Abrupto escrita por Ana C Pory


Capítulo 5
Capítulo 5 - Memórias


Notas iniciais do capítulo

À Jazz e a Giulia, as divas da minha vida.



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Alicia correu entre a chuva fina que caía naquele fim de tarde. O dia inteiro fora ensolarado, mas em compensação, a mensagem de Júlia confirmava que só agora o tempo para visitas era livre. A garota mal olhou para o celular antes de dar um pulo da cama, bater a cabeça na sua prateleira, agarrar algumas embalagens cheias de Trident e sair correndo com o primeiro casaco que vira pela frente.

As calçadas molhadas pela chuva ameaçavam-na escorregar, e de fato quase escorregou ao alcançar a escada. Irônico, ela pensou. Cair em uma escada e quebrar o nariz na frente de um hospital. Mas felizmente Alicia conseguiu chegar inteira para o hospital, às vezes olhando para as mangas do casaco para ver se não deixara, vai saber, um braço para trás.

Quase fez um muxoxo para a enfermeira que se parecia muito com sua professora Jennifer. Mas todas as palavras saíram de sua boca quando ela, talvez mais apressada que a cara da recepcionista ao sair correndo da sala quando chegara à hora do seu intervalo, chegou finalmente à porta da sala.

Abriu calmamente, como se atrás daquela porta uma bomba fosse explodir. A enfermeira carrancuda saiu de lá sem nem olhar antes se era o mesmo quarto. E então, enxergou o cabelo de Júlia. Castanho-claro. Parecendo a Marina de A Turma da Mônica.

Finalmente fechou a porta. Júlia encarava fixamente Ricardo, os olhos cravados nele como se piscar fosse causar uma explosão, tal como Alicia havia imaginado ao abrir a porta. O garoto estava desacordado, mas as lágrimas silenciosas de Alicia não passaram desapercebidas por Júlia quando ela se virou.

As duas se abraçaram, tão rápidas e tão desesperadas que o abraço pareceu durar mil anos. O chiclete de Alicia já estava sem gosto quando finalmente se soltaram. Ela rapidamente o trocou por um de Melancia.

Alicia parou de respirar por um minuto, quando olhou para Ricardo. Seu corpo estava vestido em azul-celeste, e em outra época, em outra situação e em outro tempo Júlia até teria tirado uma foto daquilo, mas realmente não era hora nem lugar. De uma máquina, um tubo azul saía, conectando-se à uma cânula que entrava na boca dele. Seu rosto estava amarrado naquilo através de um cordão para fixar.

— As enfermeiras chamam isso de cadarço — Júlia falou baixinho, apontando para o cordão. — Esse equipamento é um respirador. Ele faz a função de inspirar e expirar o ar, pois o Rick está em coma induzido devido às lesões internas. Tudo isso — Alicia olhava para os equipamentos com um nojo que Júlia resolveu ignorar — é para fazer a função do pulmão dele.

Agora o nojo misturou-se com uma forte ânsia de vômito, e Alicia saiu correndo de lá sem olhar para trás, apenas mirando o banheiro mais próximo para tirar tudo de dentro dela. Mas é óbvio que as lembranças não sairiam.

Ela se lembrava do dia do acidente com uma memória perfeita. Logo após o carro chocar-se com Ricardo, pegou tão rápido o telefone que ele quase caiu. Seus dedos tremiam ao digitar o número da ambulância. Júlia voltara ao ouvir o estrondo e tentara convencer o motorista a continuar ali, mas o mesmo saiu em disparada. O homem, por seu sotaque, parecia britânico, e mesmo assim fugiu quando a garota havia falado inglês fluente com ele. No momento, a maneira de como ela aprendera o inglês em tão pouco tempo de curso era pouco relevante para Alicia.

As duas passaram várias horas analisando a sala de espera e os corredores do hospital. Alicia gravava o rosto de cada pessoa e os choros e suspiros incontáveis de cada uma. Porém, sairia dali sem se lembrar nem de um esboço do que presenciara lá.

Seu corpo era naturalmente contra hospitais: o cheiro, a aparência pálida dos doentes, as máquinas estranhas, o chão e até mesmo as paredes. Um sentimento de pânico tomava poder dela toda hora que entrava em um. Macas correndo para todos os cantos, elevadores grandes demais. Tudo era completa e totalmente maluco.

Entretanto, nem sempre foi assim. Vários dias quando pequena iam com seu vestido azul, brincando que era Alice, de o País das Maravilhas, enquanto rodeava pelos corredores até o quarto de sua mãe. Via-lhe e sorria-lhe, dizia que ficaria tudo bem, que não era para ela se preocupar que logo melhoria e sairia dali.

A única vez que a mãe dela saiu dali após ser internada foi para o necrotério. Desde então, os corredores tão familiares a haviam traído. Os médicos, a enfermeira que lhe dava uma bala todas as segundas. Todos traidores. Prometeram dar o seu melhor.

— Se era o melhor deles, por que ela não melhorou? — gritava Alicia aos onze anos, às três horas da madrugada, trancada no seu quarto. Quebrou a janela e fugiu de casa. Correu com a mão ensanguentada por várias quadras até sentar no banco de uma praça e se encolher. — Eu só quero definhar e morrer... — murmurava, os dentes batendo de frio, pois a camisola fina não a aquecia no inverno rigoroso.

Alicia lavou seu rosto, tomou água em um bebedouro e saiu do hospital sem Júlia. Mandou uma breve mensagem sem muitas explicações, colocou um chiclete na boca e mascou-o até chegar em casa.

— O gosto acabou de novo — praguejou ela, jogando-o fora na lixeira na frente da casa. Procurando algum novo sabor para inovar, futricou seu estoque no quarto, ignorou o pai que perguntou onde estivera e mascou mais algumas caixas antes de cair no sono.

Seu quarto estava mais bagunçado do que nunca. Seus casacos tomavam conta da cadeira, o guarda-roupa estava aberto, o tapete sujo e as vidraças arranhadas. Alguns de seus cadernos estavam espalhados, um deles aberto e exposto no chão. Na última página do caderno de Matemática.

“Por que toda vez que o olho meu coração parece saltar pela boca? É uma expressão tão clichê, mas se torna tão verdadeira que posso falar várias delas. Borboletas no estômago. Nós, incapacidade de falar algo coerente. Todos os tipos de clichês de paixão são válidos quando o vejo. Todos os tipos de risos acontecem quando você conta mais uma daquelas piadas sem graça. Tudo faz mais sentido quando estou com você. Coloque na sua lista de clichês. Você mesmo diz que sou um, R.”


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Notas finais do capítulo

Feliz dia das mães, mãe