Abrupto escrita por Ana C Pory


Capítulo 6
Capítulo 6 - Omitir


Notas iniciais do capítulo

À Jéssica Miranda, que ama que usem esse sobrenome dela, que vai ter uma crise de ciúmes com quem eu mais homenagear, quem sem dúvida mais me irritou para atualizar o quinto capítulo de Abrupto, e quem deve estar provavelmente dormindo agora. Pois é, enquanto você dorme já sai o sexto, querida! u.u
À Giulia Donatelli, que nunca dorme, que apesar de dizer que não é tão ciumenta é sim, que eu procurei a história da Tequila Swagg pra conseguir descrever a postura da Alicia, que é uma inspiração para mim com histórias criativas e que precisa reescrever logo o fim do terceiro capítulo de Charlie e Lola. Por favor, ou eu vou bater em você de um jeito muito amigável :D
Eu amo vocês u.u



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Haviam se passado três dias que Alicia havia visto Ricardo no hospital, mas foram tão longos que o seu estoque todo de chicletes acabou, tal como naquele dia que havia se atrasado. Bufando, pegou algum dinheiro da carteira do seu pai sem ele ver e foi até a loja mais próxima.

Em um passado não tão distante, provavelmente lhe imploraria para que desse alguns reais para ela ir até o mercado, prometendo de dedo mindinho que pagaria o mais rápido possível ou que não ficaria brava se ele descontasse da sua mesada. Mas o tempo já era outro, e o acidente havia a afetado tanto que correu para loja, não sorriu para a vendedora que a conhecia e pagou tão rápido que nem parecia que estava ali.

Alicia se sentiu um fantasma: colocando o dinheiro no bolso, estava prestes a virar a esquina de sua casa quando um pensamento inconsequente apareceu, tão tentador e tão rebelde que ela, revoltada com tudo e todos, resolveu segui-lo. Em vez de virar a esquina, deu meia volta e andou aparentemente sem rumo por aí.

Ela não sabia o que estava fazendo. Não tinha ideia. Parecia voltar à sua infância, após sua mãe morrer, quando não pensava antes de agir. O impulso dominava-a, corria em seus sangues, e a precipitação também. Não era mais Alicia, a Bondosa.

Era Alicia, a Imprevisível. A impulsiva.

Se voltasse para casa aquele momento, talvez tivesse que explicar o sumiço da nota de seu pai e seu novo estoque de chicletes, caso não conseguisse passá-lo da sala para o quarto sem que ele visse. Portanto, nada mais justo que, se fosse se ferrar, que se ferrasse por completo.

Um homem passou ao seu lado na calçada, e sorrindo maliciosamente (algo que tanto eu quanto ela consideramos profundamente nojento e doentio) passou-lhe uma cantada. A garota não pestanejou antes de fazer um gesto que prefiro não descrever — até porque o dito cujo olhou feio para ela, falou que mulher é tudo burra e não sabe receber elogio e saiu pisando duro. Alicia enraiveceu-se, e saiu andando com raiva. Todo mundo era ridículo, é claro. Ninguém a entendia. Ela se sentia agoniada, olhando para o céu, como se fosse explodir a qualquer momento.

Não era uma fase, para ela. Não era simplesmente a adolescência, onde todos eram rebeldes sem causa. Alicia sentia uma permanência naquilo, desprezando a maioria dos pais que diziam que tudo é culpa da puberdade. Nada é permanente, exceto a mudança, já dizia Heráclito. No caso, o que acontecia com Alicia era uma sequência sucessiva de mudanças, o que fazia até os mais confiantes a se confundirem o que era ela e o que era um caso isolado.

Pra falar a verdade, nem eu mesma sei quem é essa garota.

De repente, ela não sabia mais onde estava. Era uma rua diferente de todas as outras, as calçadas meio irregulares e um shopping parecendo abandonado naquele domingo. Entrou nele. Já pensava no pior, que seria sequestrada e roubariam seus olhos, depois a jogando inconsciente na frente de casa, e ela teria que passar o resto da vida cega, sofrendo pelos traumas e em depressão. Ficou olhando pelas vitrines com olhar entediado, sua cabeça pensando qual seria a cor de cabelo do sequestrador. Talvez um loiro, um ruivo, ou um comum e entediante castanho?

Chegou num cinema meio vazio, com uma fila inexistente e alguns cartazes gastos. Foi até o vendedor, que a olhou com um pouco de medo (talvez ele nem tivesse vida social, Alicia pensou cruelmente, visto que ele havia deixado seu celular de lado para atendê-la. Parecia um nerd de filme americano, aparelho nos dentes e vários cravos e espinhas no rosto). Com o dinheiro que restava, não dava para pagar uma sessão ao cinema, pois faltava um real.

Ela estava virando-se para ir embora quando escutou alguns meninos, sentados em alguns dos sofás, conversando e apontando para ela. Franziu as sobrancelhas, parando uns instantes virada para eles. Um deles se levantou. Era alto e esguio, o rosto meio ossudo não combinando com o jeito que se portava. Na realidade, para ela parecia meio desengonçado. Ele chegou perto de Alicia e falou, como quem não quer nada:

— Ei... então... você costuma vir muito aqui?

— Desculpa, está falando comigo? — disse ela, olhando-o de cima abaixo. Era o tipo mais estúpido segundo ela. Olhou para trás. Os amigos dele estavam zombando da cara do vendedor de ingressos. Surgiu uma ideia à sua mente enquanto o garoto mais uma vez proferia uma frase.

— É, sabe, não achei ninguém mais linda que você aqui.

— Talvez seja porque eu seja uma das únicas pessoas aqui além de você e seu grupo de imbecis — Alicia abriu um sorriso falso nos dentes brancos, falando o suficiente alto para os outros se virarem olhando o amigo com uma cara apreensiva. Ela não viu, mas com alguns gestos e falando sem sair som, estavam perguntando como ele não tinha conseguido fisgá-la.

Porém, Alicia não era burra. Imaginou que isso ocorreria, e então dirigiu-se para o garoto que vendia ingressos e, apoiando os cotovelos no balcão e o olhando da mais forma sedutora que conhecia, debruçou-se. Sussurrou para ele, abrindo um sorriso travesso.

— Se você me deixar entrar de graça... podemos nos encontrar no fim do seu horário de intervalo. — E piscou. Ela não sabia nem qual era o intervalo dele, mas pelo brilho do olhar dele e a pressa com que a deixou passar, o garoto não percebeu. Os demais pareciam meio chocados. O garanhão não havia pegado aquela, afinal. Isso era uma novidade para contar segunda-feira. Ela entrou no cinema, tentando entender o que havia acabado de fazer. Considerou a ideia de ter parecido ou uma prostituta ou uma vadia, mas como não gostava desse último termo e como não havia, de fato, vendido nada, descartou a ideia. Não iria aparecer no fim do intervalo dele, mas pelo menos havia o ajudado. Quem sabe o vendedor de ingressos poderia arranjar uma história qualquer.

Ela precisava daquele momento para ela, custasse o que custar. E ainda tinha uma quantia de dinheiro no bolso, o que era ótimo. Sentou-se rapidamente na sessão quase vazia e olhou para a tela, a mente confusa ainda tentando encontrar conexões.

O filme era um clichê sobre a história de quatro amigas, duas com uma falta absurda de pudor, uma com um namorado ricaço que as levava para todos os lugares e tentar juntá-las com seus amigos ricaços e uma que estava secretamente apaixonada por seu melhor amigo, que as outras três desprezavam. O filme inteiro a última suspirava ao final da noite, pensando nele, e somente nele. Ele aparentava também gostar dela, mas a otária não percebia, e os dois continuavam conversando como se fossem apenas amigos de longa data e não possíveis namorados.

Na hora que os dois finalmente iam se beijar — isso depois de brigas, um crocodilo, uma chave de fenda e uma das garotas banhada em pura lama — o namorado ricaço chegou com uma arma, atirou em todo mundo e o garoto foi para o hospital, sendo o único que sobreviveu. E então ao sair do hospital, se matou em “honra” da melhor amiga.

Alicia deu uma risada tão estranha e tão escandalosa quando a perfeitinha morreu que algumas das pessoas na sessão olharam-lhe torto. Quer dizer, das pouquíssimas pessoas da sessão. Ela não deu bola. Esperou então os créditos passarem, sendo a última a sair do cinema, e entrou no banheiro feminino.

Encarou-se no espelho. Ela não fazia ideia do que estava fazendo. Estava tudo muito rápido. Roubar dinheiro, comprar chiclete (e ela já havia gasto três caixas), andar sem rumo e enganar alguém. Alicia ainda estava com o dinheiro pesando no bolso, tal como sua consciência tentava resgatá-la do seu próprio abismo.

Ela estava caindo cada vez mais.

Saiu dali rapidamente, andando por aí até achar uma rua que conhecia. Chegou em casa, entrou pela janela do quarto sentindo-se triunfante, atirou-se na cama, guardou o resto do dinheiro do pai na gaveta e quando o mesmo entrou no quarto, perguntando se havia por acaso visto uma nota de cinquenta reais, ela negou dando seu melhor sorriso.

Adormeceu entre sua bagunça e acordou pouco tempo depois com uma mensagem de Júlia. Afinal, se não conseguia sair do abismo, os sonhos poderiam fazê-la voar?

“Vão tirá-lo do coma induzido, Ali!”

Ela se levantou de súbito, batendo pela segunda vez em três dias a cabeça na prateleira, pegou o casaco que estava jogado na sua cadeira — aquele que havia usado também três dias antes —, calçou seus tênis sem nem amarrar os cadarços e saiu de casa mal dizendo tchau para o pai.

Subiu correndo as escadas do hospital, não olhou nem para a recepcionista que não estava lá — talvez ficando com alguém no banheiro do lugar? Alicia não sabia — e foi direto para o quarto do garoto.

Antes da ânsia de vômito chegar, ela parou de correr para evitá-la. Fechou os olhos na porta, tentando entender o que estava acontecendo. Conferiu seu relógio. Não havia passado muito tempo, e mesmo assim tinha vontade de dar meia volta e desmaiar em cima da cama em casa. Estava tudo a deixando tonta. Ela precisou de um minuto para respirar antes de abrir a porta.

Ela achou Júlia, que encarava fixamente Ricardo. A cânula já havia saído da garganta de Rick. Uma enfermeira esperou que seus olhos abrissem, e começou falar com ele calmamente, como se tratasse uma criança de dois anos de idade — o que já era sua mentalidade sem ele estar tão debilitado como estava, imagina quando estava.

— Você está me ouvindo? — ela falou, olhando bem para seu rosto. As duas garotas se aproximaram devagar para mais perto dele, segurando a mão uma da outra, como naquelas imagens sentimentais sobre amizade. Ricardo piscou os olhos, olhando para todos os lados, incapaz de mover a boca. — Pisque duas vezes se estiver.

Ele piscou, os olhos logo se dirigindo às garotas. Sua postura pareceu mudar, se é que tinha como uma postura mudar no estado debilitado que estava. Parecia não tão desesperado quanto antes. A enfermeira continuou falando, dizendo para piscar, e ele piscava conforme o que ela dizia.

Não importava que perguntas a mulher fizesse para ele, o jeito desesperado que olhava para os lados nem muito menos a imaginação que a levava a pensar em que estado estaria a garganta dele, porque quando o viu daquele jeito, segurou o choro. Mordeu os lábios tão fortemente que sangraram um pouco, engoliu o sangue como se estivesse tomando água e sorriu. Deu seu melhor sorriso para todos. Nem olhou para Júlia, que a observava de canto de olho, ao mesmo tempo que estava ao lado de Ricardo auxiliando-o. Ensaiou alguns passos para trás, não querendo dar uma de fujona como da última vez e saiu correndo para o banheiro do hospital.

Atropelou algumas pessoas no caminho, agachou-se ao vaso sanitário e vomitou. Vomitou tudo, até a bile, até não ter mais nada para vomitar. Ela simplesmente pôs para fora. Era tão nojento aquilo tudo. Era tão... injusto. Ricardo não merecia isso. De forma alguma, merecia um quarto do que estava sendo submetido. E tudo era culpa dela, é claro.

Ela tinha que ser a trouxa que havia escrito poesias e recados de amor no caderno, sendo que o dito homenageado estudava junto com ela. Ela tinha que ser a garota do filme, a otária que não via que o melhor amigo dela a amava também. Ela tinha que ser a garota ignorante que algumas pessoas riram quando morreu com um tiro na cabeça no filme. Ignorem o fato de quem tinha dado a gargalhada foi ela.

Então era isso. Alicia fechou a tampa do vaso, apertou o botão de descarga e lavou a boca. Sorriu para a figura estranha no espelho, com os cabelos loiros desgrenhados atrás da orelha, alguns fios sujos que escaparam enquanto ela vomitava.

Tomou um pouco de água na pia, zombando mentalmente do jeito que se portava. Parecia uma garota sofrida. Lavou seu rosto, ajeitou o cabelo e tentou sorrir de novo. Foi satisfatório: agora, estava convincente.

Era isso. Ela era essa trouxa. Essa idiota. E tinha que fazer seu papel. Abriu a porta do banheiro, que fechou atrás de si, e foi em direção ao quarto de Ricardo. Estúpida. Entrou de fininho no quarto, como se nunca tivesse saído, e chegou para o lado de Ricardo. Retardada. Segurou-lhe a mão, ignorando a figura insistente de Júlia. Ensaiou outro sorriso. Esse deu certo. Louca. Engoliu o que restava da sua dignidade, e sorriu novamente.

Psicopata.

Alicia estava só sorrisos aqueles últimos dias.


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Notas finais do capítulo

Ai, a psicopatia *lixa as unhas*