Setores de Sangue escrita por Carlos Junior


Capítulo 9
Capítulo 9: Sensações Passageiras




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O hall do hotel mergulhou em um profundo silêncio. Nada como aquilo havia acontecido durante tantos anos, chegava a ser assustador.

— Eu... — um dos guardas caídos no centro do saguão esforçava-se para erguer o tronco, era o único deles que sobrevivera, com apenas um tiro na perna. Um tiro que parecia não ter provocado muita dor no homem, já que não havia gritado ou apresentado sinais de fraqueza. — Eu quero os nomes!

— Não faça esforços! — alertou uma mulher, deixando a multidão para juntar-se ao vigilante. — Eu sou médica, não precisa se preocupar. — Informou ela, ajoelhando-se ao seu lado.

— Eu não me preocupo. — Respondeu o homem, de maneira ríspida, e voltando sua atenção para a multidão. — Onde está a recepcionista que atendeu os sujeitos?!

Uma outra moça, trajando o uniforme branco de recepcionista, aproximou-se.

— Robert Dodgers e Wilbur Glory — revelou. — Wilbur era funcionário em nosso hotel.

O guarda respirou fundo, provavelmente para afastar a dor em sua perna, e repetiu, de cabeça baixa:

— Wilbur Glory. — Conhecia aquele nome.

A mulher ao seu lado enfiou a mão na bolsa que carregava e retirou dela uma pinça e um conjunto de gases. Era possível melhorar a situação do homem, mas não cumprir o papel de um hospital.

— Você deveria estar mais preocupado com a sua perna — disse ela.

》》》

Robert e Wilbur haviam acabado de deixar Mustard, o bairro decadente do Primeiro Setor, para trás. Conforme Robert, que contemplava os edifícios reluzentes e coloridos que surgiam à sua frente, seguia com passos curtos, a infraestrutura alterava-se à sua volta.

Já havia um tempo que pararam de correr para se concentrarem na discreção. Teriam que encontrar o endereço de Eva antes que seus rostos fossem exibidos nos gigantescos outdoors espalhados pelo Setor e eles fossem oficialmente taxados como criminosos.

— Wilbur? — chamou Robert, baixinho.

Wilbur caminhava na frente, pensativo. Seu ato, tão impulsivo quanto a decisão imediata de Robert, trouxera lembranças para ele. Lembranças das quais esperava não lembrar.

— Wilbur? — Robert tentou mais uma vez.

— Deveríamos ter esperado uma hora — respondeu Wilbur, trêmulo, como se estivesse prestes a chorar. — Não havia problema em esperar mais uma hora.

Não havia nada que Robert pudesse dizer que aliviasse a situação ou o sofrimento de Wilbur. O que estava feito, estava feito.

— Eu sei o que você fez — declarou Robert, interrompendo seus passos rispidamente.

Wilbur travou por alguns segundos.

— E-e não precisa se sentir culpado por isso — Robert gaguejou antes de terminar a frase, não fazia a mínima ideia de como dar conselhos sobre sentimentos. Para ele, a morte não significava nada além da ausência de vida em um corpo, o que quase sempre o tranquilizou após todos os seus assassinatos.

— Eu não quero... — Wilbur pôs as duas mãos sobre o rosto, impedindo o fluxo de lágrimas que naquele momento dominara sua face. — Não quero falar sobre isso.

E ali ficaram, no meio de um quarteirão movimentado por pessoas indo e vindo em todas as direções. Tratava-se de um momento delicado. E mesmo que não possuíssem tempo a perder, havia alguma coisa naquele clima que merecia ser respeitada.

》》》

Clarice teclava incessantemente, havia um certo vício naquele movimento. Sentia-se profundamente frustrada por suas limitações e desejava compartilhar seu sentimento, através de metáforas, no blog pessoal que possuía na *rede*.

— O que você está escrevendo dessa vez? — perguntou um homem, surgindo de trás da cadeira giratória.

— Mais bobagens — Clarice sorriu. Sabia que poucos liam o que ela escrevia, mas isso não a desmotivava.

O homem inclinou o corpo para frente e desferiu um beijo em seu pescoço.

— Key — disse ela, rindo. — O que está fazendo?

Ela permitiu que seus dedos se afastassem do teclado de vidro e virou o rosto para o rapaz.

— Você sabe o que vai acontecer se meu pai descobrir sobre isso — a voz de Clarice era suave, e mesmo que aquilo fosse um alerta, não soava como um.

— Eu sei — Key aproximou-se de Clarice, pousou sua mão esquerda sobre a bochecha da garota, e a encostou seus lábios nos dela.

Clarice era dois anos mais nova que Key, possuindo apenas dezessete anos enquanto ele possuía dezenove. Aquele era uma espécie de romance proibido, ambos sentiam isso ao se beijarem, o que, consequentemente, apimentava a relação.

Key havia sido contratado para tomar conta de Clarice enquanto seu pai estivesse fora a trabalho. Porém, ninguém jamais imaginara que algo como o que estavam fazendo a dois meses fosse possível de acontecer.

Clarice levantou da cadeira, ainda beijando o rapaz, e o guiou até a cama no canto do quarto, onde, pelo menos, poderiam ficar um tempo juntos sem lembrar do que realmente deveriam estar fazendo naquele momento.

— Você me ama? — Clarice afastou o rosto de Key apenas para que ele pudesse respondê-la.

— Claro que amo — disse ele, rapidamente, puxando-a para mais perto.

Amor. Se existia, Clarice conseguia sentir, e era forte. Mas complicado.

》》》

— O que vamos fazer? — perguntou Mero.

Eva apoiava os braços na superfície plana da mesa de centro, desconfiada. Havia algo naquela informação que não se encaixava.

— Quando ele chamou você? — indagou Eva, encarando suas botas de couro.

— Na penúltima reunião — respondeu ele.

Eva sentia vontade de enfrentar Cour e obrigá-lo a revelar o que planejava, de uma vez por todas. Mas não poderia acusá-lo sem provas. Além disso, desconhecia a veracidade da questão.

— Vamos ficar de olho nele — concluiu Eva. — Qualquer atitude suspeita e o interrogamos. De acordo?

Smith assentiu com a cabeça.

— Por que não fazemos isso agora? — Mero permanecia com os olhos fixos em Eva.

— Como assim? — Eva tornou sua atenção para o pai, esperando por alguma intervenção.

— Não vejo problema — declarou Smith.

— Você quer que façamos o que agora, Mero? — repreendeu Eva, ecarando-o. — Vamos na casa dele e enchemos ele de perguntas?

— Exatamente! — exclamou Mero.

— Péssima ideia — Eva balançou a cabeça. — Ele não ia confessar.

— Mas talvez encontrássemos algo que nos ajude no assunto — Mero empolgara-se, gesticulando com as mãos. — Poderíamos até flagrar ele enquanto planeja essa missão arriscada.

Havia um ponto ali, Eva apenas não gostaria de admitir.

— Não vai funcionar — murmurou ela.

— Filha — interrompeu Smith, sorrindo. — Eu acho que você deveria ir.

Eva desviou o olhar e baixou a cabeça novamente. Seu pai havia opinado sobre o assunto, e, ultimamente, ela encontrava-se buscando fazer tudo que o agradasse.

Se acompanhar Mero em um interrogatório deixaria Smith feliz, então, provavelmente, era isso que deveria fazer.

— Vamos — Eva levantou da mesa de vidro e atravessou a sala, aguardando por Mero, que acabara de saltar do sofá, sorridente, na porta de entrada.

— Vamos — repetiu Mero.

》》》

A garçonete aproximou-se da mesa de número 11 e pousou uma garrafa de cor vibrante sobre ela.

— Glynd, senhor — informou ela, aguardando apenas alguns segundos para afastar-se da mesa.

O homem, que trajava um sobretudo negro, agarrou a garrafa e virou-a em sua boca. Aquela era a melhor bebida que já havia experimentado. Assim como seria sua última.

Ele pousou a garrafa gelada em sua coxa direita, ainda com a mão pressionando seu gargalo, e respirou fundo. Não sentia-se preparado para fazer aquilo. Mas também não deveria sentir.

Foi quando a chocou contra a mesa, resultando em sua partitura pela metade, e estudou a parte superior que encontrava-se em sua mão. Pontiaguda e afiada.

Com aquele pequeno gesto, já havia chamado a atenção de quase todas as pessoas do bar. Era, sem dúvida, a hora certa de agir.

Então, de repente, o homem levantou a cabeça, sorriu para o alto, e levou a parte afiada da garrafa, que tinha em mãos, até o pescoço, em um golpe letal.

Gritos e murmúrios isolaram o bar, enquanto seu corpo, ensanguentado, escorregava pela cadeira que outrora usara como encosto.

— Ele se matou? — perguntou uma das garçonetes, trêmula, atrás do balcão de bebidas.

— Parece que sim — respondeu um rapaz.

Mas suas mãos começaram a se mover, e em seguida, seu tronco. Aquilo não era normal. Algo estava acontecendo.


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