Identidade Homicida escrita por ninoka


Capítulo 50
Fator em comum




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/508366/chapter/50

[Jackelino]

Após quase duas semanas que tinha tomado a demissão, estava em casa depois de tanto tempo.

A Central decidiu me deixar no caso mesmo que à distância, cooperando com Nathaniel como um coadjuvante --  duas cabeças trabalham melhor que uma, afinal.

Depois de alimentar o casal de calopsitas, estava na sacada do prédio, no sol das cinco, tomando um ar e tentando parecer um quarentão comum, tentando viver a crise da idade do lobo como qualquer outro. Mas a verdade é que eu nunca fui um moleque normal e não era agora que as coisas iam começar a engatinhar do meu jeito.

Um bocado de pensamentos metralhavam na minha cabeça -- sobre Jay, sobre Agatha, sobre o caso de 20 anos atrás, sobre se nathaniel conseguiria se virar sozinho… Jade, Peggy, Elsie.

Naquele exato momento, convenientemente, o telefone tocou lá de dentro. Sem grandes pretensões caminhei até a mesa da sala e atendi.

— Alô?

— Jack. Sou eu. — Nathaniel se revelou.

— Moleque? Tudo certo?

— Preciso falar com você, pessoalmente e sem interferências. Tem algo pra hoje à tarde?

— Estou livre o dia inteiro.

— Perfeito. Me encontra daqui meia-hora? Sabe onde ir.

Me arrumei rápido, catei as chaves e me despedi de Lola e Derik (o casal de calopsitas). Em alguns minutos já estava dentro do Marguerite Coffee, sentado numa das cadeiras menos expostas. Nathaniel ainda não tinha chegado. O garçom veio e decidi não pedir nada, falei que tava esperando uma companhia ainda. Por algum momento me perguntei se tinha caído em algum tipo de brincadeira de mau gosto.

— Desculpa a demora.

Olhei pra cima pra me deparar com Nathaniel.

— Tá esperando há muito tempo? — disse eufórico, com a fala entrecortada e sem fôlego enquanto lutava para tirar a jaqueta jeans com uma pasta debaixo do braço

— Uns dez minutos só.

Enquanto manuseava a jaqueta pra dobrá-la, levantou a mão:

— Garçom, por favor, me vê um suco de abacaxi.

O garçom deu um sinal positivo e Nathaniel se sentou à minha frente, acomodando a roupa e a pasta num canto da mesa. Ajeitou o cabelo. Estava agitado; mas não no mau sentido, como se estivesse nervoso ou louco na droga. Parecia confiante, isso sim. A melancolia parecia ter se dissolvido e presença de líder agora voltava a vibrar ao redor dele, mais intensa que antes. Teríamos boas notícias?

— Estou curioso. — sorri. — O que foi que aconteceu?

Colocando as mãos unidas sobre a mesa, se livrou de um suspiro exausto:

— Essa semana foi intensa. Mas, em compensação, acho que tivemos alguns progressos.

Fiquei feliz, de verdade, naquele momento. Não só por um suposto progresso, mas por perceber que minha preocupação quanto ao moleque era à toa.

— Me conte.

— Vamos por partes…

Inspirou fundo, e desatou.

— A princípio, eu decidi buscar alguns relatórios e dados das nossas incógnitas principais: Jade, Kentin, Lysandre, Elsie.

— Certo.

— Jade foi a primeira vítima que encontramos, certo? Na cena de “óbito” tinha um cartão vermelho que encontramos tanto na mochila do Kentin, tanto na suíte da Elsie. O palco do evento também tinha um cartão, que poderia pertencer à Elsie também, já que ela chegou a usar o palco durante o evento. Mas, o cartão tinha um poema escrito à mão com a letra do Lysandre, o que significa que ele provavelmente pertencia ao próprio Lysandre, já que também teve presença no palco aquela noite. Conclusão: Não cheguei à conclusão nenhuma, pelo menos sobre esses cartões.

Certo. Então do que havia servido toda aquela euforia?

— Mas, então...?

— Eu comecei a me focar nas transferências súbitas. Consegui endereços só de alguns institutos. Por incrível que pareça, alguns pais não sabem pra onde seus filhos foram transferidos. Mas com os dados que consegui, pedi pra que a Central enviasse agentes até esses lugares. Lysandre, por exemplo: Nós conseguimos com o irmão dele a informação de que ele tinha sido transferido pra um colégio em Périgueux. Um dos agentes foi até lá. Começou conversando com os alunos e depois com alguns professores. Descobriu que de fato o nome “Lysandre Sinclair” estava no sistema, mas, em compensação, esse aluno nunca tinha dado as caras por lá.    

— E isso se aplica aos outros casos?

— Existem sim alguns alunos que foram transferidos ao longo do ano letivo, mas se esse número chega à três já é muito. Violette, Ulisses, Eduarda, Charlotte, Amber, dezenas de outros alunos estão na mesma situação. Registrados nos sistemas das escolas mas nunca sequer foram mencionados lá dentro.

Cocei a barba rala:

— Isso significa que estão oficialmente desaparecidos?

— Exato. E ver as coisas nessa perspectiva te lembra algo familiar…?

Pisquei como se precisasse pra calibrar a cachola.

— O caso de vinte anos atrás… — solucei, alucinado com a ideia.

Nathaniel afirmou com a cabeça:

— É como se… a coisa toda estivesse sendo recriada, só que de outra forma. E algo me diz que essa seria a melhor forma que temos pra poder entender o que aconteceu há duas décadas: recriando o cenário do passado. Pois bem, ele já está montado para nós.  

Não inibi um sorriso tosco. Aquele moleque era um prodígio. Não vou falar mais nada, não sou desse tipo de gente e você já entendeu onde quero chegar.

O garçom chegou com os copos e a jarra. Nos servimos e voltamos aos assuntos, sempre falando o mais baixo possível (o falatório dos outros clientes felizmente ajudava a camuflar o diálogo):

— Também aconteceu que, dando uma relida em alguns relatórios nossos, relembrei um componente que aparentemente nós tínhamos esquecido sobre.

— Quem?

— Melody.

— Hm… — tomei um gole do suco.

— Quando vimos ela quase assassinando Kim, pensamos que ela quem tinha feito aquilo com o Jade, se lembra? Estávamos crentes. Até que a lista de alunos transferidos continuou aumentando e nossa teoria foi pro ralo.

— Certo.

— Mas ficava a questão: Por que Melody ia fazer aquilo com Kim? Pra começo de conversa, se lembra onde elas estavam? Nunca nem tinha visto aquele cômodo no colégio.

— Sim. Eu também não.

— De toda forma, — apanhou a pasta que tinha trazido consigo.  — eu me preocupei em procurar algumas coisas a respeito da Melody. Cacei fundo. — retirou alguns papéis de dentro, botando na mesa e arrastando na minha direção. — Honestamente? Isso me deixou um pouco perturbado.

Aproximei a papelada e escaneei algumas palavras-chaves com os olhos. Nathaniel se achegou, apoiando o corpo e o antebraço na mesa, abafando a voz:

— Em 2014, quando o padrasto dela faleceu durante um café da tarde, as principais teorias foram de que ele tivesse sofrido de um ataque cardíaco. E a própria Melody me contou isso depois. Mas, de acordo com o que encontrei, a autópsia verificou que a morte tinha sido na verdade causada por intoxicação com cianeto. Acontece que uma pequena investigação se deu ao redor do caso. E o que mais me surpreendeu? Eles descobriram que a Melody mantinha dezenas de frascos de veneno engavetados no quarto dela.

— Foi a menina quem matou o próprio padrasto? — sussurrei.

— Exatamente.

Tomei mais um gole de suco. As coisas estavam ficando estranhas pra digerir.

— Eu me lembro dela falando sobre alguns assédios que aquele homem escrupulosos cometia com ela, e… eu queria poder tê-la ajudado, sinceramente. Mas, ela sempre disse que essa não seria a melhor coisa a se fazer. Me pergunto de onde ela tirou que sujar as próprias mãos seria a melhor forma de se livrar dele.

— Essa garota não foi presa?

— Esse é outro ponto que me intrigou: Melody simplesmente pagou uma fiança de trinta mil euros, foi liberada, e seguiu a vida.

— Trinta mil? — enruguei a testa. — Isso não é um dinheiro muito fácil de se conseguir.

— Uhum. Fora que Melody e sua mãe sempre enfrentaram uma situação financeira bastante complicada desde que o pai dela foi embora.

— E o seu palpite é.... ?

— Kim. Quando Melody estava prestes a matá-la. E se alguém tivesse… pago todo o dinheiro em troca de um assassinato? Será que essa não é uma boa justificativa? Uma motivação.

— Essa menina não parecia depender de grandes motivações pra assimilar um assassinato. Ela matou o próprio padrasto.

— Eu conhecia Melody, Jack. A morte do padrasto pode ter sido uma questão de desespero.

— Você por acaso se lembra do que ela disse? Ela disse que estava fazendo “por você”?

— Okay. Porém eu te pergunto: Por que “por mim”? O que Kim tinha haver comigo? E se ela na verdade estivesse dizendo que fazia aquilo por mim pra não se sentir culpada? Ou… porque decidiu não ser presa e pagar a fiança porque se importava com o que eu pensaria a respeito dela caso fosse presa e, por isso, tinha que matar Kim, indiretamente, por minha causa.

— Faz algum sentido.

Nathaniel acabou com metade do copo de suco. Acho que estávamos chegando à algumas conclusões.

— Mas quem estaria bancando esse tipo de situação doentia? E… Quanto aos outros alunos que desapareceram mesmo depois que Melody morreu?

— Eu não sei dizer exatamente… mas algo me diz que as duas coisas estão interconectadas. — fez um gesto de unir uma mão à outra, entrelaçando os dedos. — Talvez quem esteja promovendo seja justamente o responsável pelos desaparecimentos.

— Acha que pode haver algum sistema entre os próprios alunos que um cative o outro a cometer esses crimes?

— Não… A mafiazinha de badboys do Castiel provavelmente seja o mais próximo que temos disso. Eles eram violentos e incitavam uns aos outros a fazer merda. Gostavam de humilhar e tudo mais, mas assassinatos são pesados demais, até pra eles.

— Eu não duvidaria…

— Sem chances. Eles tinham dinheiro, mas não trinta mil euros de cara. Além do mais, Castiel se dava bem com Kim. E Lysandre… bem, eles eram melhores amigos.

— Está bem… — apertei uma bisnaga de adoçante em cima do suco. — Então me dê outra ideia.

— A própria escola. Ela deve ser o sistema por trás.

Engoli a bebida.

— Por que diz isso?

— A princípio pensei que a escola encobria os casos simplesmente por questões óbvias, como não gerar pânico nos alunos, nos pais, na cidade, ou, quem sabe, na França inteira. Pense em quantas pessoas se desmatriculariam imediatamente, quanta reputação e, consequentemente, quanto dinheiro seria perdido.

— Tem razão.

— Mas, você se lembra daqueles caras que foram atrás do “cadáver” do Jade? Quando Peggy os impediu.

— Sim.

— Mesmo que eles fossem algum tipo de grupo ou máfia estranha e que estivessem justamente manipulando todo esse esquema dos alunos matarem outros alunos, como conseguiram entrar lá tão fácil? Como andariam tão livremente? A segurança da instituição não deve ser tão frouxa assim. Eles, no mínimo, estão aliados à escola. E o mesmo vale para Jade: Como ele foi visto perambulando por lá sem qualquer preocupação?

— Hm…

— E isso, nos leva ao ponto principal: Shermansky.

— Você acha que ela… tem algo haver?

— Com toda certeza. Isso já é mais que óbvio à essa altura. Ela é a fundadora e diretora de Sweet Amoris.

Minha criança e meu adolescente rebelde interior se remexeram dentro de mim, como se fizessem birra por não aceitarem uma ideia absurda daquelas.

— Mas ela sempre esteve lá, moleque. Desde que eu era criança. Hoje ela é só uma viúva solitária.

— E é exatamente esse o ponto, Jack: “Ela sempre esteve lá”. Se esse caso é tão parecido com o de vinte anos atrás, existe um fator em comum entre eles. 

Nathaniel pegou ambos os nossos copos vazios e os colocou lado a lado na mesa.

— E o fator em comum entre as duas situações... — apanhou a jarra e serviu o suco equitativamente. — é a Shermansky.

Fiquei um pouco aéreo. Nathaniel arrastou meu copo de volta e bebeu o dele. A crise da idade dos lobos tinha chegado -- não do jeito que eu esperava. Contestar Shermansky era contestar minha juventude; e contestar minha juventude era destruir um pequeno rastro de inocência que eu ainda sentia por dentro.

— Então o que fazemos agora? — perguntei, segurando o copo e mirando o cubo de gelo boiar.

Nathaniel virou o suco pra dentro que nem licor, dando um estalo satisfeito com a boca depois.

— É pra isso que preciso da sua ajuda. — sorriu, vibrante. — Ainda estou buscando alguma relação entre àqueles cartões. Quero ter cem por cento de certeza de que eles estão ou não querendo me dizer alguma coisa. Eu também preciso que você, ainda mais como um ex-aluno de Sweet Amoris, recolha e vasculha tudo sobre a diretora. Sei que posso confiar em você.

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

; *