Abrupto escrita por Ana C Pory


Capítulo 10
Capítulo 10 - Uma Última Conversa


Notas iniciais do capítulo

Leiam a primeira letra do nome de todos os capítulos.



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Júlia não arrastou Alicia por muito tempo, felizmente. Ela puxou o seu braço até a praça perto de casa, onde a guiou até um banco familiar, em que Alicia lembrou ter dormido com a mão sangrando após quebrar a janela do quarto anos atrás. Júlia bufou, sentando com raiva ao seu lado, partindo a reclamar da mãe de Ricardo.

— Aquela desgraçada, acha que eu não era boa o suficiente pra ser amiga do filho dela, qual o problema daquela mulher? É xenofobia demais? Ou é só ódio gratuito? Eu não fiz nada praquela vaca até ela começar a me xingar e me tratar mal. Eu vou fazer ela engolir aquele dinheiro dela, ah se vou — esbravejou, soprando uma mecha colorida fora do seu rosto.

— Ei, Júlia — falou Alicia num tom de alerta. — Pegue leve.

— LEVE? Leve? Ela não... — olhou pra Alicia surpresa, até que se ligou. Dirigiu um olhar vazio para a amiga. — Ah, é mesmo. Você não sabe. — A loira olhou pra ela de canto de olho, o que fez Júlia começar a falar. — Digamos que... eu... tenho meus motivos para não gostar da vagabunda.

Alicia levantou as sobrancelhas, um claro gesto de “desembuche, garota”.

— Eu... é... Esquece. Deixa quieto, é drama meu — tentou amenizar.

O jeito que ela desistiu tão fácil assim, mesmo após seu ataque de fúria, irritou Alicia. Ela olhou pra ela em desaprovação, se desatando a falar.

— Como você pode, depois de todas essas reclamações, de toda aquela briga e de me arrastar até aqui, ainda ter a ousadia de não me contar o que deu em você? Isso é hipocrisia, Júlia. Isso é bem sério — Alicia fez menção de levantar para ir embora quando a garota puxou seu braço, olhando para o chão.

Ela mudava de humor muito rápido, mas nunca tão exageradamente. Toda aquela raiva sem razão parecia ter se transformado em melancolia, e ela olhou brevemente para Alicia antes de dirigir seu olhar novamente para baixo, com aquele olhar de gente mais velha. O tipo sei-algo-que-você-não-sabe.

— Eu deveria... ter te contado isso há muito tempo — começou ela, apertando as mãos —, e... De qualquer maneira, não fique brava comigo. Eu fiz o que eu precisava fazer, e eu sei que soa mal, mas foi necessário.

Alicia se preparou para o pior.

— Eu nasci no Canadá — Júlia jogou a primeira bomba, esperando a reação da amiga, que pareceu estar confusa, todavia nem tanto. — É por isso que às vezes solto frases e palavras em inglês quando estou muito animada ou brava. Eu vivi lá até os dez anos de idade.

O queixo da loira caiu, mas ao mesmo tempo, algumas engrenagens começaram a se mexer, pecinhas começando a fazer sentido de repente.

— A minha mãe ganhou uma promoção no trabalho, então eu, ela e meu pai nos mudamos para o Brasil. Quando eu... eu tinha acabado de me mudar, eu não sabia muito de português. Eu sabia algo, sim, porque minha mãe é brasileira, mas eu falava o R de maneira esquisita e as outras crianças zoavam da minha cara. E eu me sentia muito mal, porque não era minha culpa, sabe? Crianças podem ser realmente cruéis quando querem. As minhas notas também eram um lixo, não sabia nada de história brasileira, que dirá gramática. Eu mal sabia escrever em português. Foi uma época difícil — ela suspirou.

Alicia não encontrou palavras, então preferiu não dizer nada.

— Eu tinha dois melhores amigos, porém. Eles eram meu mundo, literalmente. Não tinha mais ninguém além deles e dos meus pais. E Ricardo estudava comigo naquela época. Ele nunca falou nada, sempre foi meio secundário, só que quando eu mudei de colégio e entrei no curso e eu passei a visitar sua casa. Aliás, eu só ia pro curso porque a minha mãe tinha medo que eu esquecesse o inglês. Enfim, eu encontrava o Ricardo lá, e a gente brigava muito. Muito mesmo. Você se lembra, né? Ele me deixava p da vida. Quando a gente virou amigo, eu o convenci a não contar pra ninguém da minha nacionalidade — ela disse olhando para o céu. — Eu pratiquei muito as palavras que eu tinha dificuldade, me enfiei em livros de gramática e geografia local. De repente, ninguém podia saber da minha nacionalidade, porque tudo daria uma abertura para toda a zoação voltar de novo, e eu só sabia que não podia deixar isso acontecer.

Júlia voltou o olhar para suas mãos, que estavam ficando cada vez mais brancas a medida que a menina as apertava.

— É por isso que você sabia falar com aquele motorista, o britânico, que atropelou Ricardo — Alicia disse de supetão.

A morena meneou a cabeça em afirmação.

— Falando em Ricardo, eu tenho quase certeza que a mãe dele não gosta de mim porque sou de fora. Quer dizer, eu não consigo ver algum outro motivo plausível, se isso pode ser considerado plausível.

— Preconceito é uma droga — a outra comentou.

— Deve ser horrível crescer com uma mãe dessas — Júlia disse.

Alicia não falou nada por um tempo.

— Não me entenda mal, ela devia ser legal antes. Meu pai me contou que era gerente de uma farmácia, que fazia rascunhos de livros durante os intervalos. Deve ser por causa disso que Ricardo escreveu bem aquela carta.

— Eu só queria saber de onde que ele tirou o talento pra desenhar.

— A vaca me disse que foi quando o pai dele deu um caderno de desenhos, ele não conseguiu mais parar e tals. Todo esse negócio de desenhar, horas num mesmo pedaço de papel com vinte e cinco mil lápis diferentes... Eu não teria paciência para aquilo. Mas Ricardo tinha. Mais calmo impossível.

— Quem será que era aquele senhor dos desenhos? — Alicia devaneou, pensando no velho simpático, não esperando exatamente uma resposta concreta.

— O avô dele. Ele tinha mencionado ele algumas vezes. O velho era do interior, aparecia de vez em quando pra contar umas piadas, daí todo aquele humor desgraçado do Rick. Deveria ser bem legal. Morreu quando ele tinha uns nove. Grande perda.

— Que engraçado, eu achei que só eram gritos e xingamentos entre você e a sra. Oliveira. Você soube bastante por ela, afinal.

— Bem, xingamentos precisam ter alguma base, não? — Júlia brincou, mostrando um sorriso de canto. — Especialmente aqueles que falam sobre testamento.

Durante um tempo, ficaram em um silêncio tranquilo, ouvindo os sons do parque.

— Mas... Ju, aquele dia, por que você saiu correndo quando nos viu fora do mercado? — ela perguntou, mudando de assunto.

Ela olhou para o lado um pouco, a pele escura corando um pouco, o que era difícil de acontecer.

— Os meus dois melhores amigos... João e Luís... eram os únicos que me apoiavam naquela época de bullying. Luís e eu éramos muito mais chegados, mas João era para quem eu contava as coisas. Não sei porque, eu simplesmente me sentia confortável falando com ele. Aí, um dia, eles começaram a namorar, e cada vez mais me deixavam de fora dos programas. Eu me sentia um lixo, excluída, e quando conversava com eles era pra segurar vela. Quando fui falar com João... ele esfregou na minha cara que não deixaria uma imigrantezinha metida se aproximar do namorado dele, porque eu matava tempo deles por nada. Eu saí chorando e nunca mais falei com eles, mas acho que o Luís não sabia do que João tinha falado, porque vivia me perguntando porque eu tinha me afastado e tentando conversar comigo.

— Que droga — disse Alicia —, mas o que isso tem a ver com...

— Quando eu vi vocês se beijando, tudo voltou e... eu só sabia que não podia mais ser deixada de lado daquele jeito de novo. Então, saí correndo. De novo.

Alicia segurou a mão de Júlia.

— Eu nunca faria isso com você, Júlia. Ricardo também não.

A dona dos cabelos de Marina franziu os lábios.

— Eu pensei muitas e muitas vezes em te contar, principalmente aquele dia que você brigou comigo na sala de aula. Eu nunca te vi tão irritada... e aí, você falou que eu não conto nada do meu passado, mas você também não conta do seu — e dirigiu para a amiga um olhar cheio de significado.

Esta suspirou profundamente.

— Eu não acho que valha a pena.

— Try me. Ah, desculpe. Experimente. Teste-me. Mande pra cá.  

Alicia levantou as sobrancelhas.

— Eu realmente...

— Ah, por favor. Você tem um vício em chicletes. Como aconteceu? Sempre tive curiosidade.

A loira olhou para o restante do parque, pensativa. Como, de fato, tinha acontecido? Franziu as sobrancelhas, tentando se lembrar, e depois dirigiu o olhar para Júlia.

— Quando eu tinha uns onze anos, a minha mãe foi internada. Ela tinha sofrido um ataque de coração e teve que ficar em observação, e aí que descobrimos que ela tinha um caso grave de arritmia cardíaca. O coração dela batia rápido demais. A minha vó tinha, mas mamãe não ligava pros riscos. Vivia dizendo que alguém tinha que fazer as coisas. Ela se estressava frequentemente porque trabalhava demais, e eu também não facilitava. Meu pai não tinha com quem me deixar, então me levava para o hospital, e eu fazia o máximo para me distrair lá. Conversava com os médicos, brincava com as enfermeiras. Eles me adoravam. Mas tinha vezes que eu ficava nervosa... Então papai me dava dinheiro para comprar chiclete na lojinha que havia ao lado do hospital. Viciou. Me dava alguma dor de barriga, todo aquele suco gástrico pra nada, então eu ficava mal e meu pai me cuidava. Eu tinha atenção, nem que fosse só dele.

O queixo de Júlia desceu um pouco, expressando o seu choque. Ela nunca imaginaria isso.

— E a sua mãe...

— Morreu umas semanas depois.

— Alicia, me desculpe por o que eu disse... Quer dizer, deve ser realmente horrível crescer com a sra. Oliveira como mãe, mas não consigo imaginar crescer sem uma — falou Júlia, arrependida. A garota deu de ombros.

— Depois daquilo... as minhas notas abaixaram. Meu pai perdeu o emprego. A gente foi caindo, pouco a pouco. As contas atrasaram, papai não tinha mais como pagar o colégio e eu batia nos meus colegas, então fui expulsa, jogada pra um colégio público pior ainda, e lá todo mundo me odiava. Os vizinhos nos xingavam pelas nossas contas, e a gente brigava com eles e entre si, mas nunca nos separamos.

Algumas pombas pegavam pedacinhos de pão jogados por um casal de velhinhos em outro banco do parque. De longe, Alicia conseguia escutar o barulho da água escorrendo de uma fonte, e mais perto, o farfalhar das árvores, onde os passarinhos se apoiavam em galhos e cantavam. Ela nunca havia contado aquilo para ninguém, todavia se sentia mais em paz do que nunca.

— Como que você... Eu quero dizer, você não é mais como era naquela época, apesar de ter tido suas recaídas.

— Foi num Halloween. Meus vizinhos fizeram aquela tradição americana boba de pedir doces pelo bairro, e ganhei da minha tia uma máscara, tipo aquelas do Pânico!. Eu passei de casa em casa pedindo, e eu esperei baterem a porta na minha cara, mas ao invés disso me receberam bem. Eles não sabiam quem eu era, então eu ganhava doces, sorrisos.

“Comecei a vestir uma máscara todo santo dia. Me forcei a ser doce, simpática, amável. As pessoas começaram a gostar de mim. Eu motivei meu pai e ele conseguiu arranjar um emprego novo, nos mudamos para bairro próximo. Entrei no curso de espanhol, porque ia fazer uma viagem ao Peru na nova escola, onde ninguém conhecia o meu lado obscuro. Só que eu reprimi este lado demais. E quando Ricardo morreu, ele voltou com tudo, ainda pior.”

— E o que você pretende fazer quanto à isso, Ali?

A garota virou os olhos para o céu azul, apoiando seu braço no apoio do banco e usando a mão para recostar a cabeça.

— Bem, eu acho que, e aqui cito Harry Potter, todos temos luz e trevas dentro de nós, o que importa é o lado no qual decidimos agir. Isso é o que realmente somos. Então... eu acho que eu não posso agir muito exageradamente boazinha, até porque eu não sou assim. A minha moral agora é procurar um intermédio. Um que não machuque a mim e a ninguém mais.

Júlia concordou com a cabeça.

— É uma boa filosofia, se quer saber minha opinião.

As duas conversaram por muito tempo, até o casal de velhinhos ir embora, até os passarinhos pararem de cantar e as pombas pararem de procurar migalhas pão. Depois, já de noite, quando se levantaram para ir embora, se abraçaram e cada uma seguiu sua direção.

Alguns passos depois, Alicia se virou.

— Júlia?

A amiga parou na calçada, olhando para ela.

— Não fique tão brava com a mãe de Ricardo. Tenho certeza que ela só estava querendo guardar mais uma parte dele para si. Eu também ia querer.

Júlia concordou levemente com a cabeça e continuou andando, enquanto Alicia voltou ao seu caminho.

Seus passos faziam um barulho repetido. Ela olhou para o céu, agora escuro como nanquim, pontilhado pelo brilho das estrelas. Se perguntou para onde estava indo, qual seria a direção que tomaria. Todos estão a busca de seu própria rumo, afinal.


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Notas finais do capítulo

Essa história foi pra Jazz. Obrigada, minha peixinha.



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