A Pele do Espírito (versão antiga) escrita por uzubebel


Capítulo 27
Nada em mim acende uma chama


Notas iniciais do capítulo

Oi, pessoal.
Não esperava isso, mas consegui adiantar o capítulo novo em quase quinze dias, YESSSS!!!
Além disso, não sei se vão perceber ou não, mas aumentei um pouco a clasificação indicativa da história para 16 anos? Mas por quê? Porque decidi tratar de algumas coisas sobre o Byakko e sua nova condição de Mortal que eu não poderia tratar com uma classificação PG 13. Não vai ter nada explícito porque nunca foi o objetivo da história, mas agora o Byakko está passando por uma puberdade tardia em pelo menos uns 5 mil anos, e a coisa acabou fluindo enquanto eu escrevia. Sem contar que nosso querido vai ter que aprender a lidar com isso. Espero que seja interessante conhecer esse lado também, e espero que gostem.
Sempre é válido também lembrar que eu gosto de saber o que vocês estão pensando do andamento da história então, quem quiser, deixa um comentário ou conversa comigo por MP, que eu sempre respondo.
Beijos



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— Por quê não podemos dormir do lado de dentro?

Lorena perguntou-me enquanto eu me abaixava para colocar Um e Dois no chão, mas parei para olhá-la.

— Você pode dormir, só não vai gostar de encarar o que tem lá dentro. Não no escuro.

Ela revirou os olhos, incrédula, como se estivesse dizendo isso apenas para contrariá-la.

— O que tem lá dentro?

— Você vai descobrir amanhã de manhã.

Estendi a mão para a bolsa que ela se recusara a me entregar por toda a jornada, pedindo, por favor, que ela cedesse agora. Ela encarou meus dedos abertos por longos segundos, provavelmente avaliando se devia ou não me passa-la, até que soltou um suspiro cansado e a entregou. Abri a bolsa e tirei dela duas cobertas que insistira para Lorena pegar em casa. Uma delas usei para forrar o chão de pedra frio e duro, não por minha causa, mas para tornar a noite ao relento ao menos um pouco mais confortável para Lóris. Foi difícil encontrar um ponto que não estava encharcado pela água de Tâmi, logo abaixo da minha... estátua. A outra eu joguei sobre o ombro dela, para que se agasalhasse.

— Vai esfriar durante a noite, então tente ficar mais perto da entrada da caverna, onde o ar é quente.

Sentei-me no chão, ao lado do cobertor estendido, e esperei que ela se sentasse também. Tâmi havia adentrado a caverna e provavelmente passaria a noite lá, em sua nascente, deixando-nos a sós. Lorena se entregou ao cansaço e sentou ao meu lado, com as costas apoiada numa das patas do felino de pedra, enrolando-se no cobertor que segurava como uma lagarta em seu casulo.

— Pelo menos não é a primeira vez que vou dormir ao relento... – espiei seu olhar perdido em alguma lembrança. – Quando acordei, sem qualquer lembrança, ninguém à minha volta era familiar. Nem Dorothea, que estava ao lado da cama. Eu não sabia onde estava, não sabia quem eram, e não sabia quem eu era. Acordei como se fosse um animal, e me comportei como um. Pulei a janela do quarto e fugi. Dorothea não conseguiu me seguir. Essa é a primeira lembrança que eu tenho...

Lorena pegou sua bolsa e a revirou, até tirar dela um caderno com a lombada costurada. Havia páginas e páginas transbordando com sua caligrafia e até mesmo alguns desenhos.

— Eu passei duas noites perdida na floresta, dormindo sobre as raízes das árvores. Dá pra imaginar que eu também não sabia voltar para casa, ou pra o lugar de onde eu viera – ela parou de folhear seu caderno numa página específica. – Agora que parei para pensar, foi Damon quem me encontrou, na segunda noite. Ele dormiu comigo, me manteve aquecida, e na manhã seguinte me encontraram. Foi assim que ele veio para casa conosco.

Ela virou a página cheia de uma caligrafia desajeitada e infantil, além de alguns rabiscos que se pareciam com um gato preto e branco.

— Foi você quem o mandou, não foi? – Ela perguntou.

Assenti.

— Dorothea veio me pedir ajuda quando você desapareceu, então eu mandei Damon. E percebi com isso que precisaria de alguém para ficar sempre de olho em você. Ainda mais sendo tão nova e estando... completamente perdida. Por minha causa.

Ela voltou a folhear as páginas rapidamente, até se deparar com um desenho e sorrir para uma página específica, aproximadamente na metade do encadernado. As letras que enchiam o papel eram muito mais firmes, o que indicava que ela era mais velha quando escreveu o que quer que estivesse naquela página.

— O que foi? – Perguntei.

Lorena levantou o rosto para me olhar, mas continuava sorrindo.

— Estou rindo das lembranças. Essa página...É sobre você – respondi. – Uma das várias páginas...

—Você... escreveu sobre mim?

— Sim – ela respondeu, constrangida, quando eu tentei me debruçar sobre ela para ver a página. – Quer... que eu leia pra você?

— Olha a cara dele, é claro que ele quer – resmungou Um de seu cantinho.

Devolvi-lhe um olhar repreensivo, mas Lóris riu. Ela pigarreou para chamar minha atenção e começou a ler:

— Eu sabia. Sabia que tinha algo naquele templo, e é um Espírito. Mas ele não parece ser mais velho que eu, mesmo que seus cabelos sejam brancos como os de Dorothea haviam se tornado. O mesmo Espírito que sussurrou meu nome na floresta, então tenho certeza de que não foi apenas um sonho. Ele disse que é a morte, e me olhava como se soubesse dos meus pais. Que bobagem, é claro que ele sabe... Mas ele não disse isso como se tentasse me afastar ou me assustar; ele me olhava como se não tivesse escolhido aquilo, como se não tivesse feito de propósito (levado meus pais). Ele parecia querer pedir desculpas...

Ela se interrompeu, colocando seu cabelo atrás da orelha e passando a mão pelo papel áspero. Lorena me encarou, e depois continuou.

— Quando perguntei seu nome, ele me olhou como se o tivesse deixado cair no chão em algum lugar. Então, depois de um tempo procurando dentro de si mesmo, ele disse se chamar Byakko.

Como se tivesse deixado meu nome cair em algum lugar, tinha sido exatamente assim que eu me sentira quando ela me perguntou como me chamava, naquela época. Eu nem podia acreditar quão perto ela estivera do que eu sentia, desde o princípio. Então, entre as duas páginas que ela mantinha abertas, estavam a papoula branca que eu lhe dera, com as pétalas amassadas, mas ainda exalando seu perfume.

— O que mais você tem guardado? – Perguntei, me referindo aos objetos que ela guardara por toda a vida e agora trazia com ela em sua bolsa.

— A maior parte das coisas eu escrevi – ela respondeu –, e tem alguns poucos objetos que guardei.

Lorena virou o conteúdo de sua bolsa no chão diante de nós, espalhando tudo. Havia várias moedas de madeira que eu sabia que pertenciam ás tradições com as quais ela crescera; uma boneca, que eu reconheci como um objeto feito pelos Thânatis, além de várias outras coisas que ela provavelmente pegara na Praia Velha; três imagens chamuscadas dela com seus pais; sua pelúcia de gato, que com o passar dos anos perdera muito de seu enchimento e de sua antiga cor branca, e agora estava magro a ponto de ocupar tanto espaço na bolsa quanto seu caderno, e parecia estar definhando.

— E também tem seu pingente – ela o puxou de dentro das roupas. – E isso – Lorena puxou outro cordão de seu pescoço, mas esse tinha na ponta uma pedra polida de um tom de azul-turquesa vívido, com alguns veios de azul mais escuro.

Eu não reparara na predra até então, apesar de ter ouvido os comentários que Tâmi e Lóris haviam trocado mais cedo.

— Foi Tâmi quem lhe deu?

— Sim.

— Mas ele lhe disse o que a pedra faz?

Ela levantou uma sobrancelha, sem entender.

— A pedra é mágica também? Só parece uma pedra comum. Bonita, mas comum.

— Não exatamente – Peguei duas maçãs que haviam rolado pela manta que eu estendera no chão, entreguei uma para ela e mordisquei a outra. Seu suco escorreu pelo meu queixo, e Lorena estendeu sua mão para secá-lo.

E lá estava novamente, aquele comichão sob a minha pele, onde quer que ela tocasse.

— A verdade é que os cristais também têm seus Espíritos...

— Essa pedrinha tem um Espírito? – Ela perguntou, como se tentasse imaginar de que tamanho ele seria.

— Não é como você está pensando. Essa pedra, e todas iguais a ela, invocam o mesmo Espírito. Existe um de nós para cada tipo de cristal que você puder encontrar. Quer dizer, eu não sou exatamente como eles... – corrigi-me. – Existe um deles para cada tipo cristal que você puder encontrar.

— Por quê eles são diferentes de você?

— Porque, de maneira ampla, eles têm uma forma física. Diferente de mim, que sou uma persona de algo que não pode ser tocado nem percebido, e cuja antiga “forma física” não passava de uma ilusão poderosa. Eles têm um corpo e cada pedrinha é um pedaço dele. E, através desses pedaços, eles podem se manifestar.

— Mas eu tenho a pedra há anos e nunca vi nenhum Espírito.

— Pode ser que você nunca veja. Esses Espíritos só aparecem para pessoas que possuem determinadas características que eles valorizam muito. Coisas que eles chamam de virtudes...

— Que tipos de virtudes?

— Várias. Cada um desses Espíritos tem aquelas que buscam na humanidade. E, quando encontram um humano que a possua, costumam se tornar seus aliados. Eles aprenderam a admirar certar qualidades humanas antes da maioria de nós...

Estendi a mão, e Lorena me entregou a pedra. Algumas tinham poderes realmente úteis para os humanos, eram capazes de lhes proporcionar habilidades únicas apenas em serem seguradas entre os dedos e, se eu pudesse identificar seu poder, talvez Lorena tivesse uma chance maior quando chegássemos ao reino de meu irmão. A pedra claramente tinha uma afinidade por Lorena, eu podia senti-la se aquecer e agitar quando estava em sua posse, enquanto não tinha serventia nenhuma quando comigo; ficava fria e morta, como uma verdadeira pedra. Não que eu acreditasse que seu poder fosse funcionar para um Espírito como eu, apesar de agora eu ser mortal. Pelo que eu sabia, os Espíritos das gemas eram aliadas dos humanos apenas.

— Aqui, segura de novo – disse, devolvendo a pedrinha. Uma crisocola, pelo que eu havia concluído. Faltava confirmar sua habilidade.

— Só segurar? – Lóris perguntou, confusa.

— Sim.

Diferente dela, que até certo ponto era capaz de ouvir a energia, eu era capaz de vê-la. O Sicum que cada indivíduo produz, a energia que é capaz de gerar magia, envolvia a maioria das pessoas como um manto calmo, um halo de cor e luz. Mas agora, segurando a pequena pedra, o Sicum de Lorena ondulava com uma amplitude muito maior ao redor de seu corpo, e sua luminosidade estava mais intensa. A pedra estava amplificando sua energia. O que seria muito útil, se ela soubesse fazer magia... Me repreendi um instante por nunca tê-la ensinado. A magia não era tão natural para os humanos como era para os Espíritos.

— Você queria aprender a fazer a acender uma chama em sua mão, não queria? Uma chama mágica?

— Sim – ela respondeu.

— Então eu vou lhe ensinar. E a pedra vai lhe ajudar.

— Jura? – Sorriu, jogando seus braços por cima da minha cabeça e me abraçando. – Obrigada!

— Sim... – engasguei, com meu sangue fervendo em todas as partes do meu corpo que tocavam o dela.

Lorena me beijou, como não fazia desde a primeira vez. Foi apenas um resvalar, selando minha promessa em meus lábios, mas também foi o bastante...

— Ehr... eu já volto – disse apressadamente, com o rosto em brasa, enquanto desaparecia de seu abraço num segundo, olhando em seus olhos.

No segundo seguinte, estava muitos metros abaixo da montanha, onde ainda havia árvores, no caminho que Lóris levara horas para percorrer com suas próprias pernas.

Estava acontecendo de novo. Aquilo parecia despertar quando nossos corpos se tocavam, e estava sempre apontando para ela, para Lorena, como uma bússola para o Norte. Meu corpo humano tinha formas embaraçosas de demonstrar desejo, e eu não sabia de forma alguma o que fazer com aquele... fenômeno.

Mas eu aprendera que tocá-lo não era uma maneira de acabar com o que quer que estivesse acontecendo. Tocar no membro só me deixava ainda mais inquieto, cada pequeno afago se espalhava como tremores pelo meu corpo. Esperar era minha única opção. E respirar fundo. E torcer para que ela não tivesse notado...

Comecei a caminhar em círculos até que a excitação passasse, recolhendo gravetos secos no caminho, o bastante para acender uma fogueira. Se ia ensinar Lorena a fazer uma chama, não faria mal ter uma. Isso, eu diria para ela que tinha ido pegar lenha, pois estava ficando escuro e frio, e ela poderia usar a madeira para aprender a acender a faísca.

Sentei-me no chão, com os gravetos sobre minhas pernas cruzadas, enquanto escondia meu rosto em minhas mãos e puxava o ar pela boca com força. Tentei lembrar se Foh me avisara sobre isso, essas reações inoportunas, mas não consegui, apesar de ter certeza de que sim, ela me avisara, provavelmente em um de seus comentários ácidos. Na maioria do tempo era difícil captar tudo o que ela dizia por trás de tanto sarcasmo. Então eu tivera de partir, e ela me alertara que eu não sabia de tudo, um corpo tinha outras vontades além de não morrer de fome nem de sede. Mas eu podia sentir Lorena caindo do penhasco e não tinha tempo para outra lição. E então, com ela em meus braços, eu me deparara sem qualquer preparo com essas ditas vontades.

Levantei minha cabeça, finalmente me sentindo calmo e controlado, pensando que deveria voltar antes de Lorena se preocupar.

Abanei a nuvem branca em que Byakko desaparecera para longe do meu rosto, sentindo seu cheiro fazer cócegas em minha garganta quando eu a inalava.

— O que aconteceu? – Perguntei.

Um e Dois reviraram os olhos, e provavelmente teriam dado de ombros se os tivessem.

— Ah... – dei-me por vencida, me enrolando no cobertor. Logo Byakko voltaria. – Acho que vamos ter que esperar então.

De repente, depois do sumiço de Byakko, o frio parecia pior. Pelo menos antes, com ele sentado ao meu lado, eu estava apoiada em seu corpo e sua pele era quente. Se a temperatura caísse ainda mais durante a madrugada, o que era quase certeza à alguns metros do mar, como ali, eu não sabia se conseguiria dormir no fim das contas. Byakko não sentia frio; ou não com a mesma intensidade que eu, pelo menos. A temperatura não parecia incomodá-lo nenhum pouco, e não era por causa de sua capa grossa, eu tinha certeza, ele simplesmente era diferente. Talvez, quando ele voltasse, eu devesse pedir sua capa emprestada para passar a noite, como quando eu dormira em seu templo e ao seu lado.

Ouvi Um e Dois cochichando entre si. Falavam sobre o Mundo dos Mortos, Yasuko, e sobre sua irmã que estava lá, aprisionada.

— O que faremos quando chegarmos lá? – Dois sussurrou. – Somos inúteis assim, o que faremos?

— Estou pensando...

— E se não a encontrarmos? Às vezes... às vezes seu esqueço seu rosto. Às vezes parece que até isso está se perdendo... Tenho medo de chegar lá e sequer reconhece-la...

— Eu vou estar lá também, entendeu? – Disse Um. – Se você se esquecer, eu vou encontrá-la. E nós a trazemos de volta.

— Mas ela vai saber que somos nós?

— Vai. Ela sempre foi melhor que a gente...

Encolhi-me ainda mais, como se quisesse desaparecer por estar uma conversa que certamente não me dizia respeito algum, ouvindo as aldravas confessando diante de mim suas maiores angústias. Não estavam dizendo aquelas coisas para mim, eu apenas estava perto demais para não ouvir, e mais inquietante ainda era o quanto me identificava com seus temores. Estávamos todos indo recuperar um pedaço de nosso passado que poderíamos jamais sermos capazes de resgatar, não com nossa força e não com apenas a nossa vontade. O pesa da falha sobre nós era avassalador. Eles não tinham um corpo para lutar, eu não era capaz de vencer... Byakko era nossa única vantagem. Será que ele sentia o peso dessa responsabilidade toda? Talvez até um pouco mais, pensei. Se falhássemos, se eu jamais recuperasse minhas memórias, ele nunca se perdoaria, como já não se perdoava por tê-las me tirado, a princípio.

Byakko voltou espalhando mais uma nuvem de névoa ao seu redor, como sempre fazia ao desaparecer ou aparecer em algum lugar. Seus braços estavam cheios de gravetos secos que ele pôs no chão diante de mim, antes de voltar a se sentar ao meu lado.

— Você pegou isso no pé da montanha? – Perguntei.

— Sim.

— Queria que a gente tivesse chegado aqui desse jeito... num piscar de olhos.

— Infelizmente não podia fazer isso. Não acho que humanos possam viajar assim.

— Droga... – Reclamei.

Byakko sorriu.

— Você está com a pedra? – Ele perguntou.

Abri minha palma para mostrar-lhe.

— Certo, você vai ter de segurá-la para fazer o fogo, tudo bem? A pedra vai tornar tudo mais fácil.

Assenti. Ele encarou meu braço a mostra que eu estendera com a pedra, e reparou em meus pelos arrepiados de frio.

— Aqui – disse, tirando sua capa e a jogando sobre meus ombros também. – Desculpe, eu não imaginei que ainda estivesse frio pra você...

Ele pôs a mão nos cabelos da nuca, envergonhado por sua falta de perspicácia.

— Tudo bem – tranquilizei-o, me enrolando no tecido impregnado com seu calor e seu cheiro.

— Agora, a magia. Você está pronta?

— Sim.

— Certo. A primeira coisa que você precisa saber, é como a magia é gerada. E qual é seu combustível. Existem três energias no mundo: a vital, que vem do corpo e da matéria, a mental, que vem da mente e das emoções, e a espiritual, que vem da alma. Essas três energias formal o Sicum, que é a energia que gera magia. E toda essa energia flui ao seu redor o tempo inteiro, energia que você produz. É essa energia que você vai “queimar” para produzir magia. Para fazer sua chama. Entendeu?

Assenti.

— Agora vem a parte difícil... – Byakko suspirou.

— Por quê?

— Porque a magia faz parte dos Espíritos... Ninguém nunca nos ensinou a fazer, e nossa magia é muito influenciada por quem somos. Nenhum outro Espírito pode fazer a mesma magia que eu, da mesma forma que, eu acredito, nenhum homem seja capaz também...

— Então você na verdade não pode me ensinar...? – Perguntei, decepcionada.

— Talvez... Mas a questão é que... eu não posso produzir uma chama. Eu não tenho uma gota de fogo dentro de mim.

— Sério?

— Sério. É estranho pensar que meu poder tem limitações?

— Não acho que seja uma limitação...

— Pelos Espíritos, vocês dois estão me dando náuseas – reclamou Um. – Quer aprender a fazer a bagaça ou não? Se quiser, eu e Dois vamos te ensinar. Pelo menos a gente consegue fazer uma chama.

— A gente conseguia... – corrigiu Dois.

— É, a gente conseguia quando tinha braços. Mas podemos te ensinar.

Eu e Byakko nos entreolhamos, então Byakko deu de ombros e colocou Um e Dois ao meu lado.

— Certo, garota, vamos lá. Se você quiser uma fogueira pra passar a noite quentinha, é melhor prestar atenção.

— Tá.

— O segredo do fogo é focar em tudo o que queima dentro de você. Pode ser o calor do seu corpo, pode ser sua energia...

— Pode ser raiva... – complementou Dois.

— Sentimentos. Podem ser sentimentos – Um continuou. – Você vai ter que encontrar, dentro de você, o que brilha e queima com mais intensidade. Se não puder fazer isso, nunca será capaz de produzir uma faísca sequer.

— Certo – eu disse, franzindo as sobrancelhas.

— Então, quando descobrir isso, você vai focar toda essa energia na palma da sua mão, e vai imaginar que ela queima, como se quisesse que o que vê fosse verdade ­– concluiu Dois.

— Sua vez de tentar.

Pisquei, confusa.

— O que foi? – Byakko perguntou.

— Eu... não tenho ideia de por onde começar...

Ele fechou a mão em torno da minha que segurava a pedra, apertando a superfície fria contra minha palma.

— A pedra amplifica sua energia e vai te ajudar. Você só tem que descobrir o gatilho certo.

— Vou tentar...

— Vai conseguir.

Ajeitei minhas costas contra as rochas atrás de mim, empertigando-me. Pensei na lista que as aldravas haviam me passado, e tentei os itens um a um. Comecei tentando me concentrar no calor do meu próprio corpo, mas a temperatura continuava caindo, e o frio me cercava como um predador determinado, cercando meus cobertores. Nuvens de vapor saiam pela minha boca junto com o ar, e era como se o frio abocanhasse cada pedaço do meu fogo interno à cada respiração que me escapava. Pensei na energia de que Byakko falara, o Sicum, mas mesmo ele dizendo que a pedra que eu tinha nas mãos a estava amplificando, eu me sentia esgotada, oca, sem uma gotinha fluindo por mim. O único sentimento que rondava minha mente era tristeza, desde a conversa que eu presenciara entre os irmãos. Era o único sentimento que, eu imaginava, seria incapaz de acender uma chama. Não havia nada dentro de mim, naquele instante, que queimasse, e chegar à essa conclusão me deixou ainda mais gelada por dentro.

Byakko me observou durante todo o tempo em que eu tentei encontrar algo dentro de mim, sem dizer uma palavra. Não que ele estivesse calmo, eu via em seu rosto que ele se irritava por não conseguir me ajudar ou dar um conselho, mas aquilo estava além do que ele podia. Finalmente, depois de mais de uma hora, eu não conseguia mais tentar, nem disfarçar os calafrios que percorriam meus ombros.  Byakko segurou meu braço, me tirando de meu transe, e me puxou para perto de seu corpo, dando o exercício por encerrado. Ele passou seus braços por dentro da capa, esfregando meus ombros arrepiados para aquecê-los, e depois me abraçou. Além disso, ele me levou para mais abaixo de sua estátua, onde o hálito quente da caverna soprava em minha nuca.

— Você precisa descansar – disse, ajeitando seu corpo abaixo do meu. – Me desculpe pelo frio... Não consigo nem acender uma fogueira para você.

Dei uma risada sem humor.

— Não consigo nem acender uma fogueira para mim mesma.

Byakko levantou sua cabeça para dar um beijo em minha testa.

— Você vai conseguir. Eu, nunca.

Eu estava com meu tronco apoiado em seu peito, e aninhei minha cabeça na curva de seu pescoço, sentindo o cansaço pesar sobre minhas pálpebras, agora que o frio não era a única coisa em minha mente, nem meu fracasso. Nunca tinha valorizado antes o fato de sua pele ser mais quente um pouco que a minha, e de seu coração apressado retumbar em meus ouvidos como música.

— Ainda está com frio? – Ele perguntou, preocupado, apertando mais sua capa em torno do meu corpo.

— Estou bem – respondi, entrelaçando meus dedos enregelados nos dele. – Byakko, tinha algo que eu queria perguntar.

— O que? – Ele me encarou, preocupado.

— É sobre Um e Dois... sobre como eles vão viajar com a gente sem a menor autonomia. Eles querem resgatar sua irmã... Não há nada que se possa fazer sobre seus corpos...? Vou ficar presos naqueles pedaços de lata para sempre? Como vão lutar por sua irmã caçula?

— O corpo deles foi destruído pelo meu irmão, quando arrancou suas almas. Eles nunca poderão recuperá-los, seria... impossível. Eles já me perguntaram isso antes, mas...

— Mas...? Existe uma saída? – Disse, lendo a resposta nas linhas de seu rosto.

— É... existe uma possibilidade...

— O que?

— Você vai ver.


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Notas finais do capítulo

O capítulo está sem revisão, desculpem-me, mas qualquer errinho que virem podem me avisar que vou tentar corrigir, não tem problema. E me desejem sorte porque semana que vem terei banca de TCC e não terei tempo nenhum para escrever... *snif*



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