A Pele do Espírito (versão antiga) escrita por uzubebel


Capítulo 28
A garganta do mundo


Notas iniciais do capítulo

Geeeeente, eu estou frenética! Publicando capítulo atrás de capítulo. E como hoje minha banca foi até bem, estou feliz comigo mesma e decidi postar DE NOVO. Isso mesmo. Nem parece que só consigo escrever um capítulo por mês, né? Mas espero que essa Hype dure porque as coisas estão ESQUENTANDO aqui. Vou viajar e pretendo escrever bastante pra vocês. Então leiam e me digam o que acharam do capítulo. Beijo no coração de todos vocês!



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— Você pode explicar de novo o que vai acontecer com a gente...? – Perguntou Dois, inseguro.

Byakko suspirou.

— Vou tirar vocês das aldrabas e colocar... nas estátuas – ele apontou novamente os grandes tigres de pedra.

— E então nós vamos poder caminhar de novo? – Perguntou Um;

— E coçar o nariz? – Disse Dois. – Pelos Espíritos, eu preciso coçar meu nariz faz pelo menos duzentos anos.

— Esse é o plano – Byakko respondeu, suprimindo sua rizada com um aceno de sua sobrancelha enquanto eu me engasgava com a minha. Um revirou os olhos, mas concordou com seu irmão. – Quem vai primeiro?

Um estava cético, então seu irmão foi primeiro.

— Vou deixar você escolher a estátua.

Ele indicou a da esquerda. Byakko o pegou e levantou até que seu metal estivesse tocando o peito do tigre de pedra alva. Ele se desculpou por pôr a mão em cima da cara da aldraba, mas sua palma era quase do tamanho do objeto, e ele havia dito que precisaria “empurrar” a alma deles para dentro do novo receptáculo. Byakko nunca tentara nada parecido, ele dissera, mas, se podia tirar uma alma de um corpo, talvez ele pudesse coloca-la em outro. Ele ouvira falar de feiticeiros fazendo isso, mas aprisionando espíritos em estátuas compulsoriamente, com seus próprios métodos obscuros. Para os irmãos, a estátua seria um progresso.

— Preparado?

Dois resmungou algo ininteligível, já que a mão de Byakko estava tapando sua boca, mas me pareceu um sim.

Reconheci o movimento que Byakko executou em seguida, espelhando aquele de quando afundara seus dedos no peito de Dorothea. Mas, desta vez, ele não puxou a alma para fora; ao invés disso seu braço afundou até o cotovelo, mergulhando através da alabarda e da estátua, como se tentasse colocar a alma de Dois onde deveria haver um coração no gigantesco corpo de pedra. Os olhos da alabarda perderam o foco, o brilho do metal ficou embaçado, como se precisasse de uma boa limpeza, e depois ela caiu no chão, imóvel. A estátua, no entanto, não demonstrava qualquer sinal de consciência, e temi pelo pior. Mas Byakko puxou seu braço de volta para a superfície com convicção, deixando apenas sua palma nua em contato com o mármore. Desse contato subia uma leve fumaça esbranquiçada.

Foi um longo segundo até os olhos vítreos do felino piscarem. No mesmo instante, Byakko deixou sua mão cair ao lado do corpo, revelando a marca de sua palma marcada quase que à fogo na pedra, escurecida, como um selo. As duas caldas ondularam em seguida, e então cada perna se esticou lentamente, como se a alma de Dois ainda as estivesse vestindo, uma a uma, como quatro pares de meia. Em seguida, a estátua se espreguiçou e esfregou seu focinho no chão pedregoso, emitindo um resmungo de alívio.

— Eu precisava tanto disso... – Depois esfregou os ombros nas rochas ao redor e se coçou inteiro.

— Deu certo! – Um não conseguia disfarçar sua surpresa e contentamento.

— Sua vez – disse Byakko, apanhando-o.

— Certo.

— Feche os olhos – avisou.

Um obedeceu. Byakko o posicionou como fizera com seu irmão antes, colocando-o diante do peito de pedra da mais escura das estátuas, e começou a empurrar, com sua mão atravessando a matéria sem qualquer resistência. Depois de colocar a alma no âmago da estrutura de basalto, Byakko puxou sua mão para fora, deixando novamente uma marca, e esperamos que ela se mexesse. Não demorou muito, logo Um piscou e fechou sua bocarra, sentando-se diante de nós e meneando suas duas caldas.

— Vais ser difícil se acostumar com isso – ele desabafou.

— Fale por você – retrucou seu irmão. – Isso parece um sonho.

— Muito obrigado – os dois disseram em uníssono, curvando-se diante de Byakko.

— Tudo bem, – ele respondeu, sorrindo – eu sempre quis tirar essas estátuas daqui. Mas meu irmão vai ficar possesso quando descobrir.

— Por quê? – Perguntei.

— Ele gosta de inspirar medo, imagino – Byakko começou a juntar os cobertores que havíamos usado para dormir. – Vamos, está na hora de entrar...

Nós juntamos todos os pertences e recolocamos na minha bolsa. Já havíamos comido, mesmo que pouco, alguns pedaços de bolachas secas e tiras de peixe salgado. Encarei a grande boca da caverna novamente, os símbolos em seu topo e o constante zumbido que ela emitia, desde que havíamos chegado. Se eu não conseguisse controlar o ruído, como Byakko me ensinara, provavelmente estaria enlouquecendo naquele momento. Havia magia naquele lugar, muita magia.

Tâmi aparecera e nos aguardava do lado de dentro.

— Está com medo? – Ela perguntou.

— Talvez...

— Tem medo de morrer? – Voltou a tocar no assunto, como no dia anterior.

Encarei as costas de Byakko diante de mim, regredindo muitos anos em minha memória. “ Eu sou a Morte”, ele dissera, e eu não sentira medo. Eu sentira solidão. Do tipo que aquele garotinho parecia entender. Eu não tive medo da morte, e agora flertava com ela.

— Não – respondi.

— Então do que tem medo?

“Mas esse é seu nome?”

“Meu... nome?”

— Eu tenho medo de esquecer...

“Byakko. Meu nome é Byakko”.

Um e Dois caminhavam com cuidado, agora com seus novos e enormes corpos, atrás de nós. Tâmi desacelerou um pouco até ficar no fundo, com os irmãos, e me deixou na frente com Byakko. Alguns passos depois da entrada, a caverna fazia uma curva para a direita e se alargava; havia símbolos esculpidos na rocha, mas essa era a parte fácil de engolir. Porque depois dos símbolos eu só conseguia ver centenas de milhares de caveiras escurecidas cobrindo as paredes, perfeitamente organizadas, expostas de forma macabra em pequenos degraus e sulcos escavados nas pedras. Eu não conseguia sequer contabilizar quantas pessoas estavam sepultadas ali. Mais do que eu imaginara que pudessem existir. Não passávamos de algumas dezenas na ilha, atualmente. Em Thânat, Byakko dissera, houvera cinco mil. Ali devia ter centenas de vezes o que eu achava que podia contar.

— Eu disse que você não ia gostar do que tinha aqui dentro – Byakko disse.

— Está só mais ou menos escuro e já estou detestando... Quem são todas essas pessoas?

— Os Thânatis – respondeu Um. – E eu digo todos eles. Todos os nossos ancestrais, e os seus também.

— Vocês vinham aqui para lamentar seus mortos? Isso parece...

— Assustador? – Respondeu Dois. – Na verdade, a maioria dos Thânatis nunca pôs os pés aqui dentro, só era permitido ir até a entrada da caverna. Apenas os sacerdotes podiam entrar. Eles... bem, cuidavam dos corpos e organizavam as ossadas. Acho que esse lugar fez eles enlouquecerem. É tudo tão...

— Organizado – Um completou, colocando seu focinho perto demais de uma das caveiras. – E essa é só a antessala. Você vai ver quando chegarmos na câmara de verdade.

Vinha luz da curva seguinte, como se houvesse outra saída lá, e o ar ficava mais abafado e úmido conforme avançávamos. Seguimos adiante alguns passos, até a caverna se abrir ao nosso redor; de um corredor – nada estreito – havíamos chegado em uma gigantesca câmara, como Um se referira, que devia ocupar todo o interior da montanha. Acima de nossas cabeças, bem lá no alto, havia uma abertura por onde a luz se infiltrava, o que explicava porque não havíamos precisado de nenhuma chama para nos guiar pela caverna. Se estávamos num vulcão, aquela devia ser a cratera. Diante de nós, estava um grande lago de água cristalina e quente, a nascente do Tâmi, e em seu centro havia uma pequena ilha rochosa com uma construção ocupando toda sua extensão. Era muito parecido com o templo de Byakko mas, ao invés das paredes claras, todo o lugar fora erguido em rocha vulcânica escura, quase negra, que de tão polida refletia cada crânio dos incontáveis que enchiam a caverna ao redor. Havia mais ossadas ainda lá, o suficiente para cobrir toda a circunferência da cratera até a altura de três homens. Além das caveiras humanas, também havia algumas outras menores, de focinho mais alongado e presas afiadas.

— Eu disse que eles gostavam de gatos – explicou Byakko.

Resmunguei.

— O que?

— Me sinto como se estivesse sendo observada... – falei mais alto. – Não é uma boa sensação para se ter num lugar cheio de cabeças penduradas nas paredes.

— Acredite... – disse Byakko, com a voz grave como um rosnado. – Não são os mortos que estão olhando para você.

Todos encaravam uma mulher desgrenhada e sentada na ilha adiante. Não, um Espírito. Mas era sem dúvida a maior que eu já vira, centímetros mais alta que o homem mais alto da ilha, dona de membros tão alongados quanto seus cabelos negros e despenteados que praticamente se arrastaram pelas rochas vulcânicas quando ela se levantou, fitando-nos intensamente. O Espírito desceu da margem rochosa e começou a caminhar sobre a água sem causar uma ondulação sequer, como se a superfície fosse um espelho e ela, completamente imaterial. O vestido que ela usava era cinzento e tinha a bainha rasgada em seu comprimento, formando uma calda comprida e desfiada; sua pele era cor de oliva e sobre os olhos, mantidos na sombra, ela usava uma caveira. Não uma humana, como as várias que cobriam as paredes, mas uma de focinho alongado e grandes presas, que se precipitavam ao lado de suas têmporas e onde seu cabelo escuro se emaranhava. O crânio de um felino tão grande que deveria ser capaz de inspirar pesadelos em qualquer criatura.

— Quem é? – Perguntei, enquanto ela vinha em nossa direção passo a passo.

— Taiga. Ela guarda a entrada para o Mundo Espiritual... – Respondeu Byakko.

— Ela vai nos impedir?

— Vai tentar...

— Será que ela se lembra da gente? – Dois perguntou.

— Aposto como ela se lembra da gente... – Respondeu seu irmão.

— Não é como se vocês não tivessem mudado nada, sabia? – Eu rebati, encarando os dois que pareciam aterrorizados.

— Você acha que ela precisa olhar na nossa cara pra lembrar da gente? Menina, ela olha no fundo da nossa alma! E deve se lembrar até do cheiro do nosso medo...

— Vocês tiveram que passar por ela da última vez?

— Não tem como não passar por ela – disse Byakko. – Ela sabe sempre que alguém atravessa. Ela sente. É o que Taiga faz. Se estivesse sozinho, ela não apareceria, ela não sente quando sou eu atravessando. Um e Dois são só almas, é como se praticamente estivessem mortos.

— Ei! – Eles retrucaram.

— Mas você... – Byakko continuou a explicar, olhando para mim. – Os mortais e os vivos não podem passar. Ela sentiu sua presença.

— O que vamos fazer? – Perguntei, olhando ao redor, procurando qualquer coisa que pudesse nos ajudar. Foi quando percebi que Tâmi não estava mais atrás de nós. – Onde...

— Quando eu disser, você vai correr par dentro do lago, tá bom? – Byakko pediu, ainda encarando Taiga adiante.

— Mas ela está no lago...

— Mesmo assim. Eu vou com você. Confia em mim?

Assenti, engolindo em seco.

Taiga parara diante de nós, mas não subira até a margem, onde estávamos. O Espírito continuava de pé sobre a superfície estática da água, perto o bastante para, agora, eu poder ver seus olhos através das órbitas vazias do crânio que adornava sua cabeça. Suas íris também refletiam a luz, como as de Byakko, mas tinham a cor de moedas envelhecidas, um tom acobreado cintilante, e as pupilas rasgadas de um gato.

— Byakko... – Ela finalmente falou, dirigindo-se a outro Espírito e não ao resto de nós. – O que vai fazer?

— Vou atravessar – ele respondeu.

Taiga deu um passo para o lado, como se abrisse passagem para Byakko.

— E os outros? E a menina?

Byakko encarava o outro Espírito, mas de tempos em tempos seu olhar vagava pelos arredores, como se buscasse algo.

— Você sabe que mortais não podem passar – Taiga o avisou, diante de seu evidente silêncio.

— Eu sei – ele respondeu, pegando minha mão e a apertando com firmeza. Byakko me olhava de volta, quebrando seu contato visual com Taiga por um instante, como se me dissesse para estar pronta. E, acima de tudo, que estávamos juntos...

A silhueta de Taiga oscilou ao presenciar o gesto entre nós, como se algo muito diferente se escondesse por trás daquela face severa, porém humana. Um rosnado ecoou em sua garganta e seus olhos se estreitaram.

— Você está me desafiando? – Ela perguntou.

— Não pretendo lutar com você...

— Então como acha que vai passar com... ela?

No mesmo instante, vi um vulto pálido se mexer dentro d’água. As mãos de Tâmi romperam a superfície imóvel e agarraram os tornozelos de Taiga, puxando-a até a cintura para dentro do lago. O Espírito gritou de surpresa também quando tentáculos de água límpida aprisionaram seus pulsos que se debatiam e amordaçaram sua boca, trazendo-a ainda mais para o fundo.

— Corre, anda! – Gritou Byakko, arrancando-me de meu torpor enquanto me puxava para dentro do lago.

— Onde fica a entrada? – Perguntei, sem entender para onde ele me levava.

— O lago é a entrada.

— O que? Não tem uma porta?!

— Claro que não!

— Então... como nós atravessamos?

— O lago é a entrada – ele repetiu, parando agora que a água nos cobria até a cintura. – Você tem que nadar até o fundo, entendeu? Quando chegar lá, vai ter atravessado. Consegue fazer isso?

— Eu...

— Você consegue fazer isso – ele afirmou, apertando meus dedos.

— Byakko! – Taiga rugiu, depois de conseguir se desvencilhar de Tâmi o suficiente para pôr sua cabeça para fora d’água mais uma vez. Eu não conseguia ver claramente, mas seu corpo parecia inchar e crescer exponencialmente até um ponto que Tâmi não conseguiu mais mantê-la sob a superfície, apesar de seus tentáculos ainda envolverem seus membros e sua garganta. Ou uma das duas... percebi, horrorizada. O Espírito rugiu com suas duas cabeças animalescas.

— Mergulha! – Byakko disse, me puxando para dentro da água.

Antes de submergir, vi Dois se jogar contra Taiga e lutar contra a cabeça que Tãmi não era capaz de conter sozinha, e então a água encheu meus ouvidos de ecos da luta. O lago era cristalino e sua superfície era morna. Byakko me conduzia cada vez mais para o fundo e para o meio, onde eu era capaz de ver uma depressão escura sem, aparentemente, nenhum fim. Eu não tivera oportunidade de tomar fôlego, e meus pulmões definitivamente não estavam preparados para um mergulho na escuridão. Além disso, quanto mais descíamos, mais quente a água se tornava, até um ponto que eu não conseguia mais prosseguir de olhos abertos. Entrei no buraco escuro com apenas a mão de Byakko me guiando e a água fervendo ao meu redor.

Completamente desorientada, eu colidi contra as rochas do buraco que se estreitava ao meu redor, e acabei me soltando do aperto de Byakko. Meus pulmões se contraíam dolorosamente em busca de ar e eu não sabia mais para onde ir. Tentei abrir uma fresta em meus olhos, mas estava escuro demais para enxergar e a água praticamente os queimou. Comecei a entrar em desespero. Estava ficando zonza, prestes a me afogar e finalmente ceder aos anseios do meu corpo de respirar, mesmo debaixo d’água. Eu não ia conseguir voltar, não tinha fôlego o suficiente para voltar à superfície, minha cabeça latejava. Continuei a nadar para baixo, mesmo sem ver aonde ia. Minha única chance era atravessar e encontrar Byakko no caminho.

Nadei até sentir minha consciência oscilar dolorosamente. Se desmaiasse, minha consciência não poderia mais dizer ao meu corpo que não respirasse, e eu me afogaria. Se desmaiasse, seria o meu fim. Usava minhas mãos adiante do corpo, tateando as paredes estreitas até sentir o túnel voltar a se abrir ao meu redor. Coloquei minhas últimas forças em minhas pernas que me empurravam adiante pensando que devia estar chegando em algum lugar, por favor, eu precisava respirar.... Foi quando percebi a temperatura da água voltar a oscilar... e cair.

Minha mão rompeu a superfície primeiro, cegamente, e foi apanhada por outra, que me puxou rápido para fora do lago. Eu não soube dizer quando havia parado de descer e começara a subir, mas aparentemente o túnel acabava em outro lago. Em outro mundo. Byakko havia me puxado para a margem de uma ilha rochosa, onde eu engasguei e cuspi água no chão, sentindo ânsia de vômito.

— Eu achei que você tinha se afogado... – Ele disse, angustiado.

— Achei que teria de morrer para vir pra cá...

Ouvi a risada seca de Um atrás de mim.

— Você é durona, garota... – Ele me parabenizou.

Sentei-me para finalmente ver onde estávamos. Era exatamente outra caverna, mas sem as paredes decoradas de ossos, apenas as rochas nuas e escuras. O lago, aqui, não era nada como do outro lado, sua água era leitosa, opaca, sem vida, e pensei comigo mesma que não queria provar seu gosto nem me envenenar bebendo-a. Byakko estava encharcado ao meu lado e Um atrás dele, nós três no que seria uma ilha rochosa no centro do lago. Como um reflexo da ilha que, no Mundo dos Vivos, tinha construído sobre si o templo que Byakko dissera ser de seu irmão. Mas, ao invés de uma construção, havia apenas um pilar de pedra gigantesco que conectava o chão ao teto cheio de estalactites moldadas pela eternidade, ou pela vontade dos Espíritos, talvez...

— Onde está Dois? – Perguntei.

— Ele teve que ajudar Tâmi a segurar Taiga.... Ganhou tempo para que pudéssemos atravessar – respondeu a estátua.

— Mas, e a irmã de vocês?

— Eu vou resgatá-la – ele disse, confiante. – Prometi para ele.

Assenti.

Eu tremia de frio agora que a água em minhas roupas esfriara, mesmo que o ar naquele lugar fosse tão imóvel quanto numa bolha. Pensei em pegar os cobertores em minha bolsa para me aquecer, e então um calafrio de pavor percorreu meu corpo quando pensei nos meus pertences. Abri a bolsa e joguei tudo no chão. Tudo encharcado. Joguei as mantas para o lado, examinei Damon mas cheguei à conclusão de que ele secaria junto com o que mais fosse de tecido. O caderno, no entanto... A tinta borrara, o papel estava pesado e frágil com todo o líquido que absorvera e, mesmo que eu o deixasse secar, as páginas grudariam umas nas outras e eu jamais voltaria a lê-las sem rasga-las. Byakko se aproximou, observando por cima de meu ombro.

— Eu sinto muito... – Disse. – Não imaginei que isso aconteceria, ou jamais teria deixado você trazer suas coisas...

Ele tentou tocar meu ombro, mas eu o afastei, sentindo as lágrimas começarem a escorrer pela pele já úmida. Peguei o caderno arruinado e o joguei de volta no lago, vendo-o afundar lentamente nas águas leitosas do esquecimento. Onde eu estava com a cabeça? Devia estar atrás de algo que jamais teria de volta, e no caminho perdera o resto das lembranças que acumulara com tanto carinho ao longo dos anos sem meus pais.... As únicas que haviam me restado.

Como uma piada, a papoula que Byakko me dera foi a única coisa que flutuou de volta para a superfície. Ele se esticou para apanhá-la e a estendeu para mim, sem saber como se aproximar sem voltar a ser enxotado. Apanhei a flor de sua mão e a guardei na bolsa, sem a menor vontade de jogá-la fora outra vez. Byakko se arriscou a sentar ao meu lado e, depois de alguns segundos apenas me ouvindo chorar, ele me abraçou.

— Me desculpe... – Repetiu.


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