A Pele do Espírito (versão antiga) escrita por uzubebel


Capítulo 10
A Morte Tem seus Próprios Fantasmas




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O templo inteiro estava cheio de vultos. De vozes. De passado...

E eu me perdia..., não; eu me afundava naquelas lembranças como um náufrago. Só que não havia ar puro pra mim. Não ali.

Passei pelo salão e cada passo meu era o desenrolar de centenas de anos de história, o começo e o fim de milhares de vidas, e de tantos amores quanto. Via pessoas, ouvia seus sussurros e a música ao fundo; era dia de festa. Mais uma vez eu assisti a cada festival dos últimos cinco mil anos, em um piscar de olhos.

Com mais um passo, tudo se encheu de água, e os gritos foram abafados antes mesmo de escapar das gargantas. Senti cada vida ali, naquela noite, sendo engolida pelo mar, e as ondas me sussurrando desculpas, aquilo não devia ter acontecido...

Não, não devia ter acontecido...

A um pequeno passo das portas duplas, as imagens começaram a sumir. Cada vida naquela noite fora ceifada..., menos uma. E agora ela me encarava com seus olhos negros gentis. O último fantasma no salão.

Ela apoiou as mãos no meu ombro enquanto se abaixava à mesma altura do meu corpo infantil.

– Não precisa sorrir pra mim – disse-lhe.

Discordando com um gesto displicente, ela tocou meu rosto carinhosamente. Seus lábios formaram palavras mas, com um último suspiro, seu vulto também se foi.

Apoiei a testa nas portas, apesar de não ser capaz de sentir o toque da madeira na pele, nem o cansaço pesar nos ombros, nem dor. Sem ser capaz de sentir o mundo.

– Como será que ela está? – sussurrei.

– Ah, bem, senhor... – Um disse através da porta.

– Byakko – Dois o corrigiu.

– Sim – pigarreou, - Byakko, senhor... – velhos hábitos eram difíceis de perder. – Bem, nós não sabemos.

– Ela não voltou...

– Desde que o senhor a expulsou – concluiu Um. – O senhor não vai mais... vê-la? Não saiu do templo desde então, sempre revivendo aquelas imagens... Não é perigoso deixá-la longe de suas vistas?

– Damon vai cuidar dela... Eu prometi a Dorothea; tenho que me manter afastado. Tudo vai voltar a ser como antes...

–Mas, senhor – Dois me interrompeu, - foi ela que o encontrou. Sua promessa não foi quebrada.

– Ninguém que eu não queira me encontra. Ninguém! Ela pode ter vindo até aqui sozinha, mas fui eu que abri a porta. A culpa é minha por me envolver mais uma vez...

Mas então O QUÊ eu queria? Anos me escondendo, me mantendo afastado, como se pudesse me redimir por isso. Eu aprendera, de maneira dolorosa, o quanto as vidas humanas eram frágeis, sobretudo quando se punham no caminho daqueles como eu. O antigo povo da ilha pagara o preço desse envolvimento com as suas vidas, e por isso me isolara de qualquer contato humano... Até a menina aparecer e me lembrar de como eu me sentia sozinho e como nem sempre eu vivera assim.

Isso porque ela sequer sabia o quanto estava envolvida nas velhas tragédias do passado...

Será que era hora dela saber? Eu me acostumara com a ideia de que, para Lorena, a ignorância era uma benção, e não repensara isso nenhuma vez nos últimos três anos. Não até agora...

O vento que soprava do mar para a ilha parecia frio e úmido, eu deduzi, porque a menina no meu colo, adormecida, se encolhia diante dele, e buscava cada vez mais meu corpo, abraçando-o com força. No entanto, a última coisa que eu poderia lhe oferecer era calor. O Avatar de um espírito se parecia mais com uma roupa do que com um corpo: era material, e podia ser tocado e percebido; mas eu, que o vestia, não sentia nada, nem conhecia o tato de que os mortais dispunham. Tampouco uma roupa produz calor para compartilhar.

Ela murmurou nos meus braços, baixinho, e puxei uma mecha de seu cabelo curto da frente de seus olhos. Não imaginei que ela ainda fosse sonhar depois de ter a memória tão recentemente apagada. Senti-me tentado a descobrir o que ela via. Outro murmúrio. Ela era tão pequena contra o meu peito, tão frágil e, agora, tão sozinha...

Suas feridas haviam se curado. As do corpo. Já as da alma eu era incapaz de mensurar; nem sequer sabia como ela reagiria ao acordar e mal lembrar seu nome. A dúvida de ter feito ou não a coisa certa ao livrá-la de suas lembranças me corroía por dentro. Seus cabelos, apesar de dias terem se passado enquanto ela se recuperava, ainda tinham cinzas da casa destruída. O cheiro da fumaça também permanecia grudado à pele dela.

Então, Dorothea chegou guiada por Damon, e carregava o gato branco de pelúcia apertado nas mãos. Parecia que eu estava certo em mandar-lhe uma prova, e não apenas a mensagem de que a menina estava viva. Assim que viu a pequena no meu colo, ela correu, apesar das pedras escorregadias da praia, e a tomou para si. Mesmo adormecida, Lorena retribuiu o abraço da senhora.

– Ah, ela está viva! Está mesmo viva! – chorou, vasculhando seu corpo. – E não está nem ferida... É um milagre! – Dorothea virou seus olhos marejados para mim. – Quem é você? Como ela sobreviveu?

Levantei-me das escadas. Mesmo se eu não estivesse um degrau acima, seria bem mais alto que a senhora humana.

– Esse não é o lugar para conversarmos, e está frio aqui fora – indiquei as portas abertas do templo atrás de mim. – Vamos entrar.

Dorothea recuou um passo, protegendo Lorena em seus braços.

– Prefiro conversar aqui mesmo, obrigada.

– Você está com medo – afirmei.

– Passei a vida ouvindo histórias sobre esse lugar... Meus pais diziam que várias almas estão presas entre essas paredes, as almas da cidade destruída que ficava aqui, e que, de noite, dá pra ouvi-las gritar e rugir como demônios. Diziam também que essa é a morada da própria Morte.

Apoiei-me em uma das altas colunas de mármore, encarando todo o lugar e depois o chão.

– Realmente, ela mora aqui. EU moro aqui – ergui os olhos a tempo de ver os dela se arregalarem. – E posso lhe assegurar de que não há outros espíritos nesse templo além de mim. Por favor, Dorothea, entre... Não é seguro do lado de fora.


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