar com você, eu meio que estou me tornando um anjo caído, aos poucos. É confuso pra mim. Mas sinto que logo eu não poderei fazer coisas úteis, como voar e curar. – ele fez uma careta triste.

– Sinto muito – murmurei. – Como foi quando você me encontrou?

– Bom, eu estava observando a humanidade de cima da torre Eiffel, e aí algo estranho aconteceu. Eu senti como se uma grande onda de energia viesse na minha direção, e então minha casca...

– Casca?

– Sim. O corpo que me mantém. Nós anjos somos pura energia, não somos matéria. Sem uma casca você provavelmente morreria só de olhar pra mim.

– Isso é tão confuso – apertei os olhos. Daniel continuou.

– Como eu dizia, a minha casca começou a emitir uma luz muito forte. Meu ser estava sendo marcado, com isto – ele tirou o terno, abrindo a camiseta e mostrando a tatuagem. Algumas mulheres que passavam conversando encararam-no como se fosse um bife.

– E o que significa esse símbolo? – perguntei, observando o escudo com as duas espadas em forma de X.

– Eu não tenho certeza, mas acho que é a marca que tem na sua alma.

– Na minha alma? – franzi o cenho – E porque eu teria uma marca que lembra guerras ou lutas?

– Bom, isso é meio que uma novidade. Não sei exatamente o que significa, mas indica que você é uma lutadora. De uma maneira mais ou menos corajosa. – ele sorriu com um ar divertido. – O que vai totalmente fora de encontro com a realidade, pois você é uma medrosa.

Revirei os olhos.

– Eu não sou medrosa, eu apenas...

Blá blá blá – cantarolou Daniel. Eu dei um soco no seu braço.

– Vamos voltar ao assunto?

– Certo. – ele levantou as mãos.

– Por que a marca?

– Não sei, talvez seja exclusivamente para ser uma espécie de aviso, do tipo “eu sou dela, e vou protegê-la”. – disse, encarando a marca.

– Isso soa meio sexy – falei, dando uma risada. Ele rolou os olhos.

– Continuando, depois da marca, eu sabia que precisava encontrar você. Eu conhecia seu rosto por causa do último pensamento de Marina antes de morrer. Era você sorrindo. Não foi difícil te achar, e desde então, eu estou aqui – Daniel me encarou com uma expressão suave. - Mais alguma pergunta? – perguntou depois de alguns segundos.

– Porque você não me deixou sair com Derick Mcgomery ano passado? Ele era um demônio ou algo parecido?

– Não. Ele era um idiota, não serve pra ser seu primeiro namorado.

Revirei os olhos. De repente me lembrei de uma coisa importante.

– Daniel, no cemitério...

– Eu sei – disse ele. – Você está tendo visões. Eu não faço ideia do que seja, nem porque está acontecendo agora. Espero que isso não te assuste, mas o cadáver da garota sumiu.

– Sumiu? – meu queixo caiu. COMO ASSIM SUMIU? Notei que eu havia gritado no meio da avenida e muitas pessoas estavam me encarando como se eu fosse louca. Daniel apontou uma lancheria com mesas na rua.

– Vamos comer alguma coisa e aí eu te explico.

Assenti com a cabeça e seguimos em direção ao estabelecimento. Alguém fantasiado de frango entregava panfletos enquanto fazia uma dança vergonhosa. Eu estava decidida a começar uma dieta composta apenas por alimentos saudáveis, meu ponto de visto havia mudado um pouco depois de uma experiência de quase morte, mas foi tudo por água abaixo quando o hambúrguer de picanha me seduziu através do balcão.

Sentamos numa das mesas do canto, de frente para a televisão, na novela da tarde, a mocinha estava amarrada dentro do carro enquanto o vilão ultrapassava todos os limites de velocidade.

– Não vai comer? – perguntei para Daniel, notando suas mãos vazias.

– Eu não preciso comer, na verdade só o fazia para parecer normal pra você. – admitiu ele.

– Nossa, que horrível não precisar comer – comentei. Mesmo se eu não precisasse, eu o faria apenas pelo gosto indescritível de um hambúrguer.

– Eu pesquisei suas maluquices sobre vampiros – falei, depois de abocanhar minha comida.

– E se você pesquisou direito, e tendo em vista tudo que aconteceu, constatou que não são maluquices.

Meu silencio fez seus lábios virarem um sorriso vitorioso.

– Mas nada prova que aquilo – fiz referência ao cadáver no cemitério clandestino – era a tal Elisabeth Bathory.

– Tem uma coisa – Daniel colocou os braços sobre a mesa. Esperei – A família Bathory possuía grande riqueza que foi devastada pela guerra entre a Turquia e a Áustria, mas teve uma coisa que foi preservada – ele me encarou – um amuleto que foi entregue aos cuidados da própria Elisabeth, que zelou como sua própria vida.

– Um amuleto?

– Um pendante de rubi.

Meu sangue gelou. O amuleto que estava no meu pescoço, aliás, que foi parar lá, de algum jeito. Engoli seco, tomando um gole de suco de maracujá.

– Mas com tantos pendantes parecidos...

– O amuleto é singular, Esther. Com escrituras em romeno, diz que ele pode ter poderes, e algumas teorias também afirmam esse pendante ser o motivo do sadismo de Elisabeth.

– Claro, um amuleto começou a ter poderes sobrenaturais do nada, por vontade própria – disse com desdém.

– Não foi bem assim – Daniel chegou mais perto, algumas pessoas próximas olhavam para nós com uma expressão confusa. No mínimo ouvindo a conversa estranha. – Houveram conflitos entre a Romênia e a Hungria, diversos, muito antes de ela nascer. Em fotos históricas, um amuleto idêntico foi pintado num quadro de Vlad III.

– Vlad III – sussurrei, automaticamente ligando o nome a história – O Empalador. E como ele chegou nas mãos de Elisabeth?

– Não exatamente nas mãos dela, mas talvez da avó dela.

– E por quê?

– Talvez haja algum parentesco entre eles, eu não faço ideia – falou Daniel.

– Você está sugerindo que Elisabeth pode ser uma neta bastarda de Vlad III, ou mais conhecido como o homem que deu origem ao Conde Drácula? – perguntei, mais incrédula em mim por estar considerando uma coisa dessas.

– Não é impossível – constatou Daniel.

– Olha – suspirei – Eu acredito em demônios, anjos e tudo que eu vi até agora, mas vampiros? Você está tentando fritar meus miolos?

– Vampiros existem, mas esse não é o ponto, eu acho que podem ser demônios. Entende? Desde sempre.

– Vlad III era um demônio e encantou um amuleto que foi parar nas mãos de Elisabeth. – falei, considerando melhor a situação - E porque a avó ou a mãe dela não ficaram sádicas também?

– Talvez elas não o usassem.

Mordi o lábio, lembrando do pendante que havia ficado em cima da minha penteadeira.

– Preciso te contar uma coisa. Eu achei esse pendante.

Daniel arregalou os olhos, piscando duas vezes enquanto me fitava.

– E só agora você me diz isso?! – disparou ele.

– Ei! Eu estava assustada. Naquela noite, quando eu fui atrás da Lilly – meu coração se apertou um pouco quando eu lembrei da pobre gatinha que havia ficado para trás – eu acabei caindo dentro do túmulo, e o amuleto estava lá. E eu surtei, eu vi coisas e apareci em casa coberta de sangue com aquele treco dependurado no pescoço.

– Que tipo de visões?

– Visões esquisitas. E era como se eu me visse... Caindo de um penhasco – murmurei, sentindo um tremor ao lembrar da visão tão real. Daniel me fitou.

– Não sei se isso é possível, mas você pode estar desencadeando visões de suas vidas passadas.

– Vidas passadas? Isso existe?

– Assim como anjos – Observei-o por um momento. Ele parecia nervoso – E o pendante, está com você?

– Não, ficou na minha penteadeira – falei – Dean e Sam não o pegaram?

– Não havia nada, eu temo que os demônios que invadiram sua casa o tenham pegado. Nós não sabemos o que realmente significa aquele amuleto, então se eles o pegaram isso é uma má notícia. Os Winchester precisam saber disso.

Terminei meu hambúrguer rapidamente, enquanto Daniel pagava no balcão. Logo que ele voltou nós decidimos voltar para atualizar a situação para nossos especialistas.

– Uma pergunta meio sem sentido: De onde você tira dinheiro? – perguntei curiosa.

– Meus novos poderes de caído servem pra alguma coisa, eu digo “Lhe dei 50 dólares” e eles me devolvem 20 dólares como troco.

– Isso é errado – constatei.

– Eu sei - Daniel sorriu, mas em um segundo eu vi seu rosto mudar. Ele estava petrificado, olhando pelo meu ombro. Virei-me para fitar a direção de seu olhar e vi uma mulher negra de terno, parada, nos encarando em meio à multidão como se não houvesse mais ninguém. Meu coração acelerou.

– Um demônio? – perguntei.

– Muito pior. Raphael – murmurou ele, a voz tremendo. Raphael é um travesti? – Corre!

Daniel me puxou pela mão em direção a avenida. Corri contra hordas de pessoas, acotovelando quem viesse pelo caminho. Um hidrante estourou ao nosso lado, fazendo um carro desviar o caminho e ir de encontro a uma caminhonete, causando uma explosão. As pessoas começaram a gritar e correr. Daniel apontou a escadaria que descia para uma subestação de metrô que estava fechada para reformas, pulamos as faixas de “keep out” e descemos até os trilhos. Um trem em manutenção estava parado com os vagões abertos, mas não havia ninguém lá.

– Você precisa se esconder, agora! – falou ele, me empurrando pra dentro de um vagão. Daniel tirou um celular do bolso e discou rapidamente um número, jogando o aparelho pra mim – Demônios são fichinhas comparados à Raphael. Chame Sam e Dean!

Ele me empurrou, me fazendo cair sentada ao lado de um banco. Ouvi seus pés baterem no chão e em seguida pararam. Um som de palmas encheu o ar.

– Achou mesmo que podia fugir de mim? – perguntou uma voz feminina.

– Raphael...

– Seu erro foi topar com os Winchester. Eles têm mais radares que os EUA. Mas eu não tenho tempo pra conversar, entregue a garota.

– Ela não sabe onde James está – meu coração disparou mais forte ao ouvir o nome do meu irmão.

– E quem disse que eu quero James? – perguntou a mulher, retórica. – Você sabe que não pode lutar comigo Daniel, você é fraco. Ou você sai da minha frente, ou você morre.

– Acho que eu vou pagar pra ver – disse ele. Um estrondo de corpo com corpo e um gemido de dor, seguido de vários sons de golpes. Algo afiado cortou o ar. Arrastei-me até a janela do vagão, espiando pelos vidros sujos. Daniel estava segurando o braço esquerdo que tinha um corte iluminado, e Raphael estava com uma espécie de lâmina prateada em mãos. Peguei o celular, Dean havia atendido.

– Dean! Raphael está aqui, ele vai matar o Daniel! Você precisa vir agora!

– Onde você está?!

– Na estação de trem em manutenção na avenida principal!

– É sua última chance. Entregue-me a garota – falou a mulher.

– Vai se ferrar – cuspiu ele. Raphael pegou Daniel pelo pescoço e apontou a lâmina para seu peito. No momento em que o braço dele se moveu no ar, eu larguei o aparelho e corri em direção a eles, foi impulsivo, eu não podia ajudar, mas eu não me contive.

Daniel colocou a mão em frente ao peito, parando o golpe no ar, sangue jorrava da sua palma. Ele empurrou Raphael, dando uma volta em torno dele, fazendo com que o sangue fizesse um circulo. Ela olhou ao redor e deu uma risada debochada. Daniel puxou um isqueiro e ateou fogo no sangue. O círculo ficou em chamas e a expressão do anjo mudou. Ela estava surpresa, e furiosa.

– Muitas doses de óleo sagrado com tequila, baby. – Daniel riu e mostrou o dedo do meio. Em seguida se virou pra mim.

– Você está bem? Vamos sair daqui.

Dei um passo em sua direção, mas parei. A cena aconteceu rápido demais. Num segundo Daniel estava ali, e no outro um homem apareceu, apunhalando-a pelas costas. Ele o segurou e o virou lentamente para si.

– C... Castiel? – murmurou.

– Eu queria não precisar intervir irmão, desculpe – sussurrou o homem, com a voz baixa e grave. Em seguida ele me encarou profundamente. Os mesmos olhos azuis do carro. Castiel.

– Está atrasado. Quase perdi a garota. – reclamou Raphael, ainda dentro do círculo em chamas. Castiel se abaixou e largou Daniel no chão. Ele ainda estava vivo, seu peito sangrava e soltava uma luz branca muito forte, ele me olhou, estava chorando.

– Desculpe-me – sibilou entre lágrimas. Eu estava imóvel, assustada, desesperada e com muita raiva.

– Mate-o! – rosnou Raphael.

– Não é necessário. Ele não vai durar muito – disse Castiel.

– Espero que você não esteja dando pra trás, irmão. Lembre-se do nosso trato, se eu perder a garota, você vai ver seus preciosos humanos queimarem com o apocalipse!

Eles se encararam, e em seguida Castiel caminhou em minha direção. Não conseguia interpretar a fisionomia dele, mas o modo como me olhava fazia meu medo crescer.

– Não! – gritou Daniel, cuspindo sangue.

– Isso vai doer um pouco – disse ele, levantando a mão delicadamente pra mim. Daniel retirou a lâmina do peito e arremessou nele, o anjo caiu com o objeto enfiado na perna direita, que emitiu uma faísca de luz branca, em seguida Daniel sorriu estranhamente e seu peito se iluminou, me cegando por um segundo.

Quando pude acertar minha visão novamente, seu corpo estava inerte. Castiel retirou a lâmina da perna e me agarrou pelo braço, segurando meu rosto. Tranquei a respiração e fechei os olhos, ele ia me matar?

Esperei pelo pior, mas senti suas mãos afrouxarem e ele caiu de joelhos no chão, me levando com ele. Seu corpo começou a emitir uma luz branca em ondas cada vez mais forte, e ele começou a gritar de dor e rasgar as mangas da camiseta, terno e sobretudo que vestia. A pele do braço estava ficando vermelha, queimando, no formato de uma marca. Eu coloquei os braços em frente ao rosto pra me proteger.

– Castiel! – gritou Raphael. De repente a luz cessou. O anjo levantou a cabeça pra mim lentamente, ele arfava e me encarava assustado.

– A garota! Agora! – gritou Raphael novamente. Castiel se levantou e se virou para a mulher no círculo.

Não posso – disse, a voz calma e calculada. Ela ficou furiosa.

Eu vou fritar esse planeta se você não fizer!

– Não posso – repetiu.

Uma luz forte saiu do corpo dos dois e me cegou. Quando olhei novamente, eles haviam sumido. Dean estava parado ao lado da escadaria com a mão num circulo de sangue com símbolos estranhos. Sam desceu logo atrás dele com uma arma.

– Esther! – gritou o loiro vindo em minha direção, ele me puxou pelos braços e me levantou do chão. Ele falava comigo, mas eu não o ouvia.

Meus olhos fitavam mais à frente, fitavam o corpo de Daniel. Desvencilhei-me de Dean e segui até onde ele estava. Asas negras gigantescas contornavam-no, como se fossem feitas com giz. Abaixei-me e coloquei sua cabeça em meu colo. Meu coração acelerado agora doía a cada batida. Isso não podia estar acontecendo. Isso só podia ser um pesadelo. Acorde, acorde.

Lágrimas quentes desciam pelo meu rosto sem parar. Eu havia perdido a única pessoa que tinha agora, eu estava sozinha. Ele morreu me protegendo, e eu sequer havia dito a ele o quanto eu o amava, o quanto ele era importante pra mim.

– Por favor, você não pode me deixar. Por favor, por favor! – eu repetia desesperadamente. Dean me abraçou.

– Ele se foi, Esther. Eu sinto muito – disse, seu tom suave preenchido com compaixão.

– Não! Não! Não!

Ao longe eu ouvi sirenes se aproximando, o cheiro de sangue por toda parte me dava vontade de vomitar. Eu queria sair daquele lugar, eu não queria ver o corpo de Daniel naquele estado deplorável, mas ao mesmo tempo eu queria ficar ali com ele. Meu coração estava amassado dentro do peito, e nem um rio de lágrimas que eu chorasse agora iria diminuir essa dor. Nem um rio de lágrimas de sangue.


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