A Pele do Espírito (versão antiga) escrita por uzubebel
Notas iniciais do capítulo
Como sempre, demorei bastaaante à escrever. Mil perdões, mas à cada ano a faculdade fica mais louca. Bem, espero que gostem. Beijos.
Naquela noite, depois de Dorothea finalmente se acalmar e me deixar dormir – sob sua constante vigia, diga-se de passagem -, eu tive um sonho como nenhum outro antes. Tão nítido quanto a própria realidade e mais vívido que meu passado, que recentemente decidira voltar em pequenos e raros flashes fugidios.
Eu sentia a pedra áspera e fria sob meus pés descalços. A brisa com cheiro de mar esvoaçava meus cabelos e vestido branco que aparentemente fora costurado para outra pessoa, anos mais velha e mais encorpada que eu, mas belo da mesma forma. Atrás de mim estava o templo de Byakko, mas adiante o mar estava mais distante do que a maré mais baixa que eu já vira, e entre ele e o templo, onde eu antes só vira rochas e ruínas, havia uma cidade. Não algumas casinhas, como o lugar onde eu cresci, mas um grande aglomerado de construções de pedra clara e polida, com milhares de janelas que começavam a se acender com o crepúsculo.
Do alto, onde eu estava, observei pessoas vertendo sobre as ruas, segurando fogo nas mãos e iluminando a noite. Não, não velas, mas uma pequena chama que flutuava em suas palmas abertas. Eu quase conseguia ouvir o ar zumbindo com o que Byakko chamara de... magia. Todas aquelas pessoas caminhavam em direção ao templo, como que entoando um mantra.
Então, um vento muito frio soprou; do tipo que parece arrancar o calor até dos ossos. E vi no horizonte um grande pedaço de escuridão se levantar; um pedaço que eu não sabia dizer se era céu, ou se era mar. As pessoas gritaram e finalmente percebi quão colossal era a onda que se aproximava.
Oh, céus, vai engolir a cidade inteira.
Todos correram para o mais alto que conseguiram, mas o mar rugia como uma centena de feras vorazes, e corria ainda mais rápido. Quando vi a onda mastigar as casas mais próximas à praia e arrotar os destroços, percebi que era inútil correr. No entanto, imediatamente uma voz gentil em minha cabeça disse o contrário:
Fuja!
Vi uma centena de chamas se apagarem num suspiro; centenas de últimos suspiros. E corri. O templo, já tão familiar, estava à apenas alguns metros de mim, mas as pedras no caminho são irregulares, escorregadias e cortam meus pés descalços. Não consigo correr rápido o suficiente.
Subindo a escadaria, eu caio, tropeçando nos meus pés ensanguentados. A onda se avultava muito acima da minha cabeça. Olhei para trás, ouvindo-a quebrar, e fechei os olhos. Mas não se fez silêncio... Ao invés, eu ouvia um som alto de água escorrendo e batendo contra as pedras.
Quando abri meus olhos, simplesmente vi a onda partida ao meio, abrindo se diante do templo como o fluxo de um rio faz diante de uma rocha posta em seu percurso. Era como se a água não pudesse tocar seu solo consagrado e desviasse. Como se a onda fosse senciente...
Corri para dentro, assustada, as portas se fecharam e tudo escureceu. Um rugido me acordou.
– Ei, psiu.
Esfreguei os olhos, ainda sonolenta.
– Ei, Lorena.
– Ahn?
– Você já pode sair? - uma cabeça branca apareceu na minha janela, e seus olhos prateados brilhavam como luas.
– Byakko? – O céu ainda estava escuro e tudo estava silencioso. – O quê está fazendo aqui no meio da madrugada?
– Vim ver se você ainda está presa.
– Presa? – Bocejei. – Ahh, você quer dizer de castigo... Já virou o dia?
– Ainda não – ele disse.
– É, então ainda estou “presa”. Pelo menos até amanhã. Agora volte a dormir... – deitei-me.
– Mas eu não durmo.
Levantei-me.
– Não dorme? – Perguntei.
– Não.
– Mas como você descansa? Com o quê você sonha?
– As pessoas morrem o tempo todo, não durmo. E os sonhos só visitam os mortais...
– Oh... Eu não imaginava... – desculpei-me.
– Tudo bem, - deu de ombros, subindo e sentando-se na minha janela, de frente pra mim. – Talvez um dia você os veja.
– Ver o quê?
– Ora, os sonhos. São como luzes no céu – explicou. – É Mab, um Espírito como eu, que os espalha pelo mundo. As pessoas esperam por ela, quando dormem. Às vezes ela lhes diz coisas... Os mortais não gostam tanto de mim... Eu sou o fim de seus sonhos.
– E como é?
– Eu conheço todas as almas. A maioria já ceifei diversas vezes e vou encontra-los de novo. Sou apenas uma parte do ciclo.
– Mas então por quê se preocupar com a morte?
Byakko riu.
– Porque a memória dos mortais é tão curta quanto sua história.
Bocejei novamente.
– E você vai ficar aqui?
– Vou esperar até você estar livre, sim. – Respondeu.
– Mas você não dorme. O quê vai fazer pra esperar o tempo passar?
– Ora, mas por quê eu esperaria o tempo passar quando posso viver o tempo passando?
Esfreguei os olhos, confusa com as coisas que ele dizia.
– Tá, então eu também vou ficar acordada.
– Não, você precisa dormir. Eu não devia ter vindo aqui.
– Mas eu acordei com um pesadelo... Nem foi culpa sua. E estou com medo.
– Durma. Vou pedir à Mab para que te dê um lindo sonho... nada de pesadelos. E então amanhã, quando estiver livre, você poderá me contar como é sonhar. E vou te mostrar como são os sonhos correndo pela noite.
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