A Pele do Espírito (versão antiga) escrita por uzubebel


Capítulo 23
Na verdade nós acreditamos


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente! Não deu pra aguentar, terminei de escrever o capítulo e to postando sem revisar mesmo porque foi muita catarse, então relevem, por favor.
Espero que gostem porque saiu do fundo do coração.
Beijos.



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Eu não chorava mais quando Byakko retornou. No entanto, estava sentada em minha cama, abraçando meus joelhos contra o peito. Ele se sentou ao meu lado e esperou que eu dissesse alguma coisa. Minha cabeça pendeu na direção dele e pousou em seu ombro, deixando-o levemente desconfortável, confuso e de postura enrijecida.

— Ehh... – começou a dizer, mas depois pigarreou e, por último, suspirou.

Byakko estendeu os braços ao meu lado e me envolveu neles, aninhando minha cabeça em seu peito.

— Lóris, eu preciso lhe perguntar uma coisa...

Acenei com a cabeça, autorizando a pergunta.

— Quanto tempo... – ele continuou. – Quanto tempo até Isméria vir buscar o que lhe foi prometido?

— Três meses... – murmurei baixinho, não querendo que ele ouvisse

Em seguida, senti seus músculos se tencionarem e um ronco encher seu peito. Ele me abraçou mais forte.

— Tão pouco... Acho melhor não desperdiçar seu precioso tempo então...

— Do que você está falando? – levantei a cabeça para ver seu rosto.

— Eu vou te contar uma história – disse –, e depois recuperaremos suas memórias.

Byakko pediu para ir até seu templo. Queria conversar; e queria ver com seus próprios olhos. Ele disse que tudo faria sentido quando chegássemos. Também era a primeira vez que eu entraria, depois de ter visto o lugar ser destruído.

Ele subiu as escadas lentamente e passou a mão pelas pilastras enegrecidas, tentando tirar um pouco da fuligem dos desenhos em baixo relevo. As portas estavam tombadas para dentro e parei um segundo para imaginar o que teria acontecido com as aldrabas se eu as tivesse deixado para trás. Entramos, o teto em alguns pedaços havia ruído e o brilho da lua entrava pelos espaços, iluminando fracamente o salão. A água das fontes secara, o altar fora golpeado e destruído, tudo o que havia de valioso fora saqueado.

— Acho que as pessoas matariam umas ás outras para pôr as mão naquele enorme rubi do quarto... Por sorte você o havia levado – eu disse.

Byakko pôs a própria mão sobre o peito, distraído.

— Em que você está pensando?

— No passado – respondeu. – Venha, vamos procurar um lugar para nos sentarmos.

Seus olhos no escuro brilhavam com a luz da lua. Ele se virou e continuou a caminhar, e tentei segui-lo, mas tropecei num grande pedaço de pedra e cai.

— Você está bem? – Byakko perguntou, voltando até onde eu caíra.

— Eu não me machuquei – respondi.

— Desculpa, eu deveria ter imaginado que estava escuro demais para você enxergar – ele me estendeu sua mão e me ajudou a ficar de pé. – Venha comigo – disse, me puxando consigo. – Eu sei onde podemos conversar.

Chegamos ao seu quarto e ele atravessou o cômodo sem encarar a cama e a mesa destruídas. Abriu a janela e pulou para fora.

— Aonde nós vamos? – perguntei, pulando também.

— Para onde eu costumava ficar para ver o céu. Lá em cima – apontou a abóbada.

Olhei em volta, procurando uma maneira de subir, talvez uma escada, mas não havia nada. O telhado era alto demais.

— Eu não sei se consigo chegar até lá...

— Eu levo você – ele disse.

— Mas como?

Byakko estendeu os braços para mim.

Suspirei.

— Isso é mesmo necessário?

— Seria algo especial para mim... – esfregou a nuca, e a cara que ele fez me deu vontade de abraça-lo.

— Tá bom...

Ele se aproximou de mim, até eu estar cercada pelo seu cheiro. Pediu que eu segurasse firme em seu pescoço, enquanto agarrava minha cintura com um braço e com o outro apoiava meus joelhos perto da lateral de seu quadril. Eu era capaz de sentir seu hálito na minha nuca e me peguei refletindo como nunca reparara no ritmo de sua respiração antes. Eu tinha quase certeza de que, antes dele partir, ele não respirava, nem suas mãos eram tão cálidas, nem o tocar era tão intenso.

— Você pode fechar os olhos se quiser – Byakko disse.

— Por quê eu fecharia os olhos?

— Não sei. Vocês estava de olhos fechados enquanto caía do penhasco.

Meu constrangimento dançou em minha garganta e me fez engasgar.

— Anda logo!

Ele sorriu, abaixou-se para pegar impulso e pulou. Por um segundo, parecia que eu estava voando. E então começamos a descer e ele pousou suavemente na abóbada de pedra, como se ele, e principalmente eu, não pesasse nada.

Estar perto dela era a coisa mais arrebatadora que eu já sentira, e a carne parecia apenas amplificar tudo. Foh me alertara que um corpo mortal tinha anseios que eu jamais sentira antes, e que de repente poderiam me consumir. Lorena parecia despertar um estranho comichão sob a minha pele, um calor em meu ventre, e, ao mesmo tempo, acalmava o monstro dentro de mim, o monstro que eu chamava de solidão. Cada toque dela na minha pele abalava meu corpo com pequenos calafrios, e curava minha alma; cada toque consegui me desconstruir inteiro, e me tornar alguém diferente, alguém que experimentara mais do que imaginara. Alguém melhor.

Sempre que eu a tinha nos braços, sentia seu cheiro e ouvia sua voz tão perto do meu rosto, eu não queria que o momento passasse... Foi a única coisa em que consegui pensar quando a resgatei e subíamos o penhasco, ela se segurando em minhas costas com força. Sim, eu estava aliviado por ela estar viva, por estar bem, mas de repente a sensação de seu corpo contra o meu era tudo em minha cabeça, e isso me assustava um pouco. Ou me assustou quando eu voltei a ter consciência dos pensamentos em minha mente. Lorena me indagara, quando chegáramos ao topo, sobre o porquê da minha respiração acelerada, e eu dissera que estava nervoso, exaltado. Talvez devesse ter respondido que era medo, medo de perde-la, mas nem eu conseguia acreditar nessa mentira. Era muito mais do que isso, era algo em meu corpo, algo que eu ainda não entendia. Meu corpo pedia por algo que eu ainda não sabia como ter.

A mesma sensação me dominava novamente, agora com ela nos braços. Meu coração tão novo martelava em meu peito, fogo corria por minhas veias, minha garganta sentia algo como sede. Era uma sensação que se assemelhava tanto com a raiva que me deixava confuso, e, no entanto, esse sentimento não me envenenava por dentro; ele me curava. Eu soltei Lorena, nós dois já seguros em cima do telhado, e a distância entre nós era insuportavelmente fria.

Ela se sentou sobre a abóbada e eu me afastei um passo antes de me sentar ao seu lado. Precisava tirar essas coisas da minha cabeça, precisava divagar.

— Dava para ver a cidade inteira daqui... – eu disse, preparado para lhe contar toda a verdade sobre seu passado e seu destino. – Centenas de anos atrás, o mar ficava muito mais abaixo. Havia pessoas, casas de pedra e praias de areia branca. Havia vida...

Apanhei um pequeno cascalho que havia ao meu lado, que a maré ás vezes trazia consigo quando subia e cobria o templo de água, mas sem jamais entrar, e o joguei longe, nas ondas adiante.

— Mas tudo se foi por causa do meu irmão e sua estúpida aposta...

— Você nunca falou sobre ele antes... – Lorena comentou.

— Você não parece surpresa com o fato de que eu tenho um irmão.

— Bem... – ela esfregou os braços.

— Entendi... Um e Dois te disseram – dei meu melhor palpite, e ela confirmou com um aceno. – Não é como você imagina, não é como sangue... Nem nós mesmo sabemos explicar. Yasuko e eu só... surgimos ao mesmo tempo. Nós seríamos como gêmeos, do ponto de vista do seu mundo.

— Mas não é assim tão simples – ela completou

— Não... definitivamente não. – Optei por deixar este assunto de lado por enquanto e prosseguir com a história. – O que importa é que meu irmão é alguém bem.. arrogante. Então, quando Isméria lhe propôs uma aposta, ele não pensou um segundo em recusar, ainda mais diante do teor da aposta... Isméria acreditava que meu irmão seria capaz de se apaixonar por uma humana, mesmo que Yasuko nutrisse um profundo desprezo pela humanidade. Meu irmão, que sempre enxergou sentimentos como uma fraqueza mortal e se imaginou estar acima de tal falha, aceitou a aposta... E perdeu. No entanto, as coisas não saíram exatamente como Isméria imaginava. Tudo não passava de um truque para poder tomar o poder que meu irmão possui, ter nas mãos o Reino dos Mortos e incontáveis almas mortais.

Talvez pareça que eu estou mudando de assunto, mas tem algo mais que você precisa entender. A história de dois Espíritos que se tornaram mortais... por amor.

Então, Byakko me contou a história de Feng e Huang e como, depois deles, por benção ou maldição do Universo, Espíritos que se apaixonam tornam-se mortais. Feng e Huang foram apenas os primeiros, ele disse, e houveram outros que não se tornaram mortais pelo mesmo motivo; alguns haviam abdicado de sua condição para ajudar a humanidade, guiá-la em seu desenvolvimento. Mas, em todos os casos, as pessoas eram o motivo central da “queda”, como ele chamava. Os Espíritos caíam porque se fascinavam por nós. Porque éramos mais parecidos do que os Espíritos estavam dispostos a admitir. E, para os que compreendiam isso, os limites entre mortalidade e imortalidade se dissolviam lenta e inexoravelmente.

— Isméria queria o trono de meu irmão, então tentou torna-lo mortal, como fez com Feng e Huang. Mas, a transição completa jamais aconteceu com Yasuko. Ele jamais admitiria as semelhanças, os sentimentos... Então Isméria ganhou a aposta, mas perdeu seu trono, e ela não é do tipo que gosta de perder... Então, furiosa, ela foi atrás de sua parte na aposta; se Yasuko perdesse, ela levaria todas as vidas da cidade...

Então eu entendi o rancor de Byakko.

— Ela pediu que o mar subisse e matasse todos. Todas as almas lhe pertenciam pela força de sua aposta com meu irmão. Então uma onda gigantesca veio e destruiu tudo, matando a todos... Bem, quase todos. Porque na hora do massacre, uma única garota estava abrigada dentro do meu templo, e templos são santuários intocáveis, mesmo para outros Espíritos. Nenhum Espírito entra no templo de outro sem permissão; nenhum destrói o templo de outro Espírito. Então, quando a onda veio, ela desviou do templo. O Espírito do Mar jamais se atreveria a desrespeitar essa lei... E apenas a garota sobreviveu. Seu nome era Minty. Quando cheguei e vi todos mortos...

Byakko pareceu engasgar. Seus punhos estavam cerrados e suas pupilas estavam contraídas, parecendo cicatrizes finas. Cicatrizes como as que ele trazia na alma e eu agora era capaz de entender. Me aproximei dele, sentando-me imediatamente ao seu lado. Estendi meus braços e toquei seu ombro com relutância, não sabia como ele reagiria, pois imagens horríveis pareciam se passar no fundo de seus olhos. Mas, diante do meu toque, seus músculos pareceram relaxar minimamente, e tomei coragem para abraça-lo.

— Eu nunca entreguei as almas à Isméria... Cinco mil almas, e ela não teve nenhuma delas naquela noite. Por vingança, como eu não lhe dera o que queria, ela jurou perseguir a garota que sobrevivera... por toda a eternidade se fosse preciso. Mas ela teria a vida dela, e a de seus filhos, em suas mãos. Eu não sei se você percebeu, mas... Você é descendente dela. De Minty. Por isso Isméria matou seus pais e tentou matar você, inúmeras vezes. Porque eu não lhe dei o que era dela... Eu havia jurado para Minty que protegeria ela e toda sua família da ira de Isméria, e no entanto, em algum momento, eu sempre falhava...

O corpo de Byakko sacudiu sob os meus braços e eu vi algo que nunca imaginara: eu o vi chorar. E ele chorava como uma criança...

— Quando cheguei e encontrei sua casa em chamas, eu me desesperei... Eu era capaz de sentir que falhara mais uma vez, eu era capaz de sentir que seus pais estavam mortos. Mas então, eu ouvi você chamando. E tirei você de lá. Você não conseguia entender quando eu dizia que seus pais nunca voltariam, e era culpa minha... Então, quando você pediu pra fazer a dor passar... eu fiz você esquecer. Eu achava que isso te pouparia do sofrimento por alguns anos, até estar preparada para entender. Mas quando chegou a hora de lhe devolver as memórias eu senti medo... Eu havia me aproximado tanto de você, que temi que a verdade fosse te fazer me odiar tanto quanto eu me odeio... E ironicamente foi ter te privado da verdade que nos afastou naquela noite. Eu sinto muito, Lóris... Me desculpa...

Foi nesse momento que eu percebi que... não havia nada para ser dito. Não havia nada que eu pudesse dizer. Byakko se culpara por anos por ter acabado com minha vida ao tentar me proteger. Muito antes disso, ele realmente se culpava por ter jogado a Ira de Isméria sob a minha família ao se recusar em lhe dar milhares de vidas inocentes, e eu jamais o admirara tanto antes. Ele podia ser incapaz de ver, mas eu via, como ele não era a razão do mal; se o mal era uma grande rocha, ele lutava há séculos para não deixa-la rolar montanha abaixo. E eu o amava... Eu o amava por tentar. E o amava por não desistir. Por não desistir de uma vida sequer...

Não havia palavras naquele momento que concertassem anos de culpabilização e sofrimento, mas eu não podia desistir.

­– Tudo bem – eu disse. – Vai ficar tudo bem...


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