A Pele do Espírito (versão antiga) escrita por uzubebel


Capítulo 11
Tâmi e Thânat


Notas iniciais do capítulo

Queria agradecer a quem chegou agora, mas já se fez presente. Esse capítulo é (sempre) para os leitores, mas um beijo especial para quem comentou/favoritou/acompanhou a história nessas últimas semanas.
Espero que gostem.



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A água murmurava ao passar entre as pedras, a caminho do mar. Se havia um lugar na ilha para aquietar o espírito, era aquele: havia apenas uma fonte de água doce em toda a ilha, além da chuva , um rio que nascia numa gruta pequena em um pico afastado e, por ser tão vital a todos, eram sagrados o rio e sua nascente, e um templo fora dedicado ao seu Espírito e oferendas eram-lhe enviadas frequentemente. O rio descia o pico, atravessava bosques e encorpava aos poucos, mas o lugar a que eu me referia era sua foz. O Tâmi, como era chamado, desaguava numa praia cercada por rochedos, então a água saltava quinze metros e encontrava a areia na forma de uma cascata fina como uma ducha. A maior parte do fluxo do rio ficava represado nos rochedos acima, e a água transparente empoçava-se entre as rochas escuras, formando piscinas naturais e corredeiras. Encarei os peixinhos que nadavam ao redor dos meus pés descalços. Eu só não queria encarar o caderno no meu colo...

Um vento forte jogou folhas secas e areia no meu rosto, abriu as páginas do caderno e soprou a papoula branca que eu guardara para longe. A flor caiu na água e foi carregada pela correnteza rapidamente. Pulei de pedra em pedra tentando alcançá-la, mas a água era mais veloz. Então, o rio parou; a correnteza, a água parecia congelada no tempo, como numa pintura ou fotografia. Mergulhei um dedo na água e os peixinhos fugiram, mas a superfície sequer ondulou.

De repente, uma cabeça pálida emergiu diante de mim e o susto quase me derrubou da pedra em que eu me equilibrava. A criatura não tinha qualquer pelo no corpo e, ao invés de cabelos, água brotava de sua cabeça e escorria por seus seios pequenos e nus, até se juntar ao fluxo petrificado do rio. Ela estendeu seu braço muito magro e comprido e apanhou minha papoula que flutuava , estática, na água; depois, abriu minha mãe com cuidado e a colocou lá, fechando meus dedos em seguida. Os dedos dela contra a minha pele eram tão gelados quanto o rio.

– Cuidado com seu presente, criança – sua voz era fina e baixa. – Não é sensato se desfazer dele.

– Presente...? – gaguejei.

– Ora, você não percebeu? – olhei no fundo de seus olhos leitosos, sem íris ou pupilas. – Onde mais já viu flores assim?

Sim, eu sabia... Encarei o nome na página aberta do caderno. Ela sorriu.

– Vejam só, que menina esperta...

– E quem é você?

– Pense de novo..., você sabe meu nome – ela empurrou minha testa com um dedo molhado, e uma gota d’água escorreu pela ponta do meu nariz até pingar de volta para o rio de correnteza restaurada.

– Tâmi... – respondi, insegura, mas ela confirmou com um aceno de cabeça. – Você é o Espírito do rio.

– Isso, menina esperta. Mas você ainda não se lembra de mim, não é?

Neguei. Tâmi se inclinou, apanhou uma pedra verde-azulada do fundo do rio e a entregou para mim.

– E agora – ela perguntou -, do quê você se lembra?

Encarei a pedra turquesa na minha palma até uma tontura me dominar. Eu vi a imagem se ondular e distorcer e percebi: tontura? Não, eu apenas estava vendo a pedra submersa no leito do rio. Então, mãozinhas gorduchas mergulharam na água tentando alcançá-la , mas a água enganava meus olhos de criança, fazendo a turquesa parecer ao meu alcance, quando na verdade não estava. Continuei a me inclinar mais, e mais, e mais...

Alguém me empurrou. E quando tentei me levantar para respirar, agarrando-me às pedras, minha cabeça foi empurrada de volta para o rio. E a seguraram mais, e mais, e mais...

Senti meus pulmões se encherem de água, a dor era lancinante, o rosto de Tâmi surgiu diante dos meus olhos pouco antes da minha vista começar a escurecer. Ela estendeu as mãos para mim com um sorriso cuidadoso nos lábios, então ouvi um rugido colérico, mas abafado pela água enchendo meus ouvidos, e depois... Nada.

Arqueei o corpo e tossi como se ainda estivesse me afogando, a lembrança da água me queimando por dentro ainda era vívida... Lembranças, algo com a qual eu não estava habituada.

– Ora, você se lembrou...

Sentei-me na rocha molhada, ainda me sentindo fraca.

– Eu ia me afogar – chorei.

– Bem...

– Como eu não morri?

– Eu tirei você da água.

– Por quê?

– Eu devia... Devo... – corrigiu-se – alguns favores. Mas eu não sou a pessoa certa para responder suas perguntas... – Tâmi fechou meus dedos em volta da turquesa. – Fique com a pedra, é uma conexão com o passado que você tanto quer recuperar, e eu tenho muitas mais no meu rio. Quem pode esclarecer tudo está mais perto do que você imagina...

– Mas você não vai me dizer...

– Não.

– Pode me dizer outra coisa então? – perguntei.

– Talvez.

– Alguém tentou me matar naquele dia, não é?

O Espírito hesitou.

– ...Sim.

– Mas foi a única vez... ?

Tâmi suspirou.

– Não, pequena Thânat.

Enfiei a turquesa no bolso e peguei meu caderno no chão, com a papoula novamente entre as páginas.

– Meu nome é Lorena, e não tha...

Ela beijou minha testa e afundou de volta no rio.

– Eu sei...


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