Cinzas escrita por Ludi


Capítulo 28
Reencontrando o Mundo


Notas iniciais do capítulo

Ho ho ho! Feliz Natal e Feliz Ano Novo para todos! Aproveitando o espírito caridoso do fim de ano, aqui vai mais um capítulo!

Queria agradecer DEMAIS a Babi Aveiro, Ju Ferrer e a Rose (liiiinda), as pessoas que perderam cinco minutos para me deixar comentários no capítulo passado. Não demorei mais (sim, não estava previsto continuar escrevendo antes da metade de janeiro) exclusivamente por causa de vocês. Foi particularmente especial porque vocês compartilharam comigo seus pensamentos e sensações sobre um capítulo que significa muito para mim. Obrigada, mais uma vez.

Vocês são sensacionais =*



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Junho 2006

Definitivamente, Draco estava incomodado com tanto barulho.

Desde que Ginevra tinha se mudado para a Mansão Malfoy, Draco não conseguia dormir na sua própria casa nem aos fins de semana. Por ironia do destino, aqueles eram os únicos dias em que ele estava livre da rotina excruciante do Ministério da Magia.

Como uma mulher tão pequena consegue causar tanto alvoroço numa Mansão tão grande?!, ele se perguntou ainda com consciência tão nublada pelo sono que não se importou em abafar pensamentos de admiração com relação às características da endiabrada.

Sim, porque aquilo só podia ser culpa dela. Antes era tudo tão tranquilo.

Tão monótono...

Ele afastou o pensamento e grunhiu mal humorado, girando na cama e se enrolando nos escuros lençóis de seda.

Colocou uma almofada por cima da cabeça para abafar o som que estava perigosamente vindo de um lugar próximo. Muito provavelmente próximo demais.

Por um momento, Draco cogitou se deveria se esconder com seu cobertor embaixo da cama - no único lugar que aparentemente era possível dormir sem ser incomodado-, mas desistiu da ideia em nome da sua dignidade.

Abriu um olho para espiar o que estava acontecendo e tomou um susto quando viu Edril parado ao pé da enorme cama, parecendo que ia se castigar a qualquer momento.

Draco calculou qual a força exata que ele precisaria para atacar uma almofada no rosto do elfo, mas mudou de abordagem e suspirou resignado. O melhor a fazer era lidar logo com a situação, seja lá ela qual fosse.

"O que você quer, elfo?" Ele grunhiu com seu tom menos caridoso e com a voz rouca pela falta de uso.

Edril se encolheu visivelmente, mas se obrigou a responder com voz esganiçada. "A senhora queria entrar no quarto do jovem senhor para acordá-lo, mas Edril sabe que é melhor chamar o mestre primeiro, pessoalmente. Não é bom para as pessoas acordarem o jovem mestre, não é não." Edril negou com a cabeça vigorosamente.

Draco ignorou as insinuações do elfo sobre seu (mau) humor matinal, em nome da curiosidade.

"Minha mãe quer me ver?" Ele perguntou bobamente e esfregou os olhos, ainda confuso por causa do sono interrompido.

"Não." Edril corrigiu rapidamente, se encolhendo por antecipação. "A jovem senhora."

Que diabos! O que ela queria agora?, Draco rolou os olhos.

Depois da tarde que havia passado no chão do salão da Mansão com Ginevra, ele tinha julgado que se mostraria muito vulnerável se começasse a se esconder pelos cantos da mansão ou evitasse a presença dela, então resolveu que o melhor era agir como se nada tivesse acontecido. E assim ele o fez.

Uma pena que Ginevra não compartilhasse das suas resoluções.

Como era seu hábito, Draco tinha fechado todas aquelas sensações numa das suas caixinhas de assuntos proibidos, mas Ginevra insistia em reaparecer, forçar os olhos dele sobre ela, invadindo seu círculo pessoal, roçando as pontas dos dedos levemente nele sempre que podia, sorrindo abertamente como se estivesse realmente feliz quando o via, procurando a presença dele, seu toque, seu corpo.

Provocando-o.

E a verdade era que ele realmente ficava apavorado cada vez que a avistava, cada vez que cruzava o olhar com o dela, cada vez que seu cérebro traidor parecia querer se derreter dentro daqueles profundos olhos castanhos.

Draco suspirou resignado e fez um gesto para que o elfo deixasse a endiabrada entrar. Se sentou apoiando as costas na ornamentada cabeceira da cama e tomou um longo gole de água do copo que estava sobre o criado mudo, como se aquilo pudesse lhe dar forças.

Quando ela entrou radiante e com o robe esvoaçando atrás de si, Draco deu o melhor de si para frear um sorriso traidor que ameaçou brotar nos seus lábios. Para contestar aquelas sensações indesejadas ele decidiu ser o menos agradável que podia - o que não era verdadeiramente difícil - e não se incomodou em levantar da cama para recebê-la.

"O que você quer aqui, Weasley?" Ele perguntou friamente. "Merlin, você já tirou minha paz e agora quer tirar meu sono também?"

Gina se limitou a balançar na planta dos pés e sorrir mais uma vez.

"Bom saber que eu mexo tanto assim com você." Ela falou maliciosamente e Draco rolou os olhos.

Draco cruzou os braços esperando que ela se dignasse a falar e, depois de um instante em que escrutinou o rosto dele, Gina balançou sua varinha graciosamente, conjurando uma caixinha embrulhada num papel roxo horroroso e fechada com uma fita amarela. Ela andou com seus típicos passos felinos até a cama e entregou a caixinha a ele.

"Feliz aniversário, Draco." Ela sorriu timidamente e ele quase ruborizou.

Quase.

Tinha esquecido o seu próprio aniversário!

Draco não tinha pretensões de se declarar modesto e nunca antes havia esquecido um evento tão relevante quanto a comemoração do feliz dia em que Draco Malfoy tinha entrado no mundo. Um pequeno passo para um bebê – desconsiderando que recém-nascidos eram incapazes de dar passos -, mas um grande passo para a humanidade.

Subitamente, ele se deu conta de que não queria viver num mundo onde Gina Weasley tinha que lembrá-lo do dia do seu aniversário.

Ou queria?

Ele estava sem palavras, olhando da caixinha para Ginevra e de novo para a caixinha. Gina rolou os olhos. "Vamos, Malfoy, se você mesmo não abrir esse presente eu serei obrigada a abrir por você."

Draco se obrigou a se recompor em nome da sua sanidade.

Ele sorriu cinicamente, mas engoliu o comentário que surgiu na sua garganta sobre a pobreza da infância dela, que certamente tinha feito com que ela crescesse com aquela ansiedade por presentes.

Decidiu que o melhor era fazer como ela queria e finalmente desembrulhou a caixinha metodicamente, encontrando um pomo de ouro visivelmente desgastado pelo tempo. Ao sentir a presença de Draco, o pomo começou a se agitar, como um animal de estimação que fica muito tempo ser ver o dono.

Se era possível, Draco ficou ainda mais atônito: o pomo o reconhecia como o seu 'humano'.

Era o seu pomo.

Ginevra estava irremediavelmente inquieta ao lado da cama.

"Legal, não é? Deu um trabalho dos diabos para encontrá-lo. Tive que passar em todas as lojas de antiguidades de Quadribol de Londres." Ela bufou rapidamente ao se lembrar do quanto havia procurado, para então sorrir mais uma vez. "Mas valeu a pena, não é? É o seu primeiro pomo, aquele que você pegou contra a Corvinal, no seu segundo ano. Eu me lembrava vagamente disso, porque... bem, não foi um ano muito bom para mim, mas eu me lembro do jogo, do jeito como você ficou tão feliz, como se não quisesse estar em outro lugar no mundo." Ela deu de ombros, nervosa e tímida diante do silêncio dele.

Draco tinha plena consciência de que estava olhando fixamente para o pomo e engoliu em seco.

Ela tinha trazido aquilo para ele, como uma lembrança de um momento em que ele tinha se sentido verdadeiramente feliz, mas que o tempo e o sofrimento dos anos subsequentes fizeram com que ele quase esquecesse. Mas, graças a ela, as lembranças o invadiram com uma força que o imobilizou.

Naquele jogo contra a Corvinal, ele tinha sido poderoso, querido, amado, tudo que sempre tinha feito com que ele sorrisse.

E Ginevra queria que ele se lembrasse de como era se sentir assim.

Contudo, naquele momento, tudo que Draco Malfoy conseguiu pensar inconscientemente é que não queria sentir outra sensação diferente daquela de estar perdidamente apaixonado por Gina Weasley.

Ele não poderia dizer o dia ou a hora em que aquilo tinha acontecido porque não havia sido evidente, como tudo mais que era relacionado aos sentimentos de Draco. Não foi uma constatação repentina, não houve tambores rufando ou relâmpagos no céu. Ele não podia apontar o momento exato em que o feitiço foi lançado, apenas sentia – sabia - que estava irremediavelmente apaixonado por Gina Weasley.

Draco se engasgou e teve que tossir para recuperar um pouco do autocontrole.

Teve a certeza de que ficou pálido como a morte com o pensamento porque ela o encarou interrogativamente e mordeu o lábio, apreensiva.

O mais depressa que pôde, Draco tentou sufocar aquele sentimento como fazia com todos os outros; o grande problema era que aquilo não era como os outros e ele travou uma dura batalha interna para não deixar transparecer nada do que estava sentindo para ela.

Não estava certo, aquele sentimento seria sua perdição. Afinal, ela ainda era uma traidora de sangue, uma chantagista, amiga de trouxas.

E ele estava apaixonado por nunca estivera antes.

Merda! Ele pensou, com desespero inundando sua mente.

Como era de se esperar, Gina interpretou sua reação hesitante da maneira errada. Draco viu como ela franziu a testa, entre contrariada e chateada.

"Só queria que você se lembrasse de alguma coisa boa porque você era realmente um ótimo apanhador, apesar do seu pai ter comprado um lugar no time para você…" Ela mudou o rumo dos pensamentos antes que Draco pudesse se ofender e ele ficou dividido entre chorar e dar risada. Optou por não fazer nenhuma das duas coisas. "Se você não gostou, tudo bem…" Ela sussurrou, murchando visivelmente.

"Ginevra, pare de falar, vai acabar me dando dor de cabeça." Draco encarou a esposa impassivelmente e esfregou a palma da mão na testa. Ela o olhou belicosa como se ele tivesse insultado-a de verdade, mas Draco fez um gesto com a outra mão para acalmá-la, deixando o pomo suavemente sobre a cama. "Realmente, há uma coisa que me agradaria mais do que esse presente."

Ela cruzou os braços se sentindo afrontada. "E o que eu poderia fazer por Vossa Alteza?" Ela zombou fazendo uma reverência. "Posso me esforçar mais da próxima vez para agradar a doninha saltitante do nariz empinado e-" Ela não conseguiu terminar a frase sarcástica porque Draco a puxou repentinamente para a cama, rolando por cima dela e prendendo o corpo dela com o peso do dele.

Os cabelos dele roçavam o rosto dela e ela torceu o nariz, ainda com resquícios de irritação no gesto. Draco sorriu malicioso.

"Ah, com certeza você vai se esforçar mais." Ele disse muito próximo a orelha dela, com a voz se arrastando um pouco mais do que o normal, cheia de malícia mal disfarçada. "Pelo menos fisicamente."

Gina, por sua vez, conteve um sorriso e tentou sem muito empenho sair de baixo dele.

"Você gostou?" Ela perguntou insegura e procurando os olhos dele, voltando ao assunto do presente.

Draco engoliu em seco antes de responder, mas não havia ponto em continuar relutando em dar a resposta que ela queria ouvir. "Foi a coisa mais doce e gentil que alguém já fez por mim."

Gina arregalou os olhos, se dando conta que ele tinha usado as palavras que ela mesma dissera naquela tarde em que eles se renderam aos seus sentimentos.

"Eu quero que você se sinta como naquele dia em Hogwarts, feliz." Gina disse suavemente, entrelaçando seus dedos do tecido da camiseta do pijama dele. "Você está feliz agora..." Ela disse sorrindo diabolicamente. "E eu gosto de ver você assim."

"Se sentir assim pode ser perigoso. Faz você parar de prestar atenção em coisas que podem ser importantes. Te faz ficar imprudente." Draco racionalizou, tentando argumentar mais consigo mesmo do que com ela.

"Que você seja imprudente então." Gina riu.

No instante seguinte, os lábios dela roçaram nos dele e Draco não desejava nada além de passar o resto da vida naquela cama, sentindo o corpo dela embaixo do seu. Quando ele estava prestes a aprofundar o beijo com sabe-se lá quais consequências, ouviu os passinhos de Edril no quarto e um grunhido de bebê que ele conhecia muito bem.

"Inferno!" Ele disse, rolando de cima de Ginevra e deitando de costas, lutando para normalizar as reações do seu corpo. Ouviu a risada da endiabrada ao seu lado. "Meu quarto está mais movimentado que o Beco Diagonal no Natal." Ele colocou novamente o travesseiro no rosto, dessa vez para abafar sua frustração.

"Não é bem o rosto que você deveria esconder com esse travesseiro, Draco." As palavras escorreram zombaria e mal conseguiram conter o riso dela.

"Fique quieta, Ginevra." Ele grunhiu com a voz abafada pelo tecido. "Ou vamos continuar o que estávamos fazendo na frente de qualquer um. Não vai ser novidade para nós, não é?"

Gina o ignorou, lutando para não ruborizar.

"Eu pedi a Edril que trouxesse seu filho. Aries também quer dar parabéns para o papai, não é?" Ela falou, provavelmente já se dirigindo ao bebê.

"Meu filho?" Draco resmungou ainda com o rosto coberto. "Aos fins de semana, antes do meio dia, ele é seu filho."

Draco sentiu a cama se movimentar quando Gina se levantou para pegar o bebê e, assim que ele descobriu a cabeça para encarar seu filho, seus olhos cruzaram com os olhos da mesma tonalidade do bebê. Aries – sempre tão silencioso - deu um atípico gritinho de felicidade e ergueu os braços, como se tudo que ele quisesse fosse ficar perto do pai. Então, todas as defesas e o mau humor de Draco foram desarmados.

Malfoy se sentou para pegar o bebê dos braços de Gina.

"Ele sente muito a sua falta, não era justo fazê-lo esperar." Gina sussurrou maliciosa.

"Não é justo me fazer esperar." Draco respondeu enquanto o menino erguia as mãos para tocar o rosto do pai. "Não terminamos aqui." Ele a mediu com os olhos, deixando seu ponto claro.

Que adorável mudança de atitude, ele se recriminou mentalmente, mas deu de ombros. Simplesmente não queria se importar com seus sentimentos por ela, não naquele momento.

Gina sorriu ignorando a ameaça-promessa dele e passou a mão pelos cabelos dourados de Aries. "Eu não sei por que ele gosta tanto de fazer isso." Ela disse se referindo ao gesto do bebê, que passava a mão por todos os lugares do rosto do pai que ele podia alcançar, enquanto Draco se remexia e tentava afastá-lo gentilmente.

"Um verdadeiro Malfoy aprecia a beleza mesmo antes de ter idade para falar." Draco abriu um enorme sorriso arrogante e Gina rolou os olhos.

Quando o bebê conseguiu finalmente vencer as frágeis barreiras impostas pelo pai, começou a morder o queixo de Draco e espalhar saliva por uma quantidade razoável de lugares.

Gina gargalhou.

"Você está rindo de mim?" Draco murmurou sombriamente. Ou o mais sombriamente que conseguiu, tendo um bebê loiro e curioso pendurado sobre ele. "Do maligno Comensal da Morte?" Ele zombou.

"Você não é maligno." Gina sorriu abertamente, ainda controlando a risada. "Só é mau."

Ele levantou a cabeça para olhar para ela, erguendo uma sobrancelha descrente e irônica. "Tem alguma diferença?"

"Sim," Ela respondeu com convicção, vendo-o com seu bebê, tão desarmado, tão aberto, tão... feliz. "Claro que tem."

Ela tinha certeza.

***

Harry movimentava as mãos com certa dificuldade, ainda tentando reaver o pleno controle dos seus movimentos.

Se recuperar de uma soneca de quase oito anos não era das tarefas mais fáceis, como ele acabou descobrindo com o passar dos dias. Se sentia como um bebê, desenvolvendo as habilidades mais básicas e lutando para apurar seus reflexos.

Enquanto ele passava o garfo de uma mão para outra, ignorando a comida que estava posta na mesa à sua frente, Augusta Longbottom entrou na sala de jantar, um pouco mais enrijecida do que o habitual.

"Você mal tocou na comida." Ela cacarejou sem preâmbulos. "Meu neto não se sacrificou para que você morresse de fome, Potter."

Harry sorriu, já habituado ao jeito da mulher com quem convivera nas últimas semanas. "Eu comerei, Sra. Longbottom. Só estava praticando…"

Ela interrompeu com um gesto impaciente da mão. "Suponho que agora você não vá comer mais mesmo. Eles chegaram." Ela disse diretamente e Harry quase saltou da cadeira. "Mandei que os levassem até a sala de visitas. Você consegue ir até lá?"

Harry não respondeu de imediato, se levantando com menos dificuldade do que sentia há alguns dias. "Preciso vê-los."

A avó de Neville estendeu uma mão ossuda para ajudá-lo e foi assim, de braços dados, que eles entraram na confortável sala de visitas de Augusta Longbottom. Harry estacou em frente ao sofá e só então levantou a cabeça, mal notando quando Augusta o soltou para ir se sentar em uma das poltronas da sala.

Por um momento, Harry apenas os encarou. E, naturalmente, eles o encararam de volta.

Certamente, Hermione e Rony estavam mais velhos. Ele suspirou, sabendo que eles estariam vendo a mesma coisa no próprio Harry.

Tantas coisas haviam mudado...

Hermione tinha adquirido um ar mais professoral – se é que aquilo era possível. Ela ainda tinha os cabelos escuros revoltos, mas suas formas assumiram indiscutivelmente um aspecto mais... feminino. Se não era uma mulher deslumbrante, Hermione tinha algo em si que fazia com que os homens a olhassem com mais atenção, uma aura de poder e determinação que não era comum.

Rony, por sua vez, tinha ficado ainda mais encorpado, seu olhar parecendo o de uma pessoa que tivesse endurecido algo dentro de si. Ele tinha ganhado algumas cicatrizes e perdera um pouco do ar divertido, como se carregasse um peso imenso nas costas.

Harry piscou diversas vezes, como se não pudesse acreditar nos próprios olhos. Enquanto Rony permaneceu em estado de choque olhando-o boquiaberto, Hermione se aproximou com passos hesitantes e levantou a mão, tocando -o levemente no rosto, passando pelas bochechas, pela cicatriz na sua testa, entrelaçando os dedos nos cabelos pretos e rebeldes, como se precisasse se certificar da veracidade do que estava vendo. Então, ela se jogou nos braços dele e, dado suas condições físicas ainda debilitadas, Harry não conseguiu evitar cair no sofá atrás de si, trazendo ela consigo.

Saindo do seu torpor, Rony cruzou a sala sorrindo em três passos para ajudar o amigo e, ao levantá-lo, não resistiu em lhe dar um abraço forte que quase tirou o fôlego de Harry, enquanto o girava pela sala.

Augusta murmurou alguma reclamação sobre Harry ainda estar frágil demais para ser balançado para lá e para cá como um balaço, mas passou despercebida pelos três, tão imersos uns nos outros como eles estavam. Como sempre foram.

"Senti sua falta, cara." Rony o colocou no chão, enquanto Hermione enxugava as lágrimas que brotaram nos seus olhos. "Você nem pode imaginar."

"Eu também senti." Ele sorriu, só entendendo agora a dimensão da verdade contida naquela frase e ajeitando os óculos que ficaram tortos no rosto por causa do ímpeto da demonstração de afeto do amigo.

Não pela primeira vez, Harry se sentiu mal por ter se permitido ficar todo aquele tempo fora da realidade. Não que ele pudesse ter acordado a hora em que bem entendesse, mas, pelo menos, ele poderia não ter dificultado tanto as coisas, por tanto tempo. Ele se sentou fracamente, não confiando nas suas pernas.

"Assim que recebemos a mensagem da Sra. Longbottom, viemos o mais rápido que pudemos para não levantarmos suspeitas." Hermione disse e se sentou ao lado de Harry, como se não pudesse se afastar do amigo por mais tempo.

Suspeitas sobre o quê?, Harry franziu a testa, mas não teve tempo de verbalizar sua dúvida.

"Você tem lembranças do seu coma? Tem ideia do que possa ter sido o gatilho para que você voltasse à consciência?" Hermione disparou, curiosa.

Harry se forçou a falar. Passara muito tempo se isolando para continuar fazendo isso deliberadamente. "Eu só... quis sair. Quis realmente sair. E acho que acabou dando certo..." Ele deu de ombros, sem jeito.

"E por que levou tanto tempo para querer sair?" Rony perguntou como se tudo fosse realmente muito simples.

Era exatamente aquela pergunta que Harry não queria responder. Como dizer aos melhores amigos que ele tinha escolhido ficar naquele estado?

"Eu não-"

Para seu alívio, Rony continuou falando. "Você não tem ideia de como foi difícil lidar com as coisas por aqui. O Ministério está caçando a gente sem misericórdia, perdemos muitas pessoas, Percy vive se escondendo pelos recantos mais sujos de Londres e Gina ficou completamente maluca-"

Ainda muito envolvido nas suas próprias culpas, Harry não estava ouvindo Rony completamente, mas, como era de se esperar, sua atenção foi captada à menção do nome de Gina. Entretanto, Hermione interveio antes que ele pudesse fazer qualquer pergunta.

"Rony!" Hermione repreendeu. "Uma coisa de cada vez, por favor!" Ela parecia bem ruborizada, mas por qual razão Harry não soube identificar.

"Err, ok." Foi tudo que ele disse e Harry notou uma espécie de comunicação não verbal entre os dois. Aquilo o incomodou. Não era comum se sentir excluído com Rony e Hermione.

Realmente, tinha dormido tempo demais.

"Harry, é importante sabermos todas as razões que envolveram seu coma, para que consigamos entender se é seguro que você volte com a gente." Hermione chamou a atenção dele para si, antes de completar num tom de voz mais baixo, cheio de expectativa. "Se quiser mesmo voltar, é claro…"

"É óbvio que quero voltar!" Harry exclamou quase ofendido, olhando Hermione com os olhos verdes arregalados. "Não é certo deixar todos achando que eu nunca mais acordarei."

Hermione ficou em silêncio e mexeu na unha nervosamente. Então, Harry subitamente entendeu.

"Ninguém está esperando que eu volte, não é? Ninguém sabe que estou vivo…" A voz dele morreu.

Rony assentiu levemente, pegando na mão de Hermione e dando um aperto reconfortante. "Não podíamos dizer nada. Não podíamos expor você à ira de Você-Sabe-Quem naquele estado de coma. E nem podíamos dar falsas esperanças aos nossos amigos." Ele tentou explicar, parecendo pedir desculpas no tom de voz.

"Gina...?" Foi tudo que Harry conseguiu pensar. Hermione colocou a mão livre sobre a dele, apertando-a de maneira tranquilizadora.

"Ela também acha que você está morto. Nos perdoe, Harry, mas também não tínhamos a menor condição de dar esse tipo de esperança para ela. Se você nunca mais acordasse…" Hermione deixou a frase no ar.

Gina não teria seguido com a própria vida e teria esperado que ele acordasse. Talvez durante sua vida inteira, Harry completou mentalmente.

Harry estava atônito demais para falar. Era como se ele tivesse sido simplesmente arrancado da vida das pessoas que amava. Como se alguém tivesse apagado-o com um gesto da varinha. E ele havia colaborado com aquilo durante sete anos.

"Você está bem, Potter?" Augusta se dirigiu a ele com ar preocupado, se virando para Rony e Hermione com severidade no olhar e sem esperar pela resposta de Harry. "Eu falei para vocês irem devagar, para não exaltá-lo. Olhem como ele está magrelo! Não tem condições de lidar com tudo isso agora."

Rony parece envergonhado, mas Harry fez um gesto conciliador com a mão, impaciente para saber mais.

"Eu estou bem, Sra. Longbottom. Quanto antes eu me atualizar de tudo, melhor." Ele ajeitou os óculos e sorriu fracamente.

"E Merlin sabe a quantidade de coisas que ele precisa ficar sabendo." Rony resmungou.

"Primeiro," Hermione interrompeu, dando um olhar significativo para Rony. "precisamos falar sobre suas atuais condições físicas."

"Você tem algo em mente, Hermione, para explicar tudo isso?" Harry perguntou franzindo a testa. "Tudo o que eu posso te dizer é que fiquei inconsciente, numa realidade criada por mim mesmo. Então Dumbledore estava lá – sempre esteve, na verdade- e me ajudou a despertar, a lembrar…" Ele divagou.

Hermione respirou fundo e começou a expor a teoria que tinha desenvolvido através dos anos.

"Eu venho pensando nisso desde que descobri que você estava vivo. Você é a única pessoa que sobreviveu a uma maldição da morte, não apenas uma, mas sim três vezes, então não pude contar com referências bibliográficas sobre o assunto…" Ela pareceu frustrada e pensativa, enquanto Harry se mexia incomodado no sofá, com a curiosidade aguçada. "Me parece que a história se repetiu em vários detalhes… Você foi salvo mais uma vez, através do amor e sacrifício de alguém que deu a própria vida para te proteger…" Ela mordeu o lábio, olhando para a Sra. Longbottom, indecisa.

"Neville... Foi Neville..." A velha mulher suspirou, externalizando o pensamento dos três jovens adultos. Ela ajeitou a pele de raposa sobre o ombro e aproveitou para, muito discretamente, limpar uma lágrima que teimou em brotar no seu rosto enrugado. "Ele sempre foi muito parecido com o pai. Queria ter dito isso a ele mais vezes."

Harry sorriu para a velha senhora. "Sra. Longbottom, você é uma das pessoas que salvaram minha vida e que eu nunca pude agradecer propriamente." Ele disse se referindo mentalmente também a Neville e estranhamente, a Narcissa Malfoy, mesmo que ele não entendesse ao certo por que. Ou melhor, mesmo que ele não lembrasse por que, ficando somente com a lembrança incomoda de que ele tinha tirado da sua mente algumas memórias relacionadas a algo que Narcissa Malfoy havia feito. "Infelizmente, só vou poder agradecer a senhora, eu acho. Mas Neville também é uma dessas pessoas e estará sempre comigo, aonde quer que eu vá."

Augusta assentiu, caindo num silêncio pensativo. Então Hermione pôde voltar a explicar um pouco mais relaxada. "Neville fez por você o mesmo que sua mãe fez, quando você era ainda um bebê. E te protegeu da Maldição da Morte, à custa da própria vida."

"Eu gosto dessa versão heroica da história, garota, mas isso não explica o coma, não é? Como ele não ficou nesse mesmo estado, quando Lilían Potter o salvou? E por que a Maldição da Morte não ricocheteou de volta para Voldemort, como da primeira vez?"

"Porque dessa vez a alma de Harry estava uma zona." Rony disse sem rodeios.

Hermione fez uma careta. "Zona não é um bom termo, de fato. Mas, sim, as coisas estavam um pouco... desorganizadas. A parte da alma de Você-Sabe-Quem que estava em Harry foi destruída na Batalha de Hogwarts e isso parece ter desestabilizado Harry, deixando-o em coma. Lembra dos detalhes das horcruxes, que explicamos da última vez que estivemos aqui?"

Augusta balançou a cabeça num gesto afirmativo. "Como poderia esquecer de tudo que foi dito naquele dia?"

Hermione assentiu, satisfeita pela boa memória da bruxa mais velha. "Com relação à razão da Maldição da Morte não ter voltado para Voldemort, só posso supor que Harry acabou absorvendo parte do impacto porque sua alma estava debilitada e porque, apesar da força do Encantamento de Proteção que Neville conseguiu pôr em Harry, nada é tão forte quanto o amor de uma mãe."

E, inesperadamente, Hermione pensou em Gina ao dizer aquilo. Gina que tinha aberto mão de tudo em nome do filho, se sacrificado de todas as formas possíveis...

"Então precisamos ter certeza de que é seguro você voltar, garantir que isso não vai acontecer de novo." Rony afirmou parecendo preocupado e arrancando a esposa dos seus pensamentos.

"Eu estou bem, Rony. Esse tempo foi o suficiente para que eu me regenerasse." Harry o tranquilizou. "Minha ligação com Você-Sabe-Quem chegou ao fim, posso sentir."

Foi involuntário, mas os outros três presentes deram idênticos suspiros de alívio ao entenderem isso.

Hermione pigarreou. "Há também um outro aspecto sobre o qual precisamos conversar... O gesto de Neville fez com que, enquanto você estivesse com alguém do sangue dele, você estaria protegido... Saindo daqui-"

"Eu quero voltar, Mione, quero lutar." Harry repetiu.

"Eu disse a ela qual seria sua resposta o tempo todo, Harry." Rony sorriu orgulhoso do amigo. "Mas ela insistiu dizendo que, se quisesse, você tinha direito a uma chance de recomeçar em outro lugar, no anonimato."

Harry afastou a ideia dando um aceno vigoroso com a cabeça. "Tudo que eu amo está aqui, não tem sentido querer ir para outro lugar." Ele entendia isso agora.

Ele sorriu para os dois amigos e para Augusta. "Mas antes de mais nada, preciso de todos os detalhes que puderem me dar. Estou um tanto perdido ainda. O que aconteceu? Quem está na Ordem? Onde vocês estão vivendo? Gina está bem?"

Rony e Hermione trocaram um olhar constrangido que não escapou a Harry.

"Vocês não tem acesso a nada de informações?" Rony perguntou cauteloso, enquanto Hermione desviava o olhar.

Foi Augusta quem respondeu. "Algumas edições esporádicas d'O Profeta é tudo que temos nesse canto da Espanha. Certamente elas sequer são confiáveis, dado que todos os meios de comunicação estão sob o domínio de comensais."

Rony inspirou profundamente antes de dizer. "Se prepare, Harry." Ele disse, dando um tapinha amigável nas costas do amigo. "Tem muita coisa que você precisa saber."

***

Gina estava suspirando.

Como uma maldita adolescente, eu estou s-u-s-p-i-r-a-n-d-o, ela pensou entre uma ou outra risadinha que se permitia dar quando estava sozinha.

Nem as horas passadas na loja fabricando poções eram suficientes para desviar seus pensamentos dele.

Tinha que admitir que ela estava absolutamente rendida. Depois que ela dera o pomo de presente para Draco, tinha certeza que eles terminariam novamente nos braços um do outro, mas não lamentou a chance temporariamente perdida. Valeu a pena ver seu bebê tão envolvido com Draco daquela forma. Era maravilhoso ver Aries crescendo com um pai ao sei lado. E, por mais que não fosse admitir aquilo nem em um milhão de anos, via que James também estava se afeiçoando a Draco de uma maneira totalmente inesperada.

E algo lhe dizia que Draco estaria mais do que disposto a tentar repetir a intimidade interrompida na cama dele mais algumas vezes. Como o corpo dele reagia ao dela era uma evidência considerável disso. Ela ruborizou e sentiu um arrepio percorrer sua coluna ao se lembrar em como eles se encaixavam, como a presença dele era tão avassaladora para ela.

Além disso, Gina tinha a forte impressão de que tinha mexido com algo dos sentimentos dele, algo além do físico. A extensão disso, só o tempo poderia dizer – porque Draco certamente não diria-, mas ela estava bem satisfeita em ter pelo menos aquela centelha de afeto por enquanto. Sair do estado do ódio, do desprezo, para aquele envolvimento instigante que aquecia seu peito toda vez que se lembrava dele era inebriante.

Gina se levantava cada dia com a sensação de que o mundo era maravilhoso e que ainda o seria quando ela se deitasse a noite para dormir e que, no dia seguinte, quando acordasse, continuaria sendo, num ciclo sem fim. Não se recordava da última vez que tinha se sentido assim. Talvez quando recebera sua carta de Hogwarts, tantos anos atrás.

Se sentia completa, estava feliz.

Concentrada nas mudanças positivas da sua vida nos últimos meses, Gina media distraidamente alguns ingredientes na sua balança de latão quando ouviu um plop típico da aparatação atrás de si.

Quando ela virou já com a varinha em mãos pronta para dizer uma azaração seja lá contra quem fosse, deu de cara com os olhos verdes de Rony, levemente arregalados e apreensivos.

"Rony, seu estúpido!" Gina levou a mão livre até o coração, sua respiração acelerada. "Isso é jeito de aparecer? Podia ter me matado de susto!"

"Não temos tempo para isso." Ele falou apressadamente como se estivesse dizendo que aquela não era uma boa hora para sua irmã morrer e Gina mordeu a língua para não perguntar se ela estaria liberada para bater as botas quando fosse mais conveniente para Ronald Weasley. "Precisamos sair daqui, ir para um lugar seguro. Há alguém que você precisa ver."

Gina franziu a testa. Rony parecia agitado demais e aquilo não a deixava confortável, sob hipótese alguma.

Subindo nas pontas dos pés e olhando por cima do ombro do irmão, Gina percebeu pela primeira vez uma figura encapuzada que supostamente tinha vindo com ele.

"O que está acontecendo?" Ela perguntou, voltando a olhar para o irmão em busca de respostas. "Rony, você está bem?"

"Sim, estou! Mas precisamos ir! Desde que você fez novas... conexões, não é mais seguro conversar aqui." Rony falou puxando-a pelo braço.

Ela entendeu muito bem a quem Rony se referia com 'conexões' e rolou os olhos – já estava mais do que na hora de seu irmão perceber que Draco não faria mal a ela, nem era uma ameaça imediata. Estava casada com ele há mais de um ano e caminhando para algo estranhamente seguro e estável.

"Espera, eu não sei-". Gina não conseguiu terminar de falar porque Rony começou a arrastá-la ansiosamente e ela tentou se desvencilhar do aperto do irmão.

"Chega, vocês dois!" Uma voz exigente parou o movimento dos dois e Gina reconheceu a voz imediatamente. Quando a figura de fartos cabelos castanhos abaixou o capuz da capa, Gina reconheceu os olhos atentos de Hermione. Gina se desgarrou de Rony imediatamente para se jogar sem pensar duas vezes nos braços da amiga.

"Hermione!" Ela não sabia o que dizer, enquanto envolvia seus braços em Hermione e era abraçada de volta. Tantos anos sem vê-la e o aperto causado pela saudade chegava a doer. "Eu estou tão feliz por ver você! Eu-eu-" Gina pensou melhor, percebendo que a presença de Hermione significava algo sério. Ela se afastou um pouco, para perscrutar o rosto da amiga. "O que diabos está acontecendo?"

"Rony está sendo nada sutil, como sempre." Hermione olhou severamente para Rony, que fez sinal para que ela se apressasse. "Viemos para conversar com você, mas gostaríamos que não fosse aqui. Você pode sair?"

"Sim!" Gina não hesitou em responder. "Eu só preciso mandar um recado para Della na Mansão Malfoy e-"

Nesse momento ouviu um ruído surdo de um baque leve contra a estante e um pequeno caldeirão de misturas rolou pelo chão. Gina se interrompeu bruscamente, enquanto Rony rolava os olhos e Hermione olhava involuntariamente para o local do ruído, confirmando a impressão de Gina.

"O que está acontecendo aqui?" Ela repetiu, colocando as mãos na cintura e olhando para os dois. "Quem mais está aqui?"

"Gi, não é nada, só precisamos ir-" Rony tentou desviar sua atenção.

Gina abriu a boca para responder alguma coisa malcriada quando ela viu algo que a fez cambalear para trás e se apoiar na bancada atrás de si, derrubando seus utensílios e fazendo ecoar um barulho agudo pelo chão da sala.

Prestando muita atenção no local, ela viu a ondulação de algo que, depois de um instante, se tornou mais fluído e revelou a cabeça de um homem.

A cabeça de um homem de cabelos pretos, desgrenhados.

De um homem que tinha desenvolvido uma barba incipiente e que ajeitava os óculos – os mesmos óculos-, parecendo estar constrangido.

Um homem de intensos olhos verdes.

Harry.

Todo o ar sumiu dos seus pulmões e Rony teve que segurá-la antes que ela caísse no chão.

***

Draco estava ao lado do berço do filho no quarto mais claro da Mansão Malfoy, pintado com suaves tons neutros e recém-decorado com todas as parafernálias infantis que o dinheiro podia comprar.

Ele se inclinou sobre o berço no centro do quarto simplesmente porque se dera conta de que observar seu filho descobrindo um novo mundo era uma das poucas coisas que aliviavam seu espírito das preocupações recorrentes.

Aries tinha feito uma descoberta que tinha fascinado-o e, nos últimos minutos, estava totalmente imerso nessa nova etapa da vida: ele tinha se dado conta de que tinha pés. E Draco, por sua vez, descobrira que era hipnotizante observar seu filho. Seu herdeiro.

O bebê segurava os pés rechonchudos, puxava-os, tentava colocá-los na boca. Gemia com desagrado quando não conseguia e Draco não pôde deixar de sorrir.

"Acho que eu posso me acostumar a ter você por perto, mesmo com esses terríveis indícios de sardas." Ele disse para o bebê, que por sua vez considerava que morder seu pé certamente tinha mais importância do que prestar atenção no seu pai. "E eu realmente achei que os bebês eram fardos feios e resmungões. Mas você é bem gracioso."

Aries principiou um choro quando uma meia se recusou a sair do seu pé e Draco teve que tirá-la rapidamente diante do ar impaciente do bebê.

"Apesar disso não mudar o fato de que você continua sendo extremamente resmungão." Ele completou contrariado.

No começo, se sentia completamente ridículo por tentar conversar com alguém que sequer sabia entender o que ele estava dizendo, mas aquilo acabou se tornando uma tradição só dos dois, como um segredo que eles partilhavam.

"Tem o gênio da sua mãe, com certeza." Draco continuou, não evitando que um sorriso idiota aparecesse no rosto. "Ouça meu conselho, Aries: fique longe das ruivas." Como se tivesse entendido suas palavras, Aries resolveu gorgolejar.

Draco desconfiou fortemente que aquilo poderia ser encarado como uma expressão de zombaria e ergueu uma sobrancelha para o filho. Pegou o bebê no colo, começando a passear pelo quarto, enquanto sua mente vagava em direção a ela, como sempre andava acontecendo ultimamente.

"Acho que sempre soube que eu deveria ficar longe dela, quando descobri que ela tinha voltado sabe-se lá de onde esteve se escondendo. Agora aqui estou eu, fazendo confissões de amor para um bebê a respeito de uma mulher que eu deveria odiar, por tudo que ela é, por tudo que ela fez." Aries se moveu incomodado e Draco suspirou. "Certo, eu sei que ela é sua mãe. Também sei que se ela não fosse assim, você não estaria aqui." O menino se remexeu mais uma vez, principiando um novo choro.

"Está tudo bem, bebê. Papai está aqui." Ele passeou um pouco mais pelo quarto dando tapinhas sem jeito nas costas do menino, mas Aries permaneceu inquieto. "Está com saudades dela, não é?" Ele perguntou, quando viu o brilho de lágrimas cobrir os olhos cinzas do filho. "Porque eu acho que também estou." Ele suspirou, admitindo a contragosto.

Olhou para o relógio na parede que indicava os horários de soneca e alimentação de Aries, começando a se preocupar com Ginevra. Aquela hora ela já deveria ter saído da maldita loja. Levantou o bebê até que os olhos cinzas ficassem nivelados com outro par de olhos iguais. "O que você acha de fazermos uma visita para a endiabrada da sua mãe?"

***

Gina se encontrou sentada numa poltrona do seu escritório, com uma xícara de chá quente nas mãos e com o corpo todo tremendo. Simplesmente não conseguia tirar os olhos de cima de Harry – sentado diante dela -, como se estivesse se certificando de que ele não era um fantasma.

Ele se remexeu incomodado na poltrona sob o olhar atento de Gina, mas ainda assim ela não desviou os olhos.

Tinha ouvido a história que eles contaram em silêncio, como se estivesse em outro plano. Hermione se aproximou dela, mas Gina rechaçou seu contato, saindo do seu estado de letargia. Hermione entendeu o recado, se afastando para um dos cantos do escritório.

"Gina..." Harry disse suavemente, "eu não queria aparecer assim, mas-"

"Vocês mentiram para mim!" Ela explodiu em direção ao irmão e a cunhada, ignorando Harry, com a xícara tremendo nas mãos. Subitamente, ouvir a voz dele era doloroso demais. "Vocês sabiam o quanto eu estava sofrendo, pelo que eu passei!" Não controlava sua voz, apenas encarava Rony e Hermione com ódio no rosto. "Toda a minha vida mudou... Merlin, se eu soubesse... Não teria me afastado, não teria tirado James de perto da minha família. Eu poderia ter tido uma chance de fazer diferente..."

"Eu não queria que você se afastasse, eu te disse, Gina." Rony disse pesaroso. "Eu tentei, mas-"

"Quero que você vá para o inferno com seus 'mas', Ronald Weasley!" Ela gritou, apontando o dedo indicador para ele e não contendo as lágrimas que havia retido por tantos anos. "Por isso que você sempre brigou comigo por eu ter partido, nunca quis se aproximar muito de James e me criticava por ter tirado ele de perto de Harry! Eu achava que estava afastando meu filho de um fantasma de um pai morto e você sabia que ele estava vivo!" Ela sequer respirava. "E, Merlin, todos esses anos você ficou amargurado comigo, simplesmente porque estava refletindo sua própria culpa em mim!"

Rony abaixou a cabeça, visivelmente derrotado. Hermione a interrompeu, encarando-a com seus olhos escuros.

"Rony fez o que deveria fazer, Gina. Por mais chateada e raivosa que você esteja se sentindo agora, - e eu absolutamente não posso contestar suas razões - não se esqueça que fomos nós que convivemos com o peso desse conhecimento durante todos esses anos. E que esse mesmo conhecimento trouxe isolamento para nós dois, do mesmo jeito que trouxe para você." Ela suspirou cansada. "Todos nós tivemos nossos fardos para carregar e não acredito que nenhum deles tenha sido leve."

Gina apenas a encarou, com olhos marejados que transbordavam como ela estava se sentindo: traída.

"Alguns fardos são mais leves do que outros, Hermione." Ela limpou as lágrimas dos olhos. "Tudo fica mais fácil quando temos as pessoas que amamos do nosso lado. E isso eu não pude ter."

"Do mesmo jeito que nós não pudemos ter nossas consciências livres de dor e arrependimento por isso." Hermione rebateu. "Fizemos o que fizemos para dar uma chance para que você seguisse sua vida e para que não ficasse esperando por alguém que poderia nunca acordar."

Gina apenas fungou, colocando no som toda a zombaria e descrença que podia.

Vendo que não obteria resposta, Hermione se virou para o marido. "Vamos dar um tempo para que eles conversem, Rony. Não ganharemos nada ficando aqui com os ânimos exaltados assim." Rony assentiu, sem dizer uma palavra com os olhos também marejados. Hermione então se dirigiu a Harry. "Vamos vir te buscar em vinte minutos; nossa chave de portal não demorará a partir."

"Obrigado, Hermione." Harry disse solenemente e Gina pousou seus olhos nele, cheia de raiva por ele estar agradecendo as pessoas que tinham escondido que ele estava vivo.

Mas, afinal, o que esperar da cumplicidade do trio de ouro?, ela pensou amargurada.

Hermione então se virou para Gina. "Tudo que eu posso dizer é sinto muito. Não só por você, mas por todos nós. Por James, por Rony, por Harry, por mim. Ninguém nunca vive o suficiente para parar de lamentar as consequências de uma guerra."

E, com isso, ela pegou Rony pelo braço e desaparatou da loja de Gina.

Harry a olhou timidamente e os dois ficaram em silêncio por um bom tempo até que ela se recuperasse um pouco e ele pudesse falar. "Como ele é, Gin?"

Gina não precisou de muito raciocínio para entender a quem ele se referia e não pôde evitar um sorriso fraco que cruzou seus lábios involuntariamente. "Se parece muito com uma versão mais jovem de você."

Harry sorriu em resposta, ficando pensativo na sequência. "Para você deve ser difícil acreditar que é possível amar alguém que nunca se viu. Por outro lado, para mim é bastante comum: amei meus pais sem ter lembrança deles, amei Hogwarts antes de chegar a pôr os pés nela e amo James antes de sequer encontrá-lo." Aquilo levou mais lágrimas aos olhos de Gina, lamentando tudo que eles – todos – haviam perdido. Harry continuou. "Tenho muito orgulho de ter um filho seu, Gina. E te agradeço por ter feito tantos sacrifícios por ele." Os olhos verdes brilharam com o carinho mal contido e Gina abaixou a cabeça nas mãos, contendo as lágrimas e sendo invadida por uma sensação inevitável de dever cumprido. Uma que ela nunca tinha sentido antes.

Pela primeira vez, alguém tinha dito que ela tinha tomado decisões acertadas.

***

Com um feitiço simples, Draco adentrou a loja fora do expediente com Aries no colo e se dirigiu para a sala onde Ginevra fazia as poções, com esperança de encontrar a desmiolada trabalhando lá até aquela hora. Não seria uma novidade, de forma alguma.

Levara mais tempo para chegar até o Beco Diagonal do que ele teria desejado - uma vez que não podia aparatar com um bebê - e, mesmo com esse tempo adicional de locomoção através da Rede de Flu, Ginevra ainda não havia chegado em casa. Pedira para que Edril o avisasse assim que ela aparecesse na Mansão, mas o silêncio do elfo indicava que ela ainda estava na sua loja.

Ou pelo menos deveria estar, ele pensou sentindo uma onda de desconforto.

Passou pela sala cheia de prateleiras onde as poções ficavam expostas aos clientes e, quando entrou na sala que ela fabricava as poções, franziu o semblante intrigado. Tudo tinha um aspecto desorganizado, como se ela tivesse parado de fazer algo no meio do caminho; não que Draco achasse que organização fosse o forte de Ginevra, não mesmo, mas, quando se tratava de poções, ela tinha um rigor e disciplina que fariam sua mãe parecer o idiota do Hagrid.

Passando o bebê para um braço só, ele pegou um pequeno caldeirão que tinha rolado pelo chão e o colocou sobre o balcão para examiná-lo. Não havia nada dentro dele.

Aquilo não combinava nada com Ginevra. Estava acontecendo algo ali, Draco podia quase farejar no ar.

Pensou em chamar os aurores, mas mudou de idéia quando se lembrou das brilhantes conexões de Ginevra. Ele bufou irritado e Aries chamou sua atenção, colocando as mãozinhas pálidas no rosto de Draco.

"Não podemos seguir juntos agora, Aries. Não vou conseguir procurar e manter sua mãe segura se tiver que me preocupar com você também. Aqui eu sei que você estará protegido." Draco murmurou sacando a varinha e conjurando um cercadinho para o menino. "Você fica aqui, enquanto eu subo no escritório da sua mãe e me certifico que ela não morreu entre a preparação de um ingrediente e outro."

Quando o bebê principiou um choro cheio de indignação por ser deixado para trás, Draco se obrigou a silenciá-lo com um feitiço. O olhar magoado do menino enquanto seu rosto se contorcia num choro silencioso foi o mais próximo de repreensão que um bebê de cinco meses podia mostrar e Draco sentiu seu coração se apertar.

"Pode acreditar que eu não gosto de fazer isso mais do que você gosta de ficar aí." Ele disse levantando uma sobrancelha para o filho.

Se virou para sair, olhou para o filho por cima do ombro, voltou para se certificar que ele estava seguro deitado entre almofadas e então, finalmente, se dirigiu para o escritório de Ginevra.

***

Gina tentou fornecer a maior quantidade de detalhes sobre James que pôde, sobre gostos, aptidões, desejos, comportamentos. Como foi o nascimento, quando ele tinha começado a andar e falar, como ele sentia falta da figura de um pai. Sabiamente, ela não acrescentou que, de uma maneira estranhíssima aos seus olhos, James vinha tentando encaixar Draco nesse molde de pai.

Isso era uma coisa que ela e Harry poderiam discutir depois.

De qualquer forma, Harry parecia bastante satisfeito com tudo que ouvira de Gina e sorria abertamente pela primeira vez. Ela retribuiu o sorriso.

"Quando poderei conhecê-lo?" Harry foi direto ao ponto.

"Eu-eu não sei, Harry. Creio que antes eu preciso prepará-lo para a ideia," preparar Draco para a ideia também, ela acrescentou mentalmente. "Você veio para ficar…?" Ela perguntou hesitante.

Talvez... Talvez ele quisesse recomeçar em outro lugar, longe de tudo aquilo, ela disse para si mesma, pensando subitamente no quão triste seria se Harry escolhesse partir, mais uma vez.

"Não sei por que todos acham que eu desejaria, por um instante sequer, me esconder ou fugir." O semblante dele ficou subitamente sombrio. "Deixei um trabalho para terminar. E dos grandes."

Eles ficaram um instante em silêncio diante da sombra de Voldemort que pairava sobre eles.

Aquela era a luta dele, a causa na qual ele se sentia ligado pela vida. Gina sorriu para ele de forma cansada. Quando ele aprenderia que não podia salvar o mundo sozinho, da maneira que ele sempre tinha desejado fazer?

Nunca, provavelmente, ela respondeu à sua própria pergunta.

Mas ele tinha feito aquilo por tanto tempo que não sabia mais como fazer de outra forma. Todos eles, Dumbledore principalmente, haviam colocado um fardo muito grande nas costas de Harry.

"Não quero que James te conheça antes disso tudo acabar… E se ele te conhecer e algo acontecer com você? Ele não suportaria… Eu não suportaria e-" Gina gaguejou.

Harry segurou na mão dela e a apertou levemente, transmitindo segurança. Os olhares deles se cruzaram e uma onda de carinho invadiu Gina.

"Eu daria tudo que tenho na vida para que eu pudesse tocar, falar, sentir meus pais por um minuto. Isso valeria qualquer coisa. Acho que a dor de nunca ter conhecido algo que se ama é bem maior do que perder algo que amamos." Harry fechou os olhos brevemente, antes de continuar. "Eu já sofri demais com as duas coisas, Gin, confie no meu julgamento."

"Eu confio."

Eles ficaram em silêncio mais um instante, até que Harry pigarreou, começando a falar de forma hesitante. "Eu soube do seu... casamento. Agora você -"

"Harry, agora não, por favor..." Gina murmurou interrompendo-o. A última coisa que ela queria naquele momento era discutir seu casamento – seus sentimentos – com Harry.

"Como quiser, Gin." Os olhos dos dois estavam cheios de lágrimas mal contidas e Harry prosseguiu naquele tom tão gentil que fez com que Gina tivesse desejado, só por um momento, que eles voltassem no tempo, de volta a época que estavam juntos. "Mas saiba que não precisa mais expor vocês dois a situações perigosas ou extremamente desagradáveis. Chega de sacrifícios." Ele sorriu, abraçando-a.

"Chega de sacrifícios." Ela ecoou as palavras dele depois de alguns segundos, se deixando abraçar. Pensou na distância da família, no estado de medo em que vivia, na distância. Tudo tinha acabado; ela estava livre do fardo.

***

"Não precisa mais expor vocês dois a situações perigosas ou extremamente desagradáveis. Chega de sacrifícios."

Depois de subir as escadas que davam acesso ao escritório de Ginevra, Draco estacou. Havia vozes lá dentro. Vozes que, mesmo que não quisesse admitir, ele conseguia reconhecer.

Ele se aproximou mais da porta, não acreditando nos seus ouvidos. Levou alguns segundos até que sua mente voltasse para o passado e puxasse os resquícios daquela voz de gralha que ele havia odiado com todas as suas forças, durante todos esses anos.

Não, não podia ser, ele pensava freneticamente, dividido entre a incredulidade e o horror. Contra todos os conselhos do bom senso, ele tentou abrir a porta devagar, para confirmar com os olhos o que os ouvidos traiçoeiros estavam dizendo. Estava trancada. Draco rolou os olhos. Só mesmo amantes de trouxas se lembravam de trancar a porta, mas se esqueciam de colocar um feitiço contra orelhas indesejadas.

"Alohomora." Ele disse baixinho e a porta se abriu com um levíssimo clic.

Draco tinha certeza que sua posição seria delatada pelo barulho, mas, quando alguns instantes se passaram sem nada acontecer, ele empurrou a porta somente o bastante para espiar o que estava acontecendo lá dentro. Então, entendeu por que ninguém estava prestando atenção suficiente na porta.

Para seu total assombro, a primeira coisa que ele viu foi o Cicatriz renascido do mundo dos mortos. Certamente estava mais velho – como o próprio Draco estava -, mas com a mesma cara de lombriga desnutrida que sempre tivera. Para o eterno desgosto de Draco, ele parecia bem vivo. Mais vivo do que deveria ter estado alguma vez na vida.

Mas rapidamente a atenção dele foi desviada, porque a segunda coisa que reparou foi a cabeça ruiva de Ginevra apoiada no ombro do maldito Potter. Nesse momento, não havia espaços para dúvidas sobre como o infeliz estava vivo, sobre como ele havia chegado até ali, sobre como Draco lidaria com aquela situação, se Ginevra tinha sabido daquilo o tempo todo.

Só havia espaço para a vontade insana de sacar a varinha e azará-lo até que não sobrasse nada dele além daqueles óculos feios e ultrapassados.

E então ele ouviu a voz de Ginevra, clara como a luz do dia apesar de estar abafada pela camisa do Potter.

"Chega de sacrifícios."

Ele não podia se mover. Quase não podia respirar.

Chega de sacrifícios.

Claro, ela tinha se sacrificado ao se afastar da família, ao assumir uma identidade que não era a dela, ao viver uma mentira. Mas, acima de tudo, ela tinha se sacrificado ao casar com ele, conviver com ele, dormir com ele.

Draco teve que usar todo o seu autocontrole para não ofegar dolorosamente. Apertou a varinha nas mãos e sentiu sua mandíbula ficar tensa.

As palavras dela - e seus verdadeiros significados - ecoaram em seus ouvidos e se transferiram para todas as extremidades do seu corpo num fluxo de mal-estar, espalhando ondas geladas por onde passavam.

Ondas geladas de ódio, por ver o Cicatriz vivo e abraçando Ginevra.

Ondas geladas de desespero, por estar perdendo o controle da sua vida.

Ondas geladas de horror, por medo de perdê-la.

A mente de Draco girava em um trilhão de direções, seus pensamentos borrados e desfocados como se estivesse no meio de uma tempestade; parecia que estava fora do seu próprio corpo, uma fúria cega ameaçando consumi-lo, preparando-se para entrar na mente dele e arrasar o que estivesse ao seu alcance. Dor era tudo que mantinha aquela raiva longe de assumir o controle total sobre ele, uma dor que não era inteiramente nova para Draco, como aquela que ele havia sentido quando o desgraçado do Longbottom havia matado seu pai...

Uma dor que falava de se perder alguém que se ama e de aprender a lidar com as ausências, que falava de fechar seus sentimentos a sete chaves para não ser ferido de novo. Que falava de frio e de recomeço e que deixava uma sensação amarga na boca. Uma sensação de traição, de coração partido, de fatalidade.

Draco se recompôs em sua fúria fria, ainda desorientado, sem saber o que fazer ou para onde ir.

Então, Draco Malfoy fez o que fazia de melhor: isolou o problema em algum canto obscuro da sua mente e se preparou para ficar o mais distante que pudesse daquela cena.

Virou-se em direção as escadas. Pegaria Aries e iria embora.

Para longe das coisas que o machucavam.

***

Gina não tinha paz. Sua mente não parava de girar em torno da volta de Harry, desde que Hermione e Rony o levaram da sua loja, há exatos dois dias. Eles sequer tiveram tempo para conversar realmente, para esclarecer tudo, para se acertarem.

Ela balançou a cabeça, diante do pensamento. Não era mais uma adolescente que via o mundo de forma idealizada, com a convicção de que, no final, tudo acabaria bem. Tinha envelhecido, amadurecido, tivera dois filhos, perdera um irmão e outras pessoas queridas. Se afastara daquilo que amava, havia mentido e enganado.

Merlin, até mesmo se envolvera com Draco Malfoy. Gina suspirou, sabendo que 'se envolver' não era uma boa definição para aquilo.

No começo, ficara bem confusa, com a imagem de olhos verdes e cinzas se revezando nas suas memórias; achou que iria enlouquecer se tentasse desvendar esse nó, mas a verdade é que ela estava se sentindo culpada. Se sentia como se estivesse traindo Draco, por ter dúvidas em relação a volta de Harry. Se sentia como se estivesse traindo Harry, por ter deixado que seu sentimento por Draco aflorasse e criasse raízes tão fortes dentro dela.

Tentou dizer a si mesma que o acordo entre ela e Draco mudaria de natureza, que ela poderia voltar para os seus. Mas não se enganou por muito tempo; não havia mais acordo entre ela e Draco há meses. Só havia, bem, os dois. E um embrião de felicidade que ela não estava disposta a abrir mão.

Tentou suprimir os sentimentos que a volta de Harry lhe causava e se focar em Draco, mas eram tantas coisas, tantas sensações, que Gina achou que ia sufocar. Dizer que Harry não significava nada para ela era a maior mentira que poderia contar a si mesma. Dizer que deixaria Draco para voltar a ser a antiga Gina Weasley não era menos mentiroso.

Então, a solução para o problema veio através de como ela encarava a existência desses sentimentos por Harry. Não era avassalador, não causava arrepios por todo o seu corpo e nem lhe fazia ficar num estado de torpor. Era como… era como o que ela sentia por Jorge, Gui, Percy e até mesmo Rony. Ela fez uma careta de mágoa ao se lembrar do irmão, mas seguiu o raciocínio. O que ela sentia por Harry era um sentimento forte, inigualável, consistente. Era o mesmo amor que ela sentia por seus irmãos, por sua família.

Desde que pudera pensar com clareza na volta de Harry, algum lugar do seu subconsciente já havia chegado àquela conclusão de que a Gina Weasley de dezessete anos já não existia mais. Só tinha demorado a admitir isso, com medo de se desligar de mais uma parte do seu passado.

Era uma mulher diferente. E uma mulher que amava outro homem.

O difícil seria fazer Draco – e possivelmente Harry, ela temia – entender tudo isso.

Sem contar que deveria passar pela parte mais tumultuada, que era contar para Draco que Harry voltara. Decidiu que ela não poderia esconder isso dele. Já era hora de acabar com os segredos entre eles… Se ela queria ir adiante com aquela relação maluca, tinha que se esforçar ao máximo a ser totalmente honesta com ele.

Mas, para isso, precisaria conseguir conversar com Draco.

Ela bufou irritada.

Como se tivesse algum sexto sentido mórbido, desde que Harry aparecera na loja, Draco voltara a ser a mesma pessoa sombria, calada e irritante de antes, quando eles ainda... bem, quando eles não estavam tão íntimos. E Gina descobriu que detestava um Draco Malfoy que se fechava para ela.

Como se fosse um furacão de cabelos flamejantes, Gina entrou na grande sala de jantar onde Draco tomava seu café da manhã. Há dois dias, quando estava em casa, ele começara a fazer suas refeições em horários em que ele sabia que ela não estaria na Mansão. Então ela simplesmente abortou sua ida para a loja e resolveu encarar o dragão. Literalmente.

Entrou a passos largos na sala, sem se incomodar em se anunciar ou cumprimentá-lo. Apenas cruzou os braços e o encarou na sua melhor expressão Molly Weasley.

"Vejo que, de onde você vem, a falta de dinheiro é sinônimo de falta de educação." Ele arrastou as palavras cruelmente, sem ter a dignidade de tirar os olhos da edição d'O Profeta que estava lendo.

Ótimo, ela pensou sarcasticamente, ele estava provocando-a.

De um jeito estranho.

De um jeito antigo.

Obviamente, Draco e ela nunca deixariam de fazer comentários venenosos um sobre o outro, mas tinham chegado num nível de animosidade amistosa que mais divertia do que exasperava. No entanto, o tom daquele comentário tinha sido… diferente. Como ele fazia na escola ou quando estava com raiva dela. Ela respirou fundo para conter seu gênio.

"Preciso falar com você." Ela disse simplesmente, resistindo a vontade súbita de enrolar o jornal e bater na cabeça dele até que ele dissesse o que estava acontecendo.

"Eu não tenho ideia do que você poderia ter para me falar, Weasley." Ele não desviou sua atenção do jornal, fazendo seu melhor para ignorá-la. "Se é que você tem mesmo algo para me falar."

Com um gesto rápido da varinha que estava em sua mão, Gina lançou o jornal na parede, que se desmanchou entre imagens que se mexiam e letras embaralhadas. Draco se limitou a estreitar os olhos perigosamente para ela.

"Se você tem algo para me dizer, diga logo, Malfoy!" Gina sibilou. "Eu não tenho a menor paciência para esses joguinhos sonserinos de palavras."

"É, creio que eu tenha algo para te dizer." Draco respondeu com a voz gelada e cortante. "Eu não tenho tolerância com a falta de classe que é tão comum entre os selvagens com quem você está acostumada a conviver." Ele disse e acenou elegantemente para o jornal esparramado no chão.

Gina o olhou perplexa.

"Draco, por que você está agindo como um idiota?" Ela levantou um pouco mais a voz. "Além das razões tradicionais, é claro. Nós estávamos nos dando tão bem e-" Ela fez menção de erguer a mão para tocá-lo e ele se levantou da cadeira, como se tivesse levado um choque.

"Realmente não tenho tempo para esse tipo de conversa. " Ele se apressou em ajeitar sua capa e se preparar para sair, esquecendo totalmente o incidente jornal. "Já estou atrasado para chegar ao Ministério."

Gina bloqueou o caminho dele.

Mesmo que ele fosse bem mais alto, ela se impôs e colocou as duas mãos no peito dele, como esse estivesse pedindo por mais contato físico. Draco congelou e ela aproveitou a hesitação para apoiar a cabeça no seu peito, sentindo que seus cabelos roçavam no queixo de Draco. Estar perto dele era tão... certo, que ela se deixou levar pela situação, mesmo que ele se recusasse terminantemente a envolvê-la nos seus braços. A sensação de bem-estar com a presença dele era tão forte que Gina duvidava que ele fosse indiferente a todas aquelas sensações. Ela sentiu o pomo de adão subir e descer quando ele engoliu em seco, travando uma batalha interna para não retribuir o gesto dela, seja lá por qual razão.

"Podemos almoçar juntos?" Ela disse, levantando a cabeça e aproximando perigosamente seus lábios do pescoço pálido. "Eu te espero..."

Draco engoliu em seco e Gina sentiu como ele tinha ficado inquieto. "Terei um almoço de negócios, no Beco Diagonal."

Ela viu que ele tinha se esforçado em soar tão frio como sempre, mas sua voz enfraqueceu por um décimo de segundo e Gina se perguntou desesperadamente por que ele estava resistindo daquela forma. Antes que ela pudesse insistir, ele a segurou não muito delicadamente pelos braços e a afastou.

"Eu tenho que ir, Ginevra."

E saiu a passos largos, deixando para trás uma Gina machucada, raivosa e, principalmente, intrigada.

***

A pequena comitiva que ela reuniu seguia alegremente pelo Beco Diagonal, alheia as indagações que a própria Gina carregava; levava um atento Aries num braço, enquanto segurava um sorridente James com a outra mão, seguido de perto por Della, sua fiel companheira.

Planejava almoçar com eles e depois deixá-los na loja com Della para que ela pudesse ir para o Ministério e finalmente falar com a teimosia personificada, que atendia pelo nome de Draco Malfoy.

Estavam quase chegando na entrada da sua loja, onde Dave estava esperando-os e acenando alegremente, quando alguém muito sólido e grande atravessou seu caminho. Alguém que Gina não gostaria de ter que encontrar nos próximos trezentos anos.

Goyle.

A raiva borbulhou dentro dela. Foi invadida por lembranças de Goyle derrubando-a na Batalha na Floresta Proibida, cravando o nariz no seu pescoço e, principalmente, de Goyle assaltando sua loja, torturando-a. Ele não sabia que ela havia reconhecido-o naquele dia e aquilo a deixou com mais raiva ainda.

Gina estreitou os olhos. "Não sei se você percebeu, senhor, mas está bloqueando o meu caminho."

Ele a olhou com sua típica expressão bovina.

"Olá, Sra. Malfoy." Ele disse, baixinho. Gina tentou desviar dele, mas a rua movimentada e as duas crianças a tira colo a impediam de fazer o movimento sem causar estardalhaço. Goyle, antecipando a falta de movimento dela como um convite para que ele continuasse, seguiu dizendo. "Esse é o filho de Draco, então?" Ele apontou um dedo muito gordo para Aries, que, por sua vez, choramingou incomodado e escondeu o rosto no ombro de Gina, como se pudesse sentir o desconforto dela em relação ao homem.

Gina rolou os olhos, mas não teve tempo de responder qualquer coisa porque James se adiantou, se colocando na frente dela e de Aries, como se estivesse protegendo-os. Della seguiu ao lado dele, com passinhos rápidos.

"Senhor, pode sair da nossa frente, por favor?" Ele disse, estreitando os olhos verdes e erguendo muito a cabeça para olhar diretamente para Goyle. "Está assustando meu irmão."

O pedido foi feito num tom educado, mas que não deixava de transparecer uma centelha resoluta de coragem, quase... ameaçadora.

Goyle pareceu levemente incomodado. "E você deve ser o enteado. Não te ensinaram que-"

James deu um passo a frente e acertou um chute na canela de Goyle, que deu um avantajado passo para trás, mais devido ao susto do que qualquer dor que ele pudesse ter sentido. Gina aproveitou a hesitação e passou altiva por ele, não evitando dar um sorriso agradecido para James.

Eles seguiram em direção à loja e, subitamente, a presença de Goyle tinha feito Gina se sentir um pouco menos disposta para encarar Draco.

Queria ficar o máximo de tempo que pudesse com seus filhos, como se o tempo com eles estivesse de alguma forma... contado.

Ela balançou a cabeça para espantar a sensação terrível.

***

Goyle viu Gina passar por ele e infrutiferamente tentou pensar em algo mordaz que pudesse machucá-la; aquele fedelho idiota do filho dela ajudara a complicar a situação quando resolveu abrir a maldita boca.

Ele se sentia estranhamente atraído por aquela mulher, por razões que ele não conseguia identificar. Entretanto, como não compreender alguns de seus sentimentos não era de todo incomum, ele simplesmente encarava aquilo com naturalidade, sem questionamentos.

A sensação havia piorado depois que invadira a loja dela; a puta ruiva tinha dado trabalho até ser submetida e tivera a ousadia de cuspir nele. Ele não poderia esquecer de como se sentiu quando a saliva quente da vadia escorreu pelo seu rosto. Mas, cedo ou tarde, ela pagaria. De um jeito que Goyle se excitava só de pensar.

E, depois, quando ela se casara com o Malfoy, não pôde deixar de achar aquilo engraçado. Draco certamente era a pessoa que Goyle mais desprezava e havia conseguido a viuvinha… Aquilo poderia ajudá-lo a matar dois hipogrifos com um só feitiço… Poderia se vingar de Draco e ainda fazer aquela suja zé-ninguém pagar pela sua ofensa.

Mas, como Astoria Greengrass tinha dito a ele uma vez, não havia nada que pudesse fazer contra ela ou contra Malfoy, por enquanto.

As palavras de Astoria bailavam em sua mente, como já haviam feito dezenas de vezes. Se houvesse pelo menos alguma coisa que soubesse contra ela, mas não tenho sequer um cheiro.

Sacudiu a cabeça, confuso.

Ele realmente gostaria de ter terminado o que começou com ela, naquele dia na loja. Iria submetê-la de um jeito primitivo, que humilharia Draco de uma maneira irreparável.

Sentiu seu corpo reagir ao se lembrar de como havia se colado junto a dela, da respiração ofegante que sentia na sua bochecha, do maravilhoso cheiro dela.

Mas não tenho sequer um cheiro...

Aquele perfume o fascinava, um mesmo perfume que havia o fascinado na escola. Um cheiro familiar, que era uma mistura de aroma do campo, de vitalidade, de força… Pensou um bom tempo, até fazer a associação que sua mente clamava por fazer, desde o incidente na loja. De onde ele reconhecia aquele cheiro.

Fechando os olhos, ele se lembrou de como ela passava atraindo os olhares no corredor, com seu cachecol vermelho e dourado esvoaçando e se entrelaçando nos cabelos ruivos enquanto ela sorria.

O cheiro da garota Weasley

Mas não tenho sequer um cheiro...

Ele parou abruptamente. Sua mente fazia as conexões com uma velocidade que o assustava e o inebriava, ao mesmo tempo.

O cheiro da garota Weasley, de cabelos vermelhos e mau gênio, era o mesmo da viúva do Malfoy, de cabelos vermelhos e mau gênio.

"Eu sempre quis sentir seu cheiro.."

E, de repente, Goyle se sentiu atingido por um raio, enquanto a suspeita, a esperança, a quase certeza, o invadiam como se fossem uma enchente de informações. Pela primeira vez na vida, ele conseguia ligar os pontos com uma impressionante compreensão do todo.

A garota Weasley fora dada como morta, mas havia conseguido sobreviver e se infiltrar com uma nova identidade e ajudar a Resistência. Ele quase deu um tapa na testa, se lembrando das amostras de poção fortificada que havia levado naquela noite que havia roubado a loja dela. Ela estava fornecendo para a Resistência, a vadia!

Havia convencido Malfoy a se casar com ela, sabe-se lá como, ficando protegida contra novos ataques, protegendo ela e o filho-

O filho... Goyle ruminou sobre quem era o pai da criança...

Pensou que ia desmaiar de felicidade quando chegou na conclusão mais lógica possível.

Aquilo era muito melhor do que havia imaginado.

Parecia que a viúva de Draco não era viúva, de forma alguma. Mas tinha algo precioso.

A imagem dela, com os filhos e com o elfo passando por ele invadiu sua mente.

Não se contendo de alegria, ele saiu do Beco Diagonal.

Precisaria de provas antes de qualquer coisa. Malfoy era muito poderoso para ser acusado de forma leviana.

Iria direto para o Ministério, mais especificamente para o Departamento de Regulamentação e Controle das Criaturas Mágicas.

Investigaria o registro de todos os elfos domésticos na Grã-Bretanha.


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