A Pele do Espírito (versão antiga) escrita por uzubebel


Capítulo 13
Porém, Apesar de Tudo, Alice Estava Certa...


Notas iniciais do capítulo

Meu Deus, mil desculpas por ficar tanto tempo sem postar... Primeiro trabalhos finais, depois congresso e, terceiro, bloqueio criativo. Mas obrigada por quem esperou e não desistiu de mim nem da história. Se é que alguém não desistiu...
Além disso, queria agradecer à Thakyra, que enviou a minha primeira recomendação, e à todos que comentaram nesse meio tempo, inclusive a Anne, primeira Beta a comentar essa história. E, finalmente, um beijo pra todos os leitores.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/497984/chapter/13

– Bom dia... – Dorothea me cumprimentou quando entrei correndo na cozinha.

– Onde estão os presentes? – perguntei, eufórica.

Ela riu: - Na entrada esperando por você, como sempre.

Corri para fora e peguei a sacola colorida pendurada na porta. Alguns objetos chacoalharam lá dentro, depois de me sentar à mesa da cozinha. Queria ver logo...

– Mas antes disso, aqui – Dorothea interrompeu meus pensamentos, entregando-me um caderno novinho com um laço de fita em volta. –Parabéns, mocinha.

– Ah, não... Não acredito! – peguei-o nas mãos como a um tesouro. E era. Papel, na ilha, era coisa rara. Com alguma sorte, mercadores do continente traziam algumas folhas em seus navios, mas ainda assim eram caras demais. – Você é o máximo! – abracei-a. Eu não sabia o quê ela dera em troca do caderno, mas devia ser valioso.

Vasculhei meus bolsos e peguei uma das várias moedas de madeira que os enchiam. Em verdade, elas nada valiam; eram esculpidas pelo aniversariante com alguns dias de antecedência, para retribuir os presentes que por ventura recebesse. Também era uma maneira de mostrar quem realmente lhe é importante. Os tostões de madeira que eu já ganhara estavam todos guardados entre os meus tesouros... Entreguei um à Dorothea.

– Não se incomode comigo, juntei muitos desses nessa vida – mas ela pegou a moeda. – Anda logo, veja o quê mais você ganhou.

Meti a mão na sacolinha de presentes e peguei o primeiro que toquei. Os presentes, na ilha, nunca eram entregues diretamente ao aniversariante, mas deixados na porta de sua casa, em uma sacola posta durante a noite, antes que o aniversariante acordasse. Se ele acordasse antes de todos os presentes terem sido depositados, era sinal de mau agouro.

– É um espelho? – Dorothea perguntou.

Abri o estojinho de prata gasta e escurecida e encarei meu reflexo no espelho redondo do lado de dentro; mas, sem dúvida, não era o meu reflexo que ele estava esperando. O espelho pertencera à mãe de Alice, mas ela morrera meses atrás, poucos dias depois de ter presenteado a filha com o objeto, em seu décimo segundo aniversário. A mesma idade que eu completava agora...

Fechei o espelho e o guardei. Teria que conversar com Alice sobre isso mais tarde.

– O quê mais você ganhou?

Pincei outro presente para fora do saco. Encarei a cópia em madeira do amuleto de Donnie; era claramente um trabalho amador, a madeira fora castigada pelas ferramentas na tentativa de recriar o totem de pedra original, mas justamente por isso reconheci na hora quem era o responsável. Consegui imaginar nitidamente Ed aprendendo a esculpir com seu avô, e depois praticando na calada da noite, apenas com a luz de uma vela, já que ele vinha passando muito tempo com o pai e os irmãos mais velhos, pescando em em alto mar. Histórias... a história por trás dele só tornava o presente mais precioso para mim.

Dorothea voltou até a cozinha, me deixando sozinha com o resto dos presentes. Toquei um deles, no fundo do saco, e minha cabeça se encheu com um zumbido alto, que eu ouvia cada vez mais alto e frequentemente com o passar dos anos. Eu não sabia o quê ele significava, talvez alguma intuição, mas com o tempo eu aprendera a empurrar o ruído para o fundo da minha mente, para que não abafasse os meus próprios pensamentos.

Puxei o presente para fora e me deparei com o amuleto original de Donnie.

– Fica esperto! – joguei uma moeda de madeira para Ed, que a apanhou no ar, sem se desequilibrar da pedra escorregadia em que se sentava.

– Fácil demais, Lóris – ele jogou a moeda pra cima e abriu o bolso no peito da camisa de mangas longas, onde ela caiu suavemente para dentro. – A Alice é quinze centímetros mais baixa que você e joga uma pedra muito mais longe – desdenhou.

Alice bufou em seu cantinho, sentada na areia da praia e oculta pelos pedregulhos em que Ed se sentava, enquanto via, cabisbaixa, as ondas tocarem seus pés. Em quatro anos, eu crescera muito mais do que Alice, e mais até do que Ed. A diferença entre ele e eu era sutil, mas a diferença entre mim e Alice foi ficando cada vez maior, apesar de sermos ambas magrelas, à partir dos dez anos de idade. Sua mãe – falecida mãe – também sempre fora uma mulher pequena...

– Você sabe que não precisa usar isso, né? – Ed apontou o amuleto que me fizera, pendurado no meu pescoço. – Ficou horrível... E eu sei que o Donnie te deu o original. Ele já pensava nisso antes mesmo daquela noiva dele dizer que não haveria casamento se ele não se livrasse “dessa porcaria amaldiçoada”... Aquela bruxa! – disse ele, contrariado, e voltou a apontar a réplica em madeira. – Sério, joga isso fora.

– Opa, nem pensar! – fechei os dedos em volta do amuleto. – O presente é meu e eu faço o que quiser com ele, e hoje eu acordei com vontade de usar ele pendurado no pescoço – mostrei-lhe a língua. – Agora pegue sua moeda e pare com toda essa autopiedade. O original está muito bem guardado... – Completei. Guardado onde não embaralharia meus pensamentos toda vez que me aproximasse.

Ed fez uma careta.

– E a minha moeda? – Alice finalmente disse algo.

Dei volta nas pedras e me ajoelhei diante dela. Não importava que as ondas estivessem molhando a barra da minha saia. Puxei o espelho da trouxa que trazia à tira-colo, cheia de moedas de madeira, e lhe devolvi.

– Não posso ficar com ele. Toma.

Ela encarou o objeto com a tristeza de um barco à deriva, depois desviou o olhar e apertou os braços contra o corpo.

– Eu não quero isso.

– Mas, Alice..., é o espelho da sua mãe.

– É por isso que eu não quero! Você não entende. Todas as manhãs eu acordo pensando se esse pesadelo terá acabado, mas não... não vem nenhum cheiro de comida da cozinha, meu pai não consegue desviar os olhos do chão, meu irmãozinho chora e o espelho zomba de mim. Ele me faz tão igual à ela... – Alice chorou. – Meu pai às vezes me encara como se eu fosse ela, mas a minha mãe não vai voltar e você não entende. Você nem se lembra dos seus pais, seus rostos não te atormentam...

– Alice! – Ed a repreendeu.

– Tudo bem se você não quer o espelho, – ela o tomou das minhas mãos paralizadas, eu estava em choque, - ele pode ficar com a minha mãe! – e jogou-o longe, no mar.

Vi o espelho rodopiar no ar e ser engolido por ondas enormes, impulsionadas pelo vento forte de uma tempestade que se aproximava. Alice se virou e correu para longe. Depois disso, tudo aconteceu muito rápido.

Ed tentou segurar Alice, mas ela fugiu; e quando voltou a se virar para mim, provavelmente para dizer que Alice estava errada e que não deveria acreditar naquilo, eu já pulara na água gelada.

– Lorena! – ele gritou

O choque térmico contraiu todos os músculos do meu corpo; o inverno já se fora à pouco tempo, mas deixara resquícios para trás, como a água fria, e a tempestade apenas baixara mais a temperatura. Quando finalmente obriguei meu corpo a sair do torpor e rompi a superfície da água, tomando fôlego, uma onda enorme me afundou outra vez. Abri os olhos, mas a água normalmente clara e esverdeada da ilha agora estava suja e opaca com toda a areia que o mar revolto levantava. Eu não via o espelho em lugar algum, e mal via minhas próprias mãos diante do corpo. A força da tempestade, mesmo ainda distante da costa, me puxava para o auto-mar e, sempre que eu tentava respirar, ondas maiores me faziam engolir água salgada.

Eu sabia nadar... Qualquer criança lá sabia, vivíamos num minúsculo pedaço de terra cercado por uma imensidão de água; éramos ilhéus, pescadores. Mas, naquele momento, nadar era inútil. O mar me dizia isso e chamava meu nome, enquanto invadia meu corpo.

Porém, apesar de tudo, Alice estava certa...

No último instante, tive a sensação de que estava sendo observada e que, quem quer que fosse, estava profundamente satisfeito.

Mas, então, eu me lembrei da luz...


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!