Bunker escrita por Maxine Evelin


Capítulo 1
Os Remanescentes.




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Seus dedos carcomidos passavam lentamente pelo rádio portátil, finas lascas de tinta prata e poeira desprendiam da superfície em cada movimento. Observava o ponteiro sintonizador deslizar de um lado ao outro, esperando no meio do baixo barulho de estática, ouvir alguma notícia, alguma coisa que o fizesse esquecer os tormentos da Grande Guerra.

– Ainda está mantendo esperanças de sintonizar alguma notícia? Estamos à uns vinte metros abaixo da terra entre paredes de sessenta centimentros de puro concreto. Nem se Jesus vier pregar a palavra dele com um alto-falante divino vamos ouvir. - Disse um soldado deitado em uma das camas do Bunker. - Olhe Clarke, estamos presos aqui em baixo, todos nós, sei lá se vão nos encontrar, apenas para de sonhar e vai tentar achar algo que possa fazer por nós.

Clarke levantou-se devagar, as pernas fraquejadas estalando alto, enquanto raspava o uniforme negro na parede. Passou pelas beliches e arrastou-se em passos curtos até o banheiro sujo. Uma grossa camada de sangue coagulado estava espalhado pelo chão e paredes, uma pilha de ossos estava jogada na banheira.

– Veio ver os velhos camaradas Clarke? Eu e o Burch estávamos com saudade - disse um dos crânios, suas fendas oculares brilhando um verde intenso. - Sabe, foi até legal lutar nas trincheiras, sabe, a emoção de acertar um moreno na cabeça, de sentir o calor das cápsulas das balas de uma metralhadora queimando ao bater em sua pele. Das explosões. Boom! Boom! BOOM! - O local estremeceu conforme bombas caiam no campo de batalha. Clarke agachou-se e levou as mãos ao ouvido, dando um grito de desespero. Nunca se acostumaria com a vibração frenética e o som grave das explosões.

Agarrou uma faca de combate, que estava jogada ao lado da privada e empunhou-a contra o crânio.

– O que você vai fazer Clarke? Eu já estou morto, vocês me comeram quando sentiram fome, eu e o Burch, não tem mais carne aqui. Só osso. E olhando para você, daqui a pouco será você. - O esqueleto desatou a dar uma gargalhada aguda que mais lembrava um porco no matadouro.

– Vá se danar! - Gritou Clarke pegando o Crânio e tacando para fora do banheiro onde despedaçou ao bater em uma das camas. Clarke virou e apoiou seu corpo na pia de aço, abriu a torneira e surpreendeu-se ao notar que ainda havia água nas tubulações. Uma água acinzentada, porém melhor que nada. Tomou alguns goles forçados, o gosto metálico estava muito forte e lavou seu rosto logo após, deixando manchas pretas caírem sobre a pia, era como se retirasse uma grossa camada de maquiagem podre de seu rosto. Naquele momento sentiu-se por algum motivo aliviado da sensação mórbida de estar preso naquele lugar.

Jogou a faca no chão e olhou seu reflexo no espelho manchado. Entre trincas que mostravam o homem fragmentado que era, via um rapazote fragilizado, magro e de cabelos esbranquiçados precocemente. Forçou um sorriso tentando afastar a sensação de desespero e deixou um mantra simples de "Está tudo bem agora" tocar como um gramofone velho acompanhado de um jazz clássico.

Boom! A estrutura treme como o intestino de um recém-nascido, e pelo mesmo ralo que escorria suas sujeiras, escorria sua tranquilidade.

Saiu de cabeça baixa, atordoado pela explosão e sentou-se ao lado do soldado que descansava na cama.

– Lembra quando prometemos retornar ao nosso vilarejo, Clarke? - Disse o Soldado repousando a mão sob as costas de Clarke. - Eu lembro até hoje do cheiro do campo. Das tortas que nós roubamos. Lembra? De como sujamos as bocas dos cachorros para finjir que foram eles que roubaram a torta? - Perguntou o Soldado soltando uma risada fraca.

– E de quando você roubou as calcinhas do vestiário feminino na academia. Só para vender aos tarados. Lembro muito bem disso. - Respondeu Clarke deixando uma risada aliviar sua tensão, e esquecer as lágrimas que escorriam de seu rosto. Nostalgia, era esse o sentimento mágico. Era tudo muito nostálgico.

– Hehehehehe! Uma hora o carma volta, talvez aqui seja um purgatório de ladrões de calcinhas como eu. -

– Você... Você acha que iremos sair daqui? - Perguntou Clarke virando para olhar no rosto do Soldado. Este virou o rosto e encarou a parede e os pôsteres de Pin-up girls que haviam pendurado quando chegaram.

– Somente se ganhassemos a Guerra. Se... Somente se... - Respondeu o Soldado com um tom tristonho.

– E você acha que iremos ganhar? - Clarke olhou para o rosto do Soldado e encarou suas feições. Era o típico Cidadão do Norte, rosto de traços bem definidos, fortes, uma barba loira malfeita cobria suas bochechas e queixo. Era um sujeito bonito que chamava atenção por onde passava, exceto que agora estava magro e muito pálido.

– Clarke, pegue o rádio. Você não ouve a Estação? - Disse o Soldado levantando e olhando com apenas o olho direito a face de Clarke. O lado esquerdo do rosto do Soldado estava irreconhecível, uma fenda parecia atravessar o canal ocular e e arrancado parte de sua bochecha e orelha. Um sorriso eterno gravado em sua carne e ossos.

Clarke tirou o rádio do bolso e entregou ao Soldado. Ao toque o rádio tomou vida, e uma voz distante quase etérea disputava com um chiado e a música tema partidário.

– E hoje... Mil, novecentos e... Nós declaramos fim da Guerra... Aflige nossos familiares e amigos... Hoje será o dia que... Desistiu de levar a Guerra adiante. O Grande Estado perdeu seu líder... - O Soldado entregou o rádio para Clarke que sentiu um espasmo percorrer seu corpo. - Viu Clarke? - Continuou o Soldado - Já perdemos a Guerra. É o fim, acabou.

Clarke sentiu seu mundo ruir, estava vivendo em uma mentira constante? Era isso que tinham lhe falado agora a pouco, estava em um purgatório onde pagava por seus pecados? Estava ainda vivo? Quanto tempo teria ainda que aguentar tudo isso?

– É o fim! O fim! - Gritos do banheiro vieram como uma alcatéia insana. - Acabou Clarke, meu menino lindo da titia! - Uma gargalhada fajuta digna de um talkshow ressoou pelo bunker, junto a assovios de uma platéia invisível.

– Então... Quer dizer? - Começou Clarke a chorar, milhares de cenas como uma apresentação de datashow militar começaram a acender nas paredes do bunker. Sua infância, a queda de seu primeiro dente, o dia que conheceu seu amigo, seus primeiros dias de Academia Militar, as primeiras batalhas... Toda sua vida, todos os maiores momentos. O momento que a entrada ruiu, as primeiras brigas do esquadrão preso, o assassinato de Burch e Peter. A fome. A dor. O barulho. Boom! Boom! Booom!

– Olhe Clarke, não é tão ruim, você sabe a solução. - Disse o Soldado na frente de Clarke, segurava uma granada de bastonete, dessas criadas para estourar depois que um timer parar. - Vamos, você sabe o que fazer. - O Soldado mantinha um semissorriso bizarro, mas estranhamente reconfortante.

– Me desculpe por... Por isso. - Disse Clake ao Soldado olhando para seu rosto, enquanto pegava a granada com as mãos trêmulas.

– Não tem problema, eu teria feito o mesmo na sua posição, mas eu teria usado a faca. - Olhou para o banheiro onde a faca estava. - Pelo menos não ia ser caixão fechado e estragar o velório. - Brincou o Soldado dando de ombros e abaixando-os como em um suspiro.

– Obrigado. Você sempre foi um grande amigo, mas eu não consigo. - Disse Clarke abaixando a granada, mas logo parou quando o Soldado pegou em sua mão e ainda mantendo o sorriso incompleto no rosto, disse:

– Não tem problema, fazemos isso juntos. Amigos até a morte... Bem neste caso pós-vida, certo? -

– Sim, amigos para sempre. - Disse Clarke, enquanto enchia-se de coragem e puxava o pino da granada.

Um tique-taque baixo começou a tocar, logo um silêncio pesado tomou conta do Bunker. Não se ouvia mais nada além dos batimentos frenéticos do coração de Clarke e o tique-taquear da granada.

– Então é isso... - Disse o Soldado.

– É... - respondeu Clarke.

– Venha, me dê um abraço seu desgraçado. - Disse o Soldado puxando Clarke para um abraço apertado.

– Muito obrigado por tudo, Klaus. Obrigado...

Naquele momento, naquele intervalo de segundo, onde o tempo se estendia ao infinito. Clarke sentiu-se quente e seguro. Como nos velhos tempos, apenas crianças que viviam na mentira de um conto de fadas.


E sentiu-se feliz...


Boom!

~~~~ Arth 04/14


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