Qual é a cor do amor? escrita por hollandttinson


Capítulo 21
Férias.




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As aulas voltaram na manhã seguinte, e eu não pude me conter ao sentir raiva do mundo. Como ele podia continuar se mantendo, girando, mesmo quando um assassino estava atrás dos meus sobreviventes favoritos? Como os humanos ousam continuar vivendo, quando os meus sobreviventes estão prestes á morrer? Então eu me lembro que o mundo não para só porque as coisas dão errado, e apesar de eu não ser humana, eu tenho de aceitar isso como se fosse, pois eu estou no mundo deles.

Quis fazer como da última vez, e por birra, destruir uma cidade com nome céu, e deixar apenas Liesel e Rudy vivos. Mas qual a probabilidade de eu conseguir mantê-los vivos mais uma vez? E como eles lidariam com a perda dos familiares? Rudy já tinha perdido tanto! Não, eu não podia ser tão cruel com ele, eu teria de deixar a vida seguir seu rumo, sem me intrometer, eu fui enviada para fazer meu trabalho, e eu vou fazê-lo. Mesmo que o meu coração se despedace com isso. Onde estão as minhas férias mesmo?

Vi mais um dia nascer, a neve era fina, mal dava para perceber, mas o céu estava nublado, coisa que era natural na Alemanha, raros eram os dias de sol, e eu entendia perfeitamente o que era isso. Meu trabalho era da mesma forma.

Liesel e Rudy acordaram, tomaram banho e desceram para ajudar Rosa, como faziam todos os dias de escola. Logo todo o resto da casa foi acordando lentamente, finalizando por Hans Júnior, que foi o último, deixando todos estressados por terem de esperar para tomar o café da manhã.

– Seria muito bom se da próxima vez você tentasse acordar antes de anoitecer, nem todos aqui podem ficar o dia todo em casa, todos temos compromissos.- Liesel resmungou, irritada. Hans Júnior a olhou com aquele olhar assassino, daquele jeito de quem só está esperando o momento certo para consumar sua vontade: matá-la.

– Vou anotar no meu caderninho de coisas irrelevantes que uma adolescentezinha reclamona diz só para ser mais irritante.- Ele respondeu, mais uma vez como se fosse cuspir as palavras. Liesel bufou, Rosa lançou uma colher na mão de Liesel, repreendendo-a. A garota segurou um grito de dor, massageando a marca vermelha, que em breve mudaria de cor.

– Deixe de ser irritante, saumensch! Se está com tanta pressa para ir para a escola, ficar se agarrando com o saukerl que você chama de namorado, deveria comer rápido e lavrar daqui!- Rosa falou as palavras com força, grosseria. Ela parecia aquela mulher do primeiro dia de Liesel aqui, e a garota fechou a cara, comendo a porcaria de torrada queimada, o nome que ela deu para a comida daquele dia.

Quando terminaram de comer, Liesel e Rudy literalmente correram para a escola. Mais para ficarem longe do ambiente do que para chegarem cedo na escola. Quando estavam perto do rio Amper, Rudy a segurou pelos cotovelos, a girou e a beijou. Foi de repente, ela não esperava por isso, e quase o afastou por instinto, mas logo se entregou ao beijo.

– Bom dia, amor.- Ele disse, sorrindo para ela, que balançou a cabeça.- Apesar de não ter sido o melhor dia do mundo.- Rudy prosseguiu, fazendo uma careta, segurando-a pela mão e caminhando na direção da escola com paciência. Ela suspirou.

– Não quero nem ver como vai ser aquela casa quando formos só nós.- Liesel disse, passando a mão nos seus cabelos loiros e longos, que viviam soltos. Rudy deu de ombros.

– Acho que ajuda se você não ficar resmungando o tempo todo. Sério, todo mundo estava incomodado com a demora dele, mas você tinha que comentar não é? Frau Hubermann não teria a mesma reação exagerada se fosse outro quem comentasse, nem Hans Júnior.- Rudy disse. Liesel concordou com a cabeça.

– No entanto eu duvido que alguém fosse se prontificar para comentar alguma coisa. Todos daquela casa parecem ter medo de falar alguma coisa e ele tirar uma espingarda do casaco e atirar no meio da sua testa. Santo Deus, seu passado de assassino nazista nojento já passou! Ele é apenas alguém extremamente irritante agora.- Liesel deu de ombros. Rudy suspirou.

– Será mesmo? Não sei você, mas todas as vezes em que ele fala com você, ou com Max, eu tenho a sensação de que ele adoraria ter uma espingarda á postos.- Rudy tremeu. Liesel deu de ombros.

– Mas ele não tem.- Ela disse, absolutamente enganada. Não pela parte da espingarda, ele não tinha mesmo uma no casaco, mas escondida em algum lugar. Mas estava enganada sobre seu passado assassino nazista ter passado, na verdade, estava mais presente do que qualquer coisa.

Na escola, Evan Lawrence se aproximou do casal, assustado, ofegante. Rudy, por instinto, segurou a mão de Liesel com mais força, fazendo-a fazer uma careta de dor. Evan respirou fundo, com a mão no peito, ainda ofegante por ter andado rápido. Ele parecia não dormir á séculos, seu cabelo não estava alinhado como sempre, sua roupa estava amarrotada, e ele estava com cheiro de quem não toma banho á dias.

– Eu preciso falar com vocês.- Ele disse lentamente, analisando o local ao redor, procurando pessoas olhando. Rudy riu.

– É mesmo?- Ele cruzou os braços, largando a mão de Liesel, que massageou seus dedinhos com carinho. Evan revirou os olhos.

– Se vocês não vierem falar comigo agora, é provável que não sobrevivam até amanhã. Steiner, olhe bem nos meus olhos, você sabe que eu estou falando sério.- Disse Evan, erguendo uma sobrancelha para ele. Rudy tremeu, engolindo em seco, ele conseguiu ver toda a sinceridade no olhar dele. Rudy olhou para a namorada.

– A gente tem tempo para uma conversa rápida, não é?- Perguntou, nervoso. Liesel o olhou confusa, mas não se recusou á ir junto, no fundo ela sabia que tinha alguma coisa errada acontecendo. Evan nunca falava diretamente com Rudy, e ele nunca dava moral ao rapaz.

Os três andaram juntos para dentro da escola, acompanhando a multidão. Evan os guiou para dentro da biblioteca, que era pequena e pouco povoada, já que a maior parte das pessoas não estavam interessadas em ler Shakespeare. Os três se esconderam atrás de uma estante, Rudy abraçou Liesel com um braço, vendo-a cruzar os braços, impaciente.

– E então?- Rudy o incentivou. Evan mordeu o lábio inferior, ele estava lutando contra a sua própria consciência.

Sabia o quanto era perigoso deixar que todos soubessem sobre o seu passado, mas estava cansado de fugir. Não estava abandonando a vida de crime, como eu esperava, apenas estava voltando á sua rotina regulada. Ele nunca devia ter começado á ser assassino de aluguel, ele sempre matou por motivos especiais, apesar de no fundo saber que não havia motivo para ter matado tantas garotas. Mas elas não deixaram falta á ninguém, Liesel e Rudy deixariam um espaço vazio no mundo, não era justo.

Eu estava tão feliz enquanto via que ele estava decidindo fazer a coisa certa, mas, ao mesmo tempo, um pouco triste pois sabia que eles não descobririam de Hans Júnior. Evan não sabia de Hans Júnior, talvez Liesel e Rudy não acreditassem sem ter algo comprovado. Evan apenas sabia que o assassino devia estar por perto, e sabia os motivos pelo qual ele queria matá-los: vingança.

Evan respirou fundo mais uma vez, percebeu que os dois já estavam impacientes demais, e então contou. Falou sobre sua mãe, apesar de ser muito difícil para ele, e depois contou do que ele fez depois. Contou como começou á fazer o que faz hoje, contou sobre o dia que viu o jornal jogado no chão, e pensou que Rudy era sortudo por ter sobrevivido ao ataque á rua Himmel, e no quanto percebeu que na verdade teria sido melhor se ele simplesmente não tivesse sobrevivido, pois agora tudo acabaria de qualquer forma.

Contou como foi “convocado” para essa missão, que no começo ele achou fácil, mas quando percebeu que seria quase impossível conseguir matar duas pessoas inocentes, coisa que ele nunca tinha feito, quis fugir de imediato. Em momento algum ele citou Marieta, apenas disse que tinha ajuda e sempre um incentivo para que continuasse, mas que hoje a pessoa estava com o pé tão atrás quanto ele, exceto pelo fato de que ela tinha tanto á perder, que talvez achasse que a vida de Liesel e Rudy não fosse mais importante do que sua perda. Falou sobre o seu chefe, disse que não o conhecia, recebia as ordens por cartas endereçadas á sua incentivadora, e não fazia a menor ideia de onde eram. Só sabia que era perigoso o suficiente para matá-los sem levantar suspeita alguma.

Quando acabou, Liesel estava com os olhos desfocados, pensando sobre as possibilidades de isso ser real, mas ela já tinha visto tantas crueldades que não duvidava de nada. Já Rudy se perguntava que motivos teria alguém para matá-los, pois ele sabia que Evan estava sendo sincero. Ele não contaria tudo aquilo se não os quisesse convencer, e nem ao menos tinham motivos para apenas deixá-los assustados por nada.

– Está me dizendo que eu posso morrer á qualquer momento?- Liesel perguntou, com a voz baixinha. Seus braços estavam pendendo, quase mortos, ao lado do corpo. Sua cabeça estava inclinada para o lado, ela parecia estar em outro planeta. Rudy a olhou assustado quando percebeu o seu tom de voz.

– Ele pode estar por perto, ele pode estar em qualquer lugar. Eu fugi antes do reveillón, eu não tive notícias sobre mais nada!- Evan disse desesperado, levando as mãos á cabeça. Rudy olhou para ele, quase sentindo pena dele por seu próprio desespero, só não sentiu tanta pena pois sabia que a pena maior devia sentir de si mesmo, que podia morrer.

– Você não acha meio doentio vir falar sobre essas coisas assustadoras conosco á essa hora da manhã?- Rudy perguntou, e foi a coisa mais idiota que eu já o ouvi falar, e eu já o ouvi falar muitas coisas idiotas! Evan grunhiu.

– Esperava que eu deixasse vocês morrerem com essa culpa na minha consciência? Eu já fiz o que eu vim fazer, vocês acreditam no que quiserem, não é a minha cabeça que está em risco!- Evan disse, ainda desesperado, se mexendo nervoso. Liesel focou seus olhos no rapaz á sua frente.

– Obrigada pelo aviso, mas eu acho que você está apenas exagerando. Porquê alguém quereria nos matar? Se vingar do quê? Não fizemos mal á ninguém, e qualquer pessoa que nós pudéssemos ter conhecido, e que pudesse querer se vingar, morreu com aquela bomba.- Liesel disse, engolindo em seco. Todos perceberam, inclusive eu, que ela estava querendo se convencer do que dizia.

– Bom, eu não sei. Nunca parei para pensar nisso, eu só sei que isso é real, Liesel. Eu recebi ordens de matar vocês, de atrair você. O plano nunca foi matar você – ele apontou para Rudy -, apenas ela. Mas quando vocês se tornaram tão grudados... O preço até aumentou!- Evan riu com frieza, fazendo Rudy tremer.

– E o que você quer que façamos? Cheguemos em casa e digamos aos nossos pais que vamos morrer porque um garoto que, pra começo de conversa, nem gosta da gente, veio falar isso? Que a gente fuja do país?- Perguntou Rudy, começando á ficar assustado. Evan suspirou, enfiando as mãos nos bolsos.

– Sinceramente, por mim vocês fazem o que quiserem, o que eu queria fazer, eu já fiz. Agora, tenham um bom dia.- Disse Evan, saindo, sentindo seu peito livre de qualquer culpa ou amargura. Liesel riu com escárnio, quase jogando um livro na cabeça dele.

– Mas que idiota! Ainda nos deseja bom dia depois de dizer que vamos morrer!- Liesel disse, nervosa, jogando as mãos para o alto. Depois de se recuperar, olhou para Rudy com as mãos na cintura. Rudy estava olhando para o chão, como se uma rachadura qualquer fosse mais importante do que qualquer coisa.- Você não acreditou nele, acreditou?

– Eu duvido que Evan fosse perder o seu dia, apenas para nos assustar, é só isso o que eu acho.- Disse Rudy. Liesel suspirou.

– Então você acredita que nós vamos morrer.- Liesel disse, fechando os olhos com força, tentando assimilar tudo.

Eu fiquei me perguntando que tipo de pessoa fica normal depois de saber que vai morrer, as pessoas comuns entram em desespero, choram, e dizem que a vida é ingrata. Mas Rudy e Liesel ficavam apenas respirando fundo, fechando os olhos com força ou olhando para as rachaduras no chão, pensando no que fariam. Nenhum dos dois pareciam ter forças para se mexer, até que Rudy olhou para cima.

– Vamos para o rio Amper.- Ele sugeriu, erguendo a mão para que ela a segurasse. Sua mão tremia, e a coisa que ele mais queria agora era sentir seu toque. Rudy estava morrendo de medo, mas ele precisava ser forte para que Liesel conseguisse passar por esse momento pós “descobri que vou morrer” sem ter uma crise de pânico, apesar de que, conhecendo ela, sei que não virá.

Liesel segurou a mão do namorado, mas não levantou os olhos. Caminharam para fora da escola, a moto de Evan não estava mais ali, ele devia ter ido embora, sabe-se Deus para onde, fugindo de Hans Júnior, ou indo atrás de um pouquinho de diversão assassina. Acho que ele já estava com saudade das suas garotas de programa.

Eles foram para o rio Amper, sentaram-se na ponte, com as pernas pendendo para fora, olhando a água fria correr, a água que á pouco fora congelada pela neve, e agora estava derretendo, sobrando apenas a água congelante.

Nós três lembramos juntos do livro que correu pelo rio, do dia em que Rudy lhe pediu um beijo pela última vez antes de ela ir para Berlim, e o dia em que ele a beijou. Os dias em que eles passavam por essa ponte para roubar, e os dias em que ele lhe roubou beijos naquela ponte, antes de ela finalmente aceitar namorar com ele. Rudy fechou os olhos e respirou fundo, será que quando ele morresse conseguiria se lembrar do cheiro bom das árvores ao redor, e se lembraria da água correndo no rio? Eu sorri docemente para a sua inocência.

O garoto abriu os olhos e olhou para a sua namorada, mas ela já o estava encarando, com um sorriso.

– O que foi?- Ele perguntou, sorrindo para ela. Ela balançou a cabeça.

– Se nós formos morrer mesmo, eu gostaria que o paraíso, se ele existir, e se nós formos dignos de estar nele... Que ele seja parecido com esse lugar.- Ela disse, suspirando. Ele balançou a cabeça.

– Porque invés de pensar nisso você não vem aqui?- Rudy perguntou, levantando-se num pulo, ele tinha tido uma ideia de última hora. Liesel levantou-se, confusa.

– O que você quer ou vai fazer?- Liesel perguntou, sorrindo animada. Rudy se agachou, dobrando a barra da calça, sentindo os pelos das pernas se eriçarem pelo frio. Olhou para ela.

– Vamos apostar corrida? Se eu ganhar, você vai ter de me dar um beijo.- Ele disse, piscando para ela, que gargalhou com vontade.

O meu coração, meu coração frio, sombrio e assassino; o mesmo coração que se parte quando vejo Rudy triste ou Liesel, ou qualquer dos meus sobreviventes; o coração que se alegra com qualquer coisa boa, feliz ou momento de paz que os acompanhem; esse coração se encheu de uma felicidade que até então eu não conhecia. Eu não me lembrava de, em momento algum, alguém que estivesse prestes á morrer, alguém que eu levaria em breve, pudesse me deixar feliz, me deixar leve, me fizesse esquecer do meu trabalho, do que eu faria em breve.

Talvez eu estivesse errada sobre os meus sobreviventes e as cores. Eu pensei que as cores me distraiam, mas, na verdade, elas me motivavam. Cada corpinho tinha uma cor, cada alma que eu levei tinha uma cor, e eu memorizei essas cores, e guardei cada um no meu coração doentio. Pensei que me apegar aos sobreviventes era ruim, eram erros, e que eu precisava de férias. Mas na verdade, eles eram as minhas férias. Eu me divertia, eu me emocionava, era com eles que eu me sentia viva.

O que eu faria quando os corpos dele tivessem cores também? E quando a minha diversão acabasse, pois meus sobreviventes não podiam viver para sempre. Infelizmente.

(…)


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Notas finais do capítulo

NSISNIS E AI?



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