Qual é a cor do amor? escrita por hollandttinson


Capítulo 1
Até a morte tem coração.




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Primeiro, as cores. Depois, os humanos. Em geral, é assim que vejo as coisas. Ou, pelo menos, é o que tento.

As pessoas só observam as cores do dia no começo e no fim, mas para mim está muito claro que o dia se funde através de uma multidão de matizes e gradações, a cada momento que passa. Uma só hora pode consistir em milhares de cores diferentes. Amarelos céreos, azuis borrifados de nuvens. Escuridões enevoadas. No meu ramo de atividade, faço questão de notá-los.

É claro, uma apresentação. Um começo. Onde estão meus bons modos?

Eu poderia me apresentar apropriadamente, mas na verdade isso não é necessário. Você me conhecerá o suficiente e bem depressa, dependendo de uma gama diversificada de variáveis. Basta dizer que em algum ponto do tempo eu me erguerei sobre você, com toda a cordialidade possível. Sua alma estará em meus braços. Haverá uma cor pousada em meu ombro. E levarei você embora gentilmente.

A pergunta é: Qual será a cor de tudo nesse momento em que eu chegar para buscar você? Que dirá o céu?

Pessoalmente, gosto do céu cor de chocolate. Chocolate-escuro, bem escuro. As pessoas dizem que condiz comigo. Mas procuro gostar de todas as cores que vejo – o espectro inteiro.

Como eu digo, o único dom que me salva é a distração. Ela preserva a minha sanidade. Ajuda-me a agüentar, considerando-se há quanto tempo venho executando este trabalho. O problema é: Quem poderia me substituir? Quem tomaria meu lugar, enquanto eu tiro uma folga em meus destinos-padrão de férias? A resposta, é claro, é ninguém.

Mesmo assim, é possível que você pergunte: por que é mesmo que ela precisa de férias? De que precisa se distrair? O que me traz á minha consideração seguinte.

São os humanos que assombram. Os sobreviventes.

É para eles que não suporto olhar, embora ainda falhe em muitas ocasiões. Procuro deliberadamente as cores para tirá-los da cabeça, mas, vez por outra, sou testemunha dos que ficam para trás, desintegrando-se no quebra-cabeça do reconhecimento, do desespero e da surpresa.

O que, por sua vez, me traz ao assunto de que lhe estou falando agora. É a história de alguns sobreviventes perpétuos – especialistas em serem deixados para trás.

Me lembro bem da primeira vez que vi Liesel Meminger.

Primeiro aparece uma coisa branca, do tipo ofuscante. Sim, era branco. Era como se o globo inteiro estivesse vestido de neve. Como você poderia supor, alguém tinha morrido. Era Werner. Uma criança, uma alma jovem que eu carregava no colo. Eles estavam viajando para Munique onde seriam entregues á seus pais de criação. Houve um intenso acesso de tosse. Um acesso quase inspirado e logo depois, nada. Foi assim que eu peguei a alminha minúscula e infantil de Werner. Foi o meu primeiro encontro com a menina que roubava livros. Gostaria de dizer que foi o penúltimo, mas no decorrer dos anos, a vi mais vezes do que gostaria de lembrar.

Não consigo lhe explicar a intensidade de minha decepção comigo mesma quando me lembro de todo o interesse que adquiri por aquela garotinha e tudo que a envolvia, como aquela ruazinha pobre de Munique, a rua Himmel. Imagino o quando pode ser irônico ler uma história em que a morte vaga sorrateiramente por uma rua chamada céu. Mas todos devem saber que, apesar de toda a hipocrisia, quando a morte conta uma história, você deve parar para ler.

Também me apeguei á um garotinho magricela que se pintara de preto e correra gritando o nome de um atleta norte-americano. Os vizinhos gostavam de chamá-lo de Jesse Owens. O garoto do cabelo de cor de limões, melhor amigo de Liesel, seu companheiro em roubos, o apaixonado, o saukerl. Era fácil se apegar ao novo vizinho de Liesel. Mais fácil do que eu gostaria, tudo seria mais fácil se eu tivesse ficado quieta e apenas levado a alma de Werner embora, mas não, eu fiquei e fiquei.

Erros, erros, ás vezes parece que isso é tudo de que sou capaz.

Rosa e Hans Hubermann, pais adotivos de Liesel. A mamãe de Liesel parecia uma tempestade, sempre trovejando. Ela possui a habilidade singular de irritar quase todas as pessoas que encontra. E é por isso que eu gosto tanto daquela mulherzinha com corpo de guarda-roupa. Já Hans era doce e calmo, o papai de Liesel adorava fumar e tocava acordeão como ninguém. Ele me evitou 2 vezes em duas guerras e considero ele um daqueles tipos de almas que eu levaria com pesar. Todos os dias peço para que a alma de Hans possa viver em seu corpo por muito tempo, ele merece.

E por último e não menos importante, é claro. Não posso me esquecer de Max Vandenburg. O judeu que viveu escondido no porão dos Hubermann, o amigo de Liesel que tinha os cabelos de plumas, o lutador, aquele que me daria um soco quando eu o fosse buscar. Me apeguei á cada pedacinho de Max Vandenburg e á cada sonho que ele tinha com o Führer e internamente, quis que ele um dia se encontrasse com ele e lhe desse uma surra por acabar com tudo o que ele tinha, com tudo o que ele amava e por tê-lo tirado de perto de Liesel.

Mas essa história é sobre uma noite especifica, um noite desastrosa.

Vi a menina que roubava livros procurar o judeu que escrevera A Sacudidora de Palavras em meio á multidão de judeus naquele desfile de agosto de 1943. Ela correu até ele, o segurou pelo braço. Eu vi quando um soldado a afastou de Max e vi quando ela começou á citar trechos do livro que ele lhe tinha dado. Vi quando ele olhou para o céu e disse que era um dia lindo, um dia lindo para morrer.

Quis segurar seu rosto pela mão e lhe dizer que não, não ia ser agora que o levaria comigo. Doeu em mim vê-lo ser açoitado e ouvi o grito do garoto com cabelo de cor de limões. Vi a tortura e agonia no rosto do meu Jesse Owens e o vi gritar para que ela fosse embora, para que ela se afastasse do judeu. E do chicote. Ele correu até ela e a arrastou dali, eu vi o machucado no rosto da menina e a vi levantar novamente em busca do amigo, de Max. Eu podia ter sorrido ao ver Rudy e Liesel entrelaçados no chão daquela rua suja, se não fosse uma das cenas mais tristes que presenciei desde que a conheci.

Mas naquela noite de 7 de outubro, fiquei satisfeita em ver a menina que roubava livros protegida, saudável e limpa em casa enquanto jantava com seus papais. Também fiquei feliz em ver Rudy guardando a sua bola e sua bicicleta em casa para tomar banho. Apesar de uma tarde triste, sentir que algo podia estar dando certo me fez ficar esperançosa.

- Liesel, abra a porta.- Apesar de ser uma ordem, a voz de Rosa era calma e tinha um significado: Rudy tinha contado o que tinha acontecido, e mesmo que não o tivesse, todos sabiam agora. A rua toda sabia.

Apesar do medo que Rosa e Hans sentiam por terem descoberto que eles tinham proximidade com um judeu, tentaram compreender a situação atual de Liesel, ela amava Max e estava com saudades dele. A saudade faz com que os humanos percam as estribeiras.

Está aí uma coisa que nunca saberei nem compreenderei - do que os humanos são capazes.

Era Trudy Hubermann na porta. Seu rosto estava feliz e animado e a primeira coisa que fez foi abraçar a Liesel, que estava mais confusa do que qualquer coisa. Hoje não, por favor. Não me peça para ser gentil, não hoje. Pensava a menina que roubava livros. Eu suspirei.

- Trudy? O que está fazendo aqui?- Perguntou Liesel enquanto observava a garota abraçar Hans e Rosa, que também estavam confusos e assustados.

- Perdão por não ter avisado, eu queria fazer uma surpresa.- Disse Trudy, animada.

- Ah, você é boa nisso, querida. Estou mesmo surpreso!- Disse Hans, sorrindo para a filha que revirou os olhos e depois se virou para a mãe.

- A senhora vai adorar, é realmente maravilhoso!- Disse Trudy.

A sua animação estava começando á dar náuseas em Liesel, seu estomago revirava. Ela não conseguia entender como alguém pode ficar animada depois de uma tarde como aquela, então lembrou-se que ninguém tinha tido uma tarde ruim, apenas ela. Ninguém tinha visto Max, apenas ela. Ninguém estava doído por dentro e por fora, apenas ela.

Quis dizer á Liesel que eu sabia como ela estava se sentindo, que eu estava ao seu lado e que eu também tinha visto Max, que agora o meu peito doía também. Mas eu não podia, eu nunca posso. Tinha que ficar quieta e observar, apenas observar. Isso me deixava bem próxima dos sentimentos de Liesel. Ah, eu não te contei? Até a morte tem coração.

- Vou adorar o quê? Não gosto de surpresas.- Disse Rosa, analisando a expressão da filha que não mudou com o comentário negativo da mãe.

- Eu consegui um emprego novo, mamãe! Um ótimo emprego, se quer saber! Eles me dão um bom salário e eu consegui comprar uma casa. Acredita? Uma casa só minha. É modesta e não fica em um bairro nobre, tenho que andar bastante para o trabalho, mas ainda assim é maravilhoso.- Dizia Trudy, ainda com aquele sorriso agonizante no rosto.

- Trudy, pode por favor falar algo coerente? Não estou entendendo nada do que você está falando.- Disse Hans, balançando a cabeça enquanto ia para o lado de Liesel e colocava a mão no seu ombro. Trudy não os olhos, continuava segurando as mãos de Rosa e olhando para ela encantada.

- Quero levar vocês para Berlim!- Ela despejou na cara de Liesel. Como um tapa. Liesel estava constantemente sofrendo Watschens das palavras.

- O QUÊ?!- Não era para ser um grito, mas ela não conseguiu se conter. Estava chocada e assustada. Trudy olhou para ela assustada, seu sorriso tinha sumido agora.

- Algum problema, Liesel?- Perguntou.

- É claro! Mamãe, papai! Eu não quero ir para Berlim, gosto daqui.- Disse Liesel, segurando a mão de seu papai que ainda estava em seu ombro. Rosa amarrou a cara para Liesel e balançou a cabeça.

- Mas Liesel, é uma ótima oportunidade! Vai estudar numa boa escola e vamos ter mais condições, e vai parar de tomar sopa todos os dias!- Disse Trudy, apontando para o prato sobre a mesa. Rosa torceu o nariz para a filha, estava prestes á ralhar com ela quando Liesel respondeu.

- Eu gosto da minha escola, gosto daqui e gosto da comida de mamãe.- Disse Liesel. Rosa, Hans e Trudy ergueram uma sobrancelha.

- Pelo amor de Deus! Mamãe, por favor! É mesmo uma oportunidade maravilhosa e eles vão deixar que a senhora trabalhe também, sem falar que eles vão dar emprego ao papai também porque ele foi para a guerra.- Disse Trudy, apontando para Hans que suspirou. Liesel estava sentindo aquela terrível vontade de chorar vir á tona, ela não queria ir embora, não queria.

- Papai! Papai, por favor. Eu não quero ir... Eu não posso ir. Eu gosto da escola e tenho os meus amigos aqui, eu não posso deixar Rudy.- Disse Liesel. Hans quase pôde ver a lágrima escorrer pelo rosto de Liesel.

- Já chega, Liesel. Trudy, quando podemos ir?- Perguntou Rosa, e então Liesel chorou. Ela caiu no choro. A garota se jogou no chão e chorou, abraçada aos joelhos. Hans se agachou ao lado dela e ficou passando a mão no seu cabelo enquanto olhava de cara feia para Rosa, que continuou com a expressão impassível. Trudy olhava a garota assustada.- Trudy?

- Eu... Eu acho que é melhor nós deixarmos um tempo para Liesel se acalmar.- Disse Trudy, ela estava mesmo preocupada com a garota, o que a tinha feita agir assim?

Ela não sabia, mas naquele momento Liesel sentia aquela dor de sempre. Aquilo lhe fez lembrar Werner, lhe fez lembrar da ultima mudança, quando sua mãe a abandonou, quando teve de viver aqui com os Hubermann e do quanto foi difícil. Lembrou-se que Rudy, Max e Hans a fizeram gostar do lugar, e agora Max tinha ido embora e ela iria embora, ela deixaria Rudy sozinho. A única pessoa que ela tinha no mundo além dos pais era Rudy, e teria de deixá-lo. Liesel não foi capaz de suportar a dor, e nem queria. Aquelas lágrimas eram por Werner, por Max, pela sua mãe e por Rudy.

- Liesel não precisa se acalmar, ela está perfeitamente bem, não está Liesel?- Perguntou Rosa. Liesel soluçou e a sua mamãe revirou os olhos.- Ela vai se recuperar, ninguém morre porque muda de cidade. Mas então, quando podemos ir?

- Sendo assim... Essa noite mesmo. Não precisam levar muitas coisas, certo? Apenas as suas roupas e o que acham mais importante.- Disse Trudy. Posso levar Rudy? Liesel quis perguntar, mas ela não tinha fôlego. Hans ainda acariciava os cabelos da garota e ela ainda chorava deitada no chão.

- Faça ela calar a boca enquanto eu arrumo as nossas coisas.- Disse Rosa.

- Vamos hoje? Rosa! Deixe que ela se despeça de seus amigos, pelo menos!- Disse Hans, olhando irritado para a esposa que fez careta.

- Está falando daquele Saukerl? Rudy Steiner? Ele vai sobreviver.- Disse Rosa.

- É, mas talvez Liesel não estivesse viva hoje por ele. Ele merece uma despedida.- Disse Hans, o que fez Liesel chorar mais ainda. Rosa deu de ombros.

- Certo, então vá até a casa dele e se despeça, vou arrumar suas coisas também.- Disse Rosa, puxando Trudy pelo braço para que ela a ajudasse. Trudy voltou ao estado animado do inicio. Hans segurou Liesel pelos ombros.

- Vamos Liesel, vamos nos despedir de Rudy.- Disse Hans, levantando a garota que ergueu o corpo sem muita força.

- Não posso! Não posso!- Ela chorava enquanto era guiada pelo pai á porta de entrada.- Eu não posso ir embora, eu não posso deixar Rudy, eu preciso ficar. Papai!

- Liesel, por favor. Nós precisamos ir! Logo as pessoas vão comentar sobre o que aconteceu hoje, as pessoas estão descontrolada. O mundo ficou maluco!- Disse Hans, assustado. Liesel se sentou no chão frio da rua e começou á chorar de novo. Não tinha muita gente na rua, então eles não estavam chamando muita atenção. Hans suspirou e se abaixou á filha.

- Me perdoe, eu não sabia! Eu só queria abraçá-lo, tocar nele!- Dizia Liesel.

- Eu sei, eu sei.- Hans abraçou a garota que continuou chorando.- Foi preciso e eu entendo, mas agora é preciso ir embora, entende isso, Liesel?

- Não. Eu não quero, papai. Eu não posso abandonar Rudy! Ele é tudo que eu tenho!- Ela disse, soluçando. Hans suspirou. Ele sabia que a filha gostava muito de Rudy e podia imaginar o quanto despedir dele devia ser doloroso, mas era preciso.

- Eu sei, querida... Mas não vai ser melhor para ele se ficarmos. Vamos, você é corajosa. Eu sei que você pode!- Hans tentou incentivar, não adiantou. Liesel ainda chorava.

O rosto de Rudy estava presente na mente de Liesel e na minha também. Meu Deus, eu seria mesmo capaz de ficar aqui e ver a menina que roubava livros se despedir dele? Eu seria capaz de assistir calada ao sofrimento de Rudy? Não, eu não seria. E como castigo, levei todas as almas da rua Himmel naquela noite. Apenas de birra... Menos a de Rudy.

- Liesel? O que houve? Estava chorando?- Perguntou Rudy quando abriu a porta. Liesel estava com o rosto manchado e seu papai a segurava pelos ombros, sentia que a garota cairia no chão e choraria á qualquer momento. Mas não aconteceu.

- A Liesel precisa te falar uma coisa importante. Estou te esperando lá dentro, querida.- Hans deu um beijo na testa de Liesel e voltou para casa. Rudy a olhou com a sobrancelha erguida. A garota soluçou e se agarrou á cintura do amigo. Ela chorou mais um bocado no ombro dele, enquanto ele afagava o cabelo dela, se perguntando o que diabos tinha acontecido.

Quando já estava mais calma, Liesel se sentou na escadaria da casa dos Steiner e Rudy a acompanhou, fechando a porta. Rudy não disse nada, apenas ficou esperando por ela. Como sempre esteve e sempre estaria.

- Eu vou embora.- Ela disse. Liesel imaginou que se fosse mais curta, se a despedida não durasse tanto, poderia ir sem doer tanto. Como se fosse possível.

- O que você disse?- Ele perguntou, mas Rudy tinha ouvido. Ele tinha ouvido perfeitamente.- O que você disse, Saumensch?

- Eu vou embora, Rudy. Vou para Berlim, hoje á noite. Agora.- Liesel falou rápido. Rudy ficou calado um bocado de minutos e Liesel teve que virar o rosto para olhá-lo. Ele não parecia ali, apesar de seu corpo estar ali e seu peito subir e descer rapidamente e nervosamente.- Rudy?

- Vai embora?

- Vou.- Ela engoliu em seco. Os olhos azuis de Rudy ganharam foco e olhavam para os da garota. Os olhos que estavam vermelhos de tanto chorar. Depois olhou para a marca roxa que estava no rosto da garota, a marca que Trudy não notou, a marca do chicote daquele soldado.

- Assim... Tão fácil? Tão rápido?- A voz de Rudy estava começando á falhar e Liesel orou para que ele não chorasse. Por favor, Rudy, não chore. Por tudo que é mais sagrado, não me faça sofrer mais.

- Não é fácil... Eu não sabia. Trudy quem está nos levando. Ela conseguiu um emprego maravilhoso e vai ser bom para mamãe e papai, eles vão ter uma boa condição agora e eu vou estudar numa das melhores escolas que eu posso imaginar.- Disse Liesel, repetindo as palavras de Trudy. Sua voz falhou miseravelmente.

- E vai se livrar de mim, também.- Ele disse, cruzando os braços com força.

Eu entendi Rudy, você não? Primeiro o seu pai foi embora sem previsão de volta, e agora era a Liesel quem estava indo. Liesel não era a única que estava perdendo coisas aqui, Liesel não era a única que levava tapas, ela não era a única á sofrer.

- Claro que não, Rudy! Eu não quero ir, não entende? Mas é... Preciso.- Ela repetiu as palavras de seu papai. Rudy bufou e olhou para ela, seu rosto estava começando á tomar uma tonalidade rosa, tipo quando ele ta prestes á chorar mas jura pra si mesmo que não pode chorar na frente dela. Na frente dela não. Pobre, Rudy.

- Preciso?- Ele perguntou, a voz falhando. Na verdade, ela estava chorosa. Liesel engoliu em seco.

- Depois de hoje a tarde, as pessoas sabem do Max e nós não podemos... Não podemos correr o risco. E se nos levarem embora?- Perguntou Liesel. Rudy balançou a cabeça e foi uma coisa bem ruim porque aquela lagrima que ele estava escondendo, se mostrou escorrida em sua bochecha rosada. Ele limpou rapidamente e Liesel segurou seu próprio coração em sua mão, ou na minha.

- Liesel, por favor.- Rudy estava de olhos fechados agora. Apertava as têmporas com os dedos indicador e polegar, seu queixo tremia e a sua voz arrancava meu coração.

Ele mexe comigo, esse garoto. Sempre. É sua única desvantagem. Ele pisoteia meu coração. Ele me faz chorar.

- Me perdoe, Rudy. Eu não queria te fazer chorar...

- Tarde demais.- Disse Rudy, se virando para a menina. Ela abraçou ele com força.

- Eu nunca vou te esquecer. Não vou te esquecer. Não vou te esquecer...- Ela repetiu isso milhares de vezes até que Rudy começou á chorar. Ele chorou como um bebezinho. Eu e Liesel o acompanhamos.

- Não vai se livrar de mim tão fácil, Liesel. Quando você menos esperar, vou estar na tua cola. Pode apostar que eu vou encontrar você.- Ele disse, ainda abraçado á ela e com a voz completamente embargada. Liesel soluçou.

- Vou esperar por isso.- Ela disse.

- Eu amo você, Saumensch.- Rudy se declarou.

Não era um pedido de beijo, ele não queria seu beijo agora. Você pode gostar mais do Rudy por isso, se quiser. Ele só queria seus braços ao redor do seu pescoço, como estavam agora. Ele só queria sentir aquele cheiro bom de roubo na pele dela e gostar disso. Ele só queria continuar olhando para seu rosto todos os dias da sua vida. Ele só queria que ela ficasse ali com ele, para sempre.

- Eu amo você, Saukerl.- Liesel respondeu.

Mais uma vez ela desejou que ele a beijasse, que a tomasse em seus braços a puxasse e beijasse. Que finalmente ele lhe desse o beijo que tanto ambos queriam. Mas o beijo não veio e não viria agora. Agora não.

- Vai voltar para mim?- Rudy perguntou, sem soltar a garota. Sua voz estava um pouco controlada.

- Vou te escrever várias cartas, não precisa roubar para conseguir dinheiro para os selos.- Disse Liesel, enquanto eles finalmente se soltavam. Rudy limpou o rosto e balançou a cabeça.

- Roubar não tem a menor graça sem você.- Ele disse. Ela sorriu um pouco para ele e lhe afagou a face.

- Concordo, peixe.- Disse Liesel, se lembrando do rio Amper. Rudy sorriu fraquinho.

- Liesel?- Hans chamou á porta. Trudy e Rosa levavam as coisas para o carro que estava parado na frente da casa dos Hubermann, o carro da família á quem Trudy trabalhava, os ricões que “sustentariam” nossa garota.

- Ela já vai, Herr Hubermann.- Disse Rudy, limpando o rosto. Hans suspirou e foi até eles.

- Vou sentir falta de você, Rudy.- Disse ele, bagunçando o cabelo do garoto que sorriu, fungando. Hans olhou para Liesel e lhe entregou os seus livros prediletos, incluindo A sacudidora de palavras. E então lhe entregou seu livrinho preto.- Aqui o seu diário.

- É seu.- Liesel mal tocou no livrinho e entregou a Rudy que ergueu uma sobrancelha.

- Está me dando o seu diário?

- Não é meu diário. É um livro que eu escrevi, pra você se lembrar de mim enquanto eu estiver fora.- Disse Liesel, sorrindo para o amigo. Rudy sorriu abertamente e abriu a primeira página.

- A menina que roubava livros. Uma história de Liesel Meminger.- Ele leu e sorriu para ela.- Não tem como esquecer!

- Ótimo.- Disse Liesel e olhou para o seu papai.- Mais algo?

- Não, já estamos indo.- Disse Hans, suspirando. Liesel limpou o rosto mais uma vez e antes de ir embora, ainda foi chamada por Rudy.

- Olha, eu sei que não é muita coisa, mas já que me deu o seu livro, que deve ser a coisa mais importante do mundo pra você, estou te dando minha bola.- Disse Rudy, entregando um esboço de bola.

Estava furada, murcha, como os corações de Liesel e Rudy no momento. Mesmo assim, Liesel abriu o seu maior sorriso do dia e abraçou Rudy com força, com muita força. Ele retribuiu. Eu gostaria de dizer que não se soltaram, que Liesel nunca foi embora, mas ela foi. E Rudy assistiu á tudo sem fazer nada, apenas segurando a história de Liesel em suas mãos, enquanto chorava a perda de sua melhor amiga e primeiro amor.

Dentro do carro, Liesel abraçou aquele pedaço de Rudy que deixou com ela e chorou, lembrando-se dos olhos azuis, dos cabelos cor de limões, da boca que nunca beijou e nunca foi beijada, dos roubos, dos jogos de futebol e principalmente: De todas as vezes em que Rudy esteve ao seu lado, o que foi quase sempre. Ela nunca se esqueceria daquele Saukerl. Nunca. Era uma promessa.

Com o livro agarrado ao corpo, Rudy saiu de casa na madrugada e foi até a casa de Liesel. A rua estava deserta, mas ele não estava muito preocupado em ser visto, ele só queria ir até o porão onde Liesel e Max ficavam, onde ela escreveu o livro. Ele não encontrou problemas em entrar na casa e muito menos em achar o porão. Sentado ao chão frio, Rudy abriu o livro e começou á ler as palavras de Liesel. Horas depois, a rua Himmel estava sendo bombardeada e eu finalmente pude levar aquelas almas de que lhe falei logo cedo.

Como um presente de consolo – á mim mesma mais do que á qualquer outra pessoa – não levei Rudy aquela noite. Eu estive em sua casa, levei sua mamãe e seus irmãos. Levei Tommy Müller e todos os moradores da rua, mas não Rudy.

O céu estava vermelho aquele dia e chovia, nevava. Uma neve de cinzas. A rua foi destruída, escombro sobre escombro. Corpo sobre corpo e um armário sobre Rudy, sua salvação. Ninguém planejava bombardear ali, quem bombardearia uma rua chamada céu? Era o que os soldados da LSE se perguntavam enquanto tiravam os corpos sem vida dos escombros. Bom, nem todos os corpos eram sem vida.

Um garotinho com cabelos da cor de limões batia em uma lata de tinta com um lápis, ele queria viver. Ele precisava viver, algum dia a menina que roubava livros voltaria e ela não merecia chorar sobre o seu túmulo? Não, Rudy Steiner ficaria vivo para ver Liesel Meminger voltar, nem que eu precisasse ajudá-lo.

Viu?

Até a morte tem coração.

(...)


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Notas finais do capítulo

Espero que vocês gostem, de verdade!