Anel de Ouro Puro escrita por Ganimedes


Capítulo 1
Anel de Ouro Puro




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Ignorando a dor lancinante que atingiu sua coluna, a figura frágil se curvou para a frente. As mãos trêmulas - não sabia dizer se era o Parkinson ou apenas o frio - trabalhavam com dificuldade para atritar cada fósforo na caixinha e, finalmente, atirá-lo nas toras de madeira da lareira.

Esse trabalho, além de exaustivo para alguém no auge da terceira idade, precisava ser feito pelo menos duas vezes por dia, e ele não tinha ninguém que o ajudasse em qualquer uma delas. E todo inverno era a mesma coisa. Ele xingou mentalmente a porcaria de seus parentes que não se deram ao trabalho sequer de contratar uma empregada de meio período. Podiam todos ir pro inferno que ele faria questão de jogar a primeira pá de terra no caixão.

Somente a quarta tentativa teve algum êxito. A chama abençoada começou a lamber timidamente um dos pedaços de madeira banhados a querosene, e o calor, a amenizar a rigidez dos seus dedos. Abandonando a bengala, deixou-se cair na poltrona macia e grená, apreciando a arrumação metódica da sala de estar. A prateleira com os livros de sua formação - desde a infância até os últimos dias como professor de História. A cômoda de mogno com o abajur que herdara da avó, tantos anos atrás...

Então algo chamou sua atenção. Imaginou que houvesse uma centena de passarinhos bicando desesperados o vidro da janela, mas, pôs os óculos e constatou que era a chuva que desabava grossa lá fora. Era realmente surpreendente que não estivesse caindo uma nevasca, tamanho frio que fazia. Como se já não bastasse o vento cortante.

Mal essa frase se formou em sua cabeça, a janela se abriu violentamente. Os dois lados bateram com força na parede e a cortina pareceu criar vida, se revolvendo ao sabor do vento furioso e gelado salpicado de gotas de chuva. As chamas da lareira se extinguiram assim que foram atingidas, deixando apenas uma coluna de fumaça que se dissipou logo em seguida.

Mierda! — Ele exclamou, evitando propositalmente um palavrão pior. Não queria, definitivamente não queria, cometer pecados estando tão perto de morrer. Melhor prevenir do que remediar, era o que ele pensava.

Sentiu-se cansado só de pensar em tentar acendê-la novamente. Equilibrando-se na bengala, Sebastián (era esse seu nome) esticou-se para fechar e trancar a janela, não sem antes ficar com toda a parte de cima da roupa molhada. Decidiu: ia pôr uma roupa seca e enfiar-se debaixo da maior quantidade de cobertas que encontrasse. Não era idiota o bastante para sacrificar a coluna em mais uma tentativa vã de acender o fogo.

Recolheu o porta-óculos, pôs de volta na estante o livro que tencionara ler durante essa noite e se dirigiu até a porta. Uma breve reclamação mental por seus sapatos de frio estarem ficando duros fez com que ele demorasse uns segundos a mais para notar o outro homem chegando pela porta de vidro que levava ao corredor da varanda.

O homem caminhou lentamenteaté a lareira, agachou-se em um joelho com a facilidade inerente àqueles que sequer haviam completado trinta anos, riscou o fósforo e, em pouco tempo, as chamas voltaram a brincar nas toras de madeira.

Sebastián observou a cena toda (embora seu primeiro olhar tenha sido aterrorizado) com a face pétrea e carrancuda. Viu o outro homem, de cabelos cor de chocolate e engomados, levantar-se e olhar pra ele de forma divertida. A luz bruxuleante do fogo marcava seus traços tão familiares ao velho, que encarava o anel de ouro em seu dedo com puro desgosto. Aquele anel...

— O que você veio fazer aqui? — Sebastián grunhiu. Parkinson estava piorando agora. Fazia tempo que não ficava tão nervoso. Fechou as mãos para que o outro não percebesse a tremedeira.

— Sinceramente, Sebastián, não imaginei que você fosse se tornar uma pessoa tão amarga quando chegasse aos setenta anos. — O homem disse.

O velho cerrou os punhos por debaixo das mangas longas do roupão. As lembranças de quando vira aquele anel de ouro puro pela primeira vez permaneciam intactas em sua memória. A primavera colorida e ensolarada gravada, ironicamente, em preto e branco.

— Vá embora de minha casa! Hijo de la puta! Você não devia estar aqui.

O homem ao lado da lareira deu um sorriso de canto de boca que não combinou com a tristeza em seu olhar. Ele encarou as chamas por alguns segundos e então virou-se para as prateleiras, dedilhando cada um dos livros.

— Você as guardou, não é? Elas estão por aqui?

Sebastián não respondeu imediatamente, nervoso com a situação. Deu-se conta do que podia estar acontecendo. O outro continuou circulando pela sala, atento ao título de cada publicação.

— Não sei do que você está falando.

— Este aqui está sem nome... hun, não. Muito mal conservado. Que tal esse? — O homem disse, conferindo a capa de um livro amarelado na estante que ficava na altura de seus olhos.

— Pare de mexer nas minhas coisas! Pare! — Sebastián exaltou-se ao ver que ele não estava pondo os livros no mesmo lugar. Havia uma organização por ordem alfabética, imensamente trabalhosa, que ele mantivera por anos.

— Não parece de seu feitio deixar algo desse tipo num lugar tão visível. Vamos, me diga onde está.

A voz dele estava causando calafrios em Sebastián, que não conseguiu evitar se mover um pouco para a esquerda, onde impediria a visão que o outro pudesse ter do lugar em que se escondia o que ele tanto procurava.

— Eu não sei de nada disso. Vá embora! Já não basta tudo que você fez? Ainda tem coragem de voltar aqui...

— ... de novo? Ora, vamos, Sebastián, eu apareci duas vezes desde aquilo tudo. Você está amedrontado demais. — Ele disse, e então percebeu a atitude suspeita de Sebastián. Dirigiu-se até a cômoda do abajur, deliberadamente escondida atrás do velho.

Sebastián deu passagem a ele, subitamente assustado. Não queria tocá-lo. Enquanto o outro andava, seu olhar recaiu novamente no maldito anel de ouro. A cena voltou como um flash.

(Ele chegou usando um anel de ouro puro no dedo, onde todos poderiam ver. Estava de braços dados com ela.

A vizinhança se aproximara, excitada, perguntando sobre datas e convites. O sorriso em seu rosto era reluzente. Sebastián ficou escondido atrás de uma das árvores, ao mesmo tempo se apoiando no tronco seco e tentando ouvir qualquer coisa, na esperança de que estivesse enganado. Seria tudo um enorme engano. Mas seu olhar se encontrou com o dele e a verdade o atingiu.

E passaram-se muitos anos.

A última vez que ouvira falar dele, foi sobre o filho.

Então a tristeza se transformou em raiva.)

— Você... escreveu meu nome na capa? — Ele disse, observando o livro fino e muito bem cuidado que achara na cômoda. O nome Mateo estava escrito em cuidadosa letra cursiva.

— Não interessa. — Respondeu Sebastián, sem desfazer a carranca. Observou Mateo segurar o livro como um frágil objeto de cristal e sentar-se na cadeira ao lado da lareira.

— Haha, eu me lembro muito bem desta aqui. Foi uma das primeiras, acho. — Falou, apontando para a página aleatória em que havia aberto. Sua expressão era divertida e saudosista. Sebastián se sentiu tentado, por um momento, ao juntar-se a ele e partilhar da nostalgia, mas o rancor, mesmo depois de tanto tempo, ainda não havia descido por sua garganta.

— Escuta aqui, saia da minha casa ou...

— Ou o que? Vai chamar a polícia? Você sabe que isso não adiantaria. Venha, sente-se. — Mateo disse, levando a cadeira na qual estivera sentado até perto da poltrona. Sebastián estava desconfiado, mas se aproximou e sentou-se, buscando ao máximo ficar longe do outro.

— Veja essa... ah, essa eu lembro bem. Você estava contra o Sol, quase não dá pra ver seu rosto. Nossa, eu realmente não me arrependo dessa mania que eu tinha de tirar foto de Deus e o mundo. É muito divertido poder rever essas coisas. — Mateo disse, e logo depois deu um sorriso que morreu ao ver a expressão fechada de Sebastián.

— Como você tem coragem de vir aqui... eu te mandaria pro inferno, se pudesse. — O velho falou, os olhos ficando umedecidos por lágrimas de ódio e tristeza.

Foi então que Mateo finalmente assumiu uma postura mais séria. Fechou o livro e encarou Sebastián com intensidade.

— Eu vim porque preciso de seu perdão. — Falou.

— Então perdeu o seu tempo. Sua mentira me matou. Você não me conhece mais. — Disse Sebastián, que lutava para não perder o controle ao notar mais uma vez o brilho do anel dourado. A respiração estava ficando cada vez mais difícil. O que estava acontecendo?

Quase como se percebesse o desserviço causado pelo objeto, Mateo tirou o anel do dedo.

— Isso aqui... esse anel...sempre foi uma lembrança do que eu havia feito. Da mentira que sustentei por tantos anos. Convenci minha esposa a voltarmos para Tijuana, alguns anos depois, com a desculpa de férias de meio de ano, coisa desse tipo. Procurei por você durante todo o tempo que estive aqui, e foi quando recebi a notícia de que tinha se mudado para a Capital.

Sebastián olhou-o com desprezo.

— Não venha se fazer de vítima. Você não sabe o que é ser abandonado sem qualquer explicação. Sem despedidas. A única pessoa que eu imaginava poder contar desaparecera. Meus pais morreram logo depois, estou sozinho desde então, dependendo de uns sobrinhos egoístas que me deixam aqui, como um trapo velho, nem consigo... nem consigo acender a lareira sozinho. — E as lágrimas desataram por suas bochechas. Ele levou as mãos enrugadas ao rosto para enxugá-las.

— Sebastián... você diz que não o conheço, mas continua o mesmo. Sempre pondo as emoções acima da realidade. Era por isso que eu o amava: por ser tão diferente de mim. — Mateo disse.

Sebastián sacou um lenço do bolso interno do roupão e enxugou o nariz.

— E você sempre foi um porco sujo que não demonstrava mierda de emoção nenhuma.

— Sim, e eu piorei muito. Vivi na mentira durante todos aqueles anos. Menti pra minha esposa. Menti pros meus filhos. Pro meu pai. Mas eu não menti pra você, tudo que te falei era verdade. Nossos sonhos de viver juntos... eu falava sério quando dizia que queria aquilo.

— Mas não fez o menor esforço pra tentar conseguir. — Disse Sebastián, cortante.

Mateo fechou os olhos, como se sentisse o rancor daquelas palavras direto na alma.

— Eu sei... e é por isso que preciso do seu perdão. Por favor... — Ele falou, e segurou na mão do outro.

Sebastián não soube como reagir àquele toque. Era ao mesmo tempo tão familiar e tão frio e distante. Ao contrário das suas, as mãos de Mateo mantinham a mesma maciez e leveza daqueles tempos. Mãos de um garoto que vivera bem, se alimentara bem, e fora tratado bem por todos. Mas que carregavam o peso e a gelidez de uma mentira. Ele podia sentir isso, sentia o arrependimento. O sofrimento de Mateo fora tão avassalador quanto o dele próprio. Agora as lágrimas já rolavam livres por sua face.

Então Mateo se curvou para a frente e beijou-o. Os lábios se tocaram por um instante infinito. O outro passou as mãos delicadamente pelo seu rosto durante o beijo, e, junto com o toque, Sebastián sentia as dores indo embora. A fisgada irritante no braço já não existia. A dor de cabeça insistente parecia nunca ter estado ali... até sua coluna estava sã e ereta.
Ao redor deles, a sala se tornava estranhamente embaçada, como que engolfada por uma luz de nevoeiro. Os livros se tornaram fumaça, assim como a cômoda de mogno, o abajur velho, a poltrona, o livro de fotografias...

Não encontraram nenhum corpo na manhã seguinte. Deram Sebastián como desaparecido, ou, possivelmente, sequestrado. A única prova - um anel de ouro puro jogado no chão - deixava margem pra essa interpretação.


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