Abrupto escrita por Ana C Pory


Capítulo 4
Capítulo 4 - Kamikaze




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O caderno de Alicia Moore era bem organizado, muito bem obrigada. Usava canetas e lápis – além da óbvia borracha – para escrever em letra script, de mais fácil identificação. Sua letra era muito bonita, invejada por Júlia, e, é claro, por Ricardo, só que saía pela boca dele como forma de zombá-la por ser tão perfeita.

Elogios de professores a respeito dele não lhe eram incomum. Usava post-its e alguns outros recados para manter tudo mais organizado, mas nunca usara canetas coloridas – ah, o sonho de toda garota da terceira série! Ops. Alicia não estava no primeiro ano do Ensino Médio?

Algumas pessoas pediam-no emprestado para zombá-lo, como foi o caso de Sara. Ela rabiscou alguns dias do caderno de Alicia com caneta preta forte e a garota ficou dias e dias reescrevendo as páginas que ela havia rabiscado e as anteriores, porque estavam praticamente ilegíveis também, pois a tinta da caneta passara para o outro lado da página: oh, o pior pesadelo de todo aluno – reescrever tudo de novo.

O tal caderno maravilha estava na mão de Ricardo, que lia ele desesperado, querendo absorver cada palavra, conta matemática, problema matemático, equação matemática e qualquer coisa matemática que nele estivesse. As palavras, obviamente, não ficavam guardadas, mas ele não deixava de continuar fazendo isso até Júlia finalmente se impor.

— Oh, droga. Eu vou responder errado — ele praguejava, deprimido. — Ah, eu vou escrever tudo isso aqui errado.

— Ricardo! — Júlia repreendeu-o. —Deixe de reclamar. Você está fazendo isso há trinta minutos! Não vai parar para respirar, não?

— Não vai não — riu Alicia. — Se você estudar, Ricardo, não vai responder errado. A propósito, por que você está estudando a meio caminho de casa e não na sua própria casa?
Ele nem moveu a cabeça – apenas moveu seus olhos em direção a ela num gesto de ironia. Ao ver o sorriso dela, revirou-os e continuou absorvendo a pura matemática.

— Porque não teria graça — Ricardo disse, com um tom de quem fala o óbvio. — Não é óbvio? — É, realmente, com um tom de quem fala o óbvio. Obviamente.

— Não — Júlia respondeu.

Alicia bufou. Começou a se lembrar do que havia escrito no caderno: como gostava de colocar alguns recados no, raramente rabiscava na última folha. Mas, apesar de ser praticamente um exemplo de garota, acabava por quebrar essa regra eu-sou-tão-perfeita-que-nem-uso-a-última-folha-do-caderno. Tentou se lembrar de que desenho ou poema havia feito no caderno de Matemática quando saiu uma exclamação da boca de Ricardo.

A exclamação parecia ter saído da boca aberta dele como um gigante risco vermelho e contornado com preto e com uma esfera embaixo. Ela saiu pela sua boca e flutuou no ar durante alguns segundos, até os reflexos de Alicia enviarem-na para mais perto de Ricardo para ver o que ele tanto olhava no caderno.

Oh, não. O caderno de matemática...

Ela sentiu seu rosto corar de vergonha quando seus olhos, apressados, captaram a folha do caderno e não pareceu a mesma garota quando quase arrancou o caderno da sua mão, de modo ríspido. Guardou-o em sua bolsa, fechando com tamanha rapidez que quase deixou seus dedos lá dentro.

Ricardo não comentou nada. Ele tinha amor à vida. Júlia, já, levantou os olhos, e havia pontos de interrogação suspeitos estampados neles.

— Eu preciso ir — disse, gaguejando de modo apressado. Alicia arqueou as sobrancelhas quando Júlia saiu correndo de lá, entrando em um mercado chamado Lahude.
Mas, de qualquer forma, Ricardo começou a falar sem parar.

— Você viu quando a professora Jennifer passou dois deveres de casa? Acho que ela estava cansada de tanto reclamarem com o fato de o nome dela ter dois N’s. Bem, eu acho que foi algo bem irritante, realmente, mas...

Eles estavam prestes a atravessar a rua quando a voz de Alicia o calou. Pararam naquela esquina, e ela olhou para ele profundamente. Falou algumas palavras que não pareciam sair de sua boca, assim como o ato de arrancar o caderno da mão de Ricardo, mas ela não ligava.

— Cale a boca, Ricardo — e Alicia o beijou.

Todo dia, Alicia fantasiava encostar aqueles lábios e beijá-los. Ela quase se beliscou para acreditar que não estavam sonhando.

Quando se soltaram, finalmente, largando um ao outro, Alicia deu graças à Deus, Jeová, Judas, Buda ou qualquer seja a religião que Júlia tinha entrado naquele mercado e não visto a cena. Mas é claro que Deus, Jeová, Judas, Buda ou qualquer outro deus não gostavam dela quando olhou para as portas do Lahude.

Júlia abriu sua boca em espanto, parecendo um grande emoticon em vida real. Tinha um chocolate branco com cookies na mão. Olhou para Alicia e Ricardo, balançando a cabeça, e saiu correndo.

Ao atravessar a rua, os dois descongelaram e foram atrás dela. Ambos tiveram que correr para tentar alcançá-la, mas Alicia tropeçou no meio do caminho.

Sentindo-se uma dama perdida no filme da Cinderela, se levantou, acariciou o joelho esfolado e foi logo atrás de Ricardo. Como era tola! Não percebeu que o clima que ela e Ricardo estavam tendo poderia ter afetado Júlia – afinal, a garota havia contado como não gostava de assistir casais (o famoso “ficar de vela”) e como fora abandonada pelos seus melhores amigos por causa disso. Saiu atrás de Ricardo repreendendo-se, e imaginou como seria se alcançasse Júlia.

Era a regra básica do pega-pega: corro atrás de você, encosto-me a você e agora você corre atrás de mim. Mas isso não funciona na vida real, quer dizer, no próprio viver: na realidade, era ao contrário. As pessoas só pensavam na corrida e não no destino, e isso que afetava algumas amizades.

Os pés de Alicia pareciam se mover sozinhos, correndo sem parar, enquanto ela ofegava. Seus pensamentos estavam a mil por hora: caramba, como sou idiota, como pude deixar isso acontecer? Meu Deus, eu sou muito idiota, ai meu Deus do céu eu quero me matar, Jesus, Maria e José, meu Deus, ai caramba, eu quero morrer.

Ela lembrou de um manual de trânsito que leu quando tinha sete anos: “sempre olhe para os dois lados antes de atravessar a rua” e começou a compará-lo com a realidade. Quantos daqueles pedestres desesperados, que corriam rua afora, haviam lido quando pequenos aqueles manuais? Qual a diferença entre o real e o imaginário, ou mesmo o real que deveríamos ser, mas não é o que somos?

Essas frases não pareciam ter sentido, mas ao mesmo tempo tinham muito. De repente, Alicia parou na rua. Ela era o que deveria ser, ou ela era ela mesma? Ela estava seguindo exemplos, ou ela estava sendo a si? Qual a moral disso tudo, afinal? O que faz sentido nessa vida? Por que tanto julgamento? Por que as pessoas esperam mais do que realmente somos? Seria um problema, um distúrbio, uma loucura, ser otimista? Estava mais para uma decepção.

Ela percebeu que recebia olhares de outras pessoas. E não suportava isso. Olhou para o fim da rua.

Júlia corria pela calçada, atropelando pessoas e atravessando faixas de pedestre sem olhar para os dois lados. Ricardo estava quase a alcançando: Alicia pode pressentir ele se aproximar dela, puxar seu braço e começar a falar com ela, algo como “Júlia, o que deu em você, caramba?” ignorando o fato de que ele foi atrás.

Eles vão acabar se matando, Alicia pensou. Não é uma questão só de seguir as leis de trânsito, mas sim de querer viver: queira eles ou não, carros existem, e podem matar.

Dessa vez, tomou um rumo diferente. Começou a imaginar mil e um motivos para pará-los. Pegou seu celular e chegou a começar a digitar o número da mãe de Júlia quando ouviu um grande estrondo e um grito.

Já pensando no pior, Alicia olhou para frente, torcendo desesperadamente e egoistamente que tenha sido outro alguém a ser atropelado.

Não foi outro alguém.


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