Identidade Homicida escrita por ninoka


Capítulo 48
Tarde Vermelha


Notas iniciais do capítulo

[capitulo programado]

pra quem se esqueceu: murple == a senhorinha que cuidou da elsie depois que a agatha faleceu



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Cada pôr-do-sol, quanto mais intenso e fresco fosse o abóbora de sua luz, trazia consigo uma esperança. Murple acostumou a pensar dessa forma.

Naquela tarde não seria diferente: o céu laranja prometia embelezar o jardim ainda mais. Murple estava ali, passeando pelos canteirinhos de plantas, oscilando entre passos curtinhos e dificultosos e a bengala de marfim. Os aparelhos não eram mais necessários, mas sentia, sim, ainda, dificuldades para respirar.

Os remédios tinham de ser tomados impreterivelmente no horário certo, regulados e controlados. A insulina também tinha que ser injetada no organismo logo depois do almoço. Também tinha a caminhadinha pela manhã, para adquirir vitamina D. Eram analgésicos para as costas, outro para dor de cabeça, um para a dor no fígado, outro para a gastura que os outros remédios traziam e florais para a ansiedade súbita. Seu sangue estava contaminado. Vivia à base das drogas. Não viveria muito mais tempo e sabia: aquele era o preço pelo seu pecado.

Mas ainda assim, haviam tardes como àquela -- alaranjadas --, que embora não mais alimentassem a esperança de Murple, serviam como um consolo; serviam como uma tentativa de encarar o mundo de uma forma bonita de novo.

Murple entortou-se para se assentar na namoradeira branca, sob a árvore de magnólias, que selecionava algumas de suas flores para desgrudar de seus galhos e cair para o mundo, se empoleirando graciosamente no chão ao redor da assento. Ajeitou-se e manteve-se segurando a bengala com ambas as mãos feito um báculo. Dali, a visão do sol era clara, quase próxima; via-o nas montanhas, se escondendo.

A luz vibrante contornava-lhe as rugas da face:

— Roger, Roger… Meu tempo também está acabando. Não, não posso reclamar. Olhe esse santuário da natureza.

Suspirou.

— Acha que a menina vai conseguir descobrir a verdade? O quê? Você acha que seria pior? Não brinca… Eu espero do fundo do meu coração que ela fique bem.  

O vento soprou uma nuvem para cima da esfera abóbora. A tarde se tornou gelada, um pouco escura. 

— Continua falando sozinha? — a voz conhecida lhe assombrou. 

Subitamente Murple muniu-se da pouca força que ainda depositava nas pernas, se ergueu na direção da voz e segurou a bengala feito uma espada:

— Você!

— Achou que eu não viria? — riu, Shermansky.

— Como entrou aqui? — franziu a testa, enfurecida.

Shermanksy ergueu as mãos para o alto e gesticulou para todo o arredor:

— Eu quem lhe dei esta casa, não? Uma baita casa. Não precisa agradecer. 

Murple e a bengala tremiam.

— O que você quer?

— Você sabe o que eu quero.

Murple tossiu.

— Não.

— Não se faça de desentendida.

— Saia daqui.

— Você quebrou uma parte importante do nosso contrato, se lembra? Ou essa sua cabeça enferrujada não serve nem mais pra se lembrar disso?

Murple tossiu, de novo, de novo, e de novo; até que o acaso se tornou um ataque sufocante de espasmos e tosse seca.

— Como eu temia… Você se apegou à menina. 

— Cale… a boca… — engasgou Murple, retrocedendo os passos bambos, tremulando, quase caindo para trás: — Você é a principal causa de tudo isso, Sherman! Você sim é a desgraça desse mundo! A garota vai te matar, assim espero. Ah, como espero! — sorria instavelmente.

— Não se preocupe com isso. — sorriu, tão pacífica quanto sua postura. — Você não vai estar aqui pra cantar vitória.

Murple arregalou os olhos. Às costas de Shermansky saiu um rapaz alto: Jade. Murple virou-se para correr, mesmo que em sua atual condição de saúde fosse um ato ridiculamente inútil tentar escapar. Sem surpresas, fraquejou. O erro de cálculo foi mortal. No fulgor da fuga o bastão caiu no chão; sem apoios, caiu, monstruosamente. Devia ter partido a bacia na hora. O rapaz alto apanhou a bengala. Marfim pesado e firme. Levantou para cima; a luz do céu ofuscou os olhos miúdos e pelancudos de Murple, que imploraram por piedade. Mas Jade, tragicamente, seria a última pessoa no qual ela poderia realizar algum êxito com o pedido.   

O sol laranja refletiu nos olhos de Shermansky, inabaláveis com a cena. As magnólias brancas caídas pelo chão tornaram-se vermelhas. Jade tornou-se vermelho. Rubro, quente. Logo tudo se tornou vermelho. Prosseguia com o ato, como se esmagasse centenas de amoras de uma vez, seguidamente.

E a tarde, de abóbora, tornou-se vermelha.


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