Setores de Sangue escrita por Carlos Junior


Capítulo 21
Capítulo 21: Luzes da Cidade




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Zack observava a parede, deitado sobre o piso gélido do quartinho quente de concreto. Sentia-se sozinho, desolado e abandonado, além do mais, não poderia estabelecer contato com absolutamente ninguém, ou poderia ser reconhecido dos anúncios de “procurado” pelos moradores (mustards, como eram chamados) e denunciado para o governo. Já havia se arriscado o suficiente saindo para comprar mortadela para a dama de cinco filhos, e não estava determinado a fazer aquilo novamente, só queria uma ininterrupta noite de sono.

Ele tentou acomodar seu corpo ao chão, mas o desconforto era inevitável, independente da posição que escolhesse. Também, não possuía cobertor ou casacos para protegê-lo do frio que fazia.

– Está acontecendo agora? – Zack escutou um homem perguntar do lado de fora do quarto.

– Silêncio! – sussurrou fortemente outra pessoa, em repressão.

A jugar pelo tema da conversa, algo fora do comum encontrava-se em ativa durante aquela noite. Felizmente, Zack não se importava com aquilo, e, fosse o que fosse, descobriria no dia seguinte, quando mais interessados comentassem a respeito.

– Parece que levaram junto a filha do presidente – informou outro homem, tentando soar o mais inaudível possível. Sem sucesso, evidentemente.

Zack não pôde deixar de escutar. Levaram a filha do presidente? Quem? Talvez tudo não passasse de rumores. Mas que tipo de rumores iriam tão longe? Zack encontrava-se em um debate interno sobre acreditar ou não naquela notícia, porém, de qualquer maneira, achou melhor continuar em alerta.

– E como você descobriu isso? – indagou alguém, curioso.

– Está sendo transmitido ao vivo – ouviu-se a resposta. – Lá em baixo, no primeiro andar, tem uma televisão, vamos descer.

E o som de passos velozes foram emitidos enquanto os indivíduos que dialogavam lá fora há pouco tempo, agora se deslocavam para o térreo.

》》》

Eva esmagava o acelerador, estava disposta a ultrapassar o carro de Peter e Hunk e liderar a sequência de veículos que seguia rumo à estação de trem. Agora que haviam perdido Cour e Martin, encontravam-se sem assistência, e alguém precisava cumprir a função

– Eva, o que você está fazendo?! – gritou Mero, assustado, no banco do passageiro.

Era a primeira vez que ele direcionava aquele tom de voz para ela. Mero deveria estar mesmo com medo, o que, de alguma forma, arrancou um sorriso de satisfação do rosto de Eva.

– Tem viaturas vindo da primeira rua à direita! – avisou Wilbur, do banco de trás, mostrando possuir boas habilidades como observador, já que nem Eva, nem Mero, haviam notado a aproximação.

Eva arregalou os olhos, Wilbur estava certo, à direita se aproximavam 3 ou 4 viaturas flutuantes, altamente resistentes e de elevado porte. Elas possuíam uma velocidade absurda e destruíam qualquer veículo que encontravam pela frente, além disso, seus faróis brilhantes e obsessivos exaltavam a beleza da cidade, em contraste com a noite escura, o que tornava aquela perseguição bem mais assustadora do que realmente era.

– Eva, o que fazemos? – perguntou Peter, subitamente, através do rádio.

Eva, então, pressionou o botão de comunicação com o primeiro carro para dar-lhes uma resposta. Já possuía uma estratégia em mente que considerava eficiente, mas arriscada.

– Vamos traçar rotas diferentes, cada carro para um lado – instruiu Eva. – Todos temos o mesmo objetivo, e temos suprimentos e armas em comum em cada veículo. Quem não conseguir ir, vai ficar e aguardar o resgate.

Pronto, agora era cada um por si.

Peter consentiu, e encerrou a comunicação.

– Mas como vamos fazer isso? Peter e Hunk tem mais suprimentos no carro deles do que nós temos no nosso – começou Mero, em oposição à decisão de Eva. – Assim como nós temos mais armas que eles tem no carro deles. E se um dos dois carros ficar?

Aquela pergunta já era esperada, e só havia uma maneira de destruí-la. A motorista aguardou que Peter e Hunk se encaminhassem para outra pista, mudando sua trajetória, para erguer a cabeça, e dizer:

– Significa que o outro vai ter que se virar com o que tem.

》》》

– Cour, vamos ter que chegar na estação junto com eles – disse Martin. – Nem antes, nem depois. Não vamos conseguir lidar com essa intervenção policial, sozinhos.

Cour concordou. Aquilo era, de fato, verdade, o que dificultava ainda mais as coisas, eles não possuíam armamento suficiente para ir contra uma frente militar, muito menos pessoas com habilidades de combate. Ali dentro daquele carro, com eles, estavam apenas uma adolescente de 17 anos e um professor desesperado.

– O que está acontecendo?! – exclamou o professor, mais uma vez, do banco traseiro. – Eu quero descer!

Cour conseguiu perceber a tentativa de Clarice para tranquilizar o homem desgrenhado, que se debatia constantemente. Ela insistia em dizer para ele que tudo o que estava acontecendo ali era obra de seu pai, e que estavam participando de uma espécie de missão secreta do governo a qual ninguém poderia saber, nem mesmo os aliados da família.

– Além disso – iniciou Cour, enquanto dirigia, em alta velocidade. Não resolvera contestar Clarice, já que talvez a presença daquele professor talvez aliviasse o pesar da garota de estar ali, e era isso que precisava no momento. – Todos os nossos rostos já estão nos telões do Setor inteiro, vamos ser mortos se pararmos, independente de estarmos do lado do presidente – ele encarou a adolescente pelo retrovisor, e piscou para ela.

Clarice ficou boquiaberta. Parecia surpresa com o fato de Cour ter escutado sua conversa, e, mais, de tê-la alimentado.

Satisfeito, Cour voltou a monitorar o ambiente interno do carro com sua visão periférica, e conseguiu perceber quando Martin escondeu uma leve risada que escapava de seus dentes cerrados. Possivelmente, só ele via graça naquela situação toda.

– Vamos acabar com as gargantas todas cortadas – disse Martin, antes de cair na gargalhada.

O professor, então, rapidamente passou a mão sobre a jugular, apavorado.

》》》

Cordon permanecia perplexo em frente a televisão do Quartel Pocial Vespertino. Não era possível. Séries de viaturas e motos oficiais perseguindo quatro carros ilustravam a tela e ele ainda não conseguia entender qual era o propósito de toda aquela mudança de planos. Dias atrás, ele mesmo estava envolvido com o projeto de recuperar as crianças perdidas, e já estava contando os dias para dar adeus àquela cidade grande e estúpida para se juntar em um motim externo. Agora, o que ele era? Um membro deixado para trás.

Será que Eva ainda possuía planos para ele? Provavelmente. Aquela mulher não era de descartar soldados do seu exército revolucionário tão facilmente. Mas, ainda assim, sentia-se

– Consegue imaginar por que tudo isso está acontecendo logo hoje? – perguntou Scadrish, em um tom um tanto provocador, pousando a mão direita sobre o ombro de Cordon.

Cordon sentia vontade de desferir um soco bem no rosto de Scadrish para que ele parasse de provocá-lo tão intensamente, além do mais, não estava de bom humor. Porém, manteve o controle, reconhecendo que a atitude só lhe traria mais problemas.

– Não faço ideia – respondeu Cordon, friamente.

– Tem certeza? – o sarcasmo dominava Scadrish de uma maneira que enojava Cordon.

Um silêncio angustiante dominou o cenário em volta deles, determinando uma explosão dentro do estômago de Cordon, já passara dos limites quando a questão era suportar Scadrish havia muito tempo.

– Scadrish – Cordon finalmente voltou sua atenção exclusivamente para o outro oficial, que agora exibia um sorriso convencido em sua face. – O que você quer? – perguntou, levemente agressivo.

– Ora, vamos – Scadrish não parava de sorrir. – Você sabe o que eu quero... – disse ele, sem colocar o braço a torcer. – Você sabe o que eu sei... – mais uma indireta. Não era a primeira vez que Scadrish induzia que sabia sobre a participação de Cordon no grupo de Eva, e talvez realmente soubesse, ou talvez só estivesse brincando com ele.

– Eu não vou participar do seu jogo – Cordon bufou, dando as costas para Scadrish. Estava pronto para ir embora, não iria iniciar uma briga com alguém de dentro da ala presidencial tão cedo.

– Ah, mas você já está participando. E o jogo não é meu – disse Scadrish, como se estivesse com orgulho de suas palavras.

Aquela frase evidentemente indicava que algo estava errado. Mas o que não estava? Tudo naquele país estava errado. Os setores e suas limitações, criadas antes para que os problemas de uma cidade não afetassem outras, naquele momento estavam ruindo, e levando consigo todo um sistema.

– Nós não passamos de peças em um tabuleiro de xadrez – prosseguiu Scadrish, enquanto Cordon se afastava gradativamente.

》》》

A iluminação minuciosa dos postes de rua poderiam atuar contra Eva naquele momento, mas não era o que parecia. Era como se Robert estivesse na presença de pessoas com capacidades muito além das que usualmente presenciava.

– Droga! – a motorista exclamava, enquanto se movimentava cada vez mais veloz entre os carros parados no trânsito, sem nem mesmo tocar em algum. Agia como se todo aquele cuidado na pista fosse comum, e nem se preocupava mais com os obstáculos em seu caminho.

Enquanto isso, Robert segurava a pistola com as duas mãos, temeroso do que poderia fazer para recuperar sua filha. O vento que vinha de fora do carro o atingia através da janela aberta, e ele sentia-se pequeno diante de toda aquela situação. Honestamente, estava em uma batalha que não era, de fato, sua, mas não poderia reclamar, pois era aquilo que o faria ter de volta o que lhe fora roubado, sua família.

O que Myrian faria? Myrian sempre fora a pessoa que o conduzia, já que ele nunca havia sido muito bom com estratégias, apenas agia conforme suas experiências diziam. Talvez um exemplo daquilo estava em sua saída do hotel em que Wilbur trabalhava, Robert era tão acostumado a circunstâncias de risco, em que precisava usar a força bruta, que nem parecia mais cogitar seguir um caminho limpo, sem ter que matar ou lutar com alguém.

E, ao que tudo indicava, ali estava uma nova Myrian: Eva. Alguém que poderia aproveitar suas habilidades de maneira racional e direta. Porém, aquela nova Myrian não era como a original, não possuía a doçura e o carinho de uma mãe, mas a objetividade e a persistência de uma profissional no que estava fazendo. Nem ao menos parecia humana.

Robert sorriu. Era irônico da parte dele pensar naquele tipo de coisa, já que ele mesmo sempre fora considerado o tipo de pessoa atípica, sendo encarado pelos outros como um ser frio e sem sentimentos, o que, obviamente, não era verdade.

– Vocês dois aí atrás – começou Eva, sem tirar os olhos do asfalto diante dela. – Vão tirando os conteúdos da mala do carro. Nós vamos pular.

Quando Eva emitiu aquelas palavras, Robert conseguiu perceber a expressão assustada de Wilbur. Para um funcionário de hotel que nunca havia vivenciado tanto perigo, ele estava se saindo muito bem.

– Por que nós vamos pular? – perguntou Wilbur, em um tom de voz pré-pânico.

– Só façam o que eu estou pedindo – respondeu Eva. – Explicações depois.

Robert, rapidamente, procurou um mecanismo na lateral do banco traseiro que o permitisse puxar o assento para frente e exibindo o interior do porta-malas do carro, possibilitando a retirada dos conteúdos que estavam ali. Estava a acostumado a receber ordens, portanto, aquilo não era problema para ele.

O veículo já havia se afastado consideravelmente das viaturas que o perseguia, e, após dobrar em diversas avenidas, entraram em uma rua praticamente deserta. Aquela era uma área suficientemente próxima da estação de trem para que alguém pudesse morar ali, portanto, não havia tráfego, muito menos pessoas circulando.

– Wilbur, me passe a pedra que está em baixo do banco de passageiro – pediu Eva, recebendo o objeto requerido quase que de imediato, sem, no mínimo, ser questionada sobre a existência de uma pedra sob o banco de passageiro. Pelo visto, Wilbur decidira parar de atrapalhar com suas contestações inconvenientes.

Eva pousou a pedra em seu colo enquanto pilotava, deveria estar pesando, mas ela nem parecia ligar.

– Preparem-se para pular! – gritou.

O carro permanecia em linha reta, na rua deserta, quando Eva colocou a pedra sobre o gancho superior ao acelerador para mantê-lo pressionado, e saltou. Todos os presentes fizeram o mesmo, recebendo um doloroso e insensível golpe do asfalto ao tocarem o chão.

Robert ergueu o rosto arranhado apenas para observar a caminhonete prateada de Eva sumir minuciosamente no horizonte. Continuava em movimento.

– Me sigam – disse a mulher, seguindo em direção a um edifício cilíndrico constituído praticamente de vidro e aço. Uma construção visivelmente futurística.

Ela se deslocou para a lateral da arquitetura, e puxou o que parecia ser um cartão de identificação de trabalho, da aba do colete de couro, vestido sobre o colete à prova de balas que também trajava.

– O que estamos prestes a fazer agora será a base de todo o plano – Eva caminhou alguns metros, até encontrar uma manivela de aço, ao lado de uma porta de vidro temperado, impossível de quebrar se não com força sobre-humana, e a empurrou. – Todos vocês precisam cooperar, por favor – ela apelava para a educação naquele momento como se fosse a única maneira de desenvolver uma trégua temporária entre Robert, Wilbur e Mero.

– Identificação, por favor – pediu uma voz eletrônica, oriunda da porta de vidro, logo após a manivela ter sido empurrada. Um fio de luz vermelho pairou no ar, como se aguardasse que algo passasse por ali, e, como esperado, Eva exibiu seu cartão de identificação diante dele.

O fio, antes vermelho, mudou de cor três vezes antes de apagar. Algo não estava certo ali, Robert conseguia perceber através dos detalhes daquele acontecimento.

– Esse não é um cartão de identificação comum – iniciou Eva, após a porta temperada se abrir, automaticamente. – Ele é de um homem que trabalha aqui, mas sua informação foi alterada recentemente para que, ao ser identificado no centro do salão principal, corrompa o funcionamento das câmeras e medidas de segurança do edifício durante cinco minutos.

– Cinco minutos? – perguntou Wilbur, seguindo Eva e Mero para dentro da construção. Robert seguia logo atrás, avaliando o ambiente a sua volta.

– É o tempo que vai levar até que o nosso “pequeno vírus”, instalado no sistema deles, seja detectado e dispare os alarmes do prédio – explicou. – Quando eu passar o cartão no visor de identificação central, eu preciso que vocês dois – Eva sinalizou com a cabeça para Robert e Wilbur. – Comecem uma contagem regressiva com esses dispositivos aqui... Esperem – a mulher se abaixou para pegar, em uma das bagagens que antes se encontrava no porta-malas, dois mini-relógios, e entregar a eles. – Eles são descartáveis, e é só apertar em um dos botões da lateral para começar a contagem regressiva dos cinco minutos.

Robert acenou positivamente com a cabeça, indicando que compreendera.

– Robert, você vai ficar aqui em baixo – Eva já estava dividindo tarefas novamente. – Com outra arma, não essa pistola – ela buscou com os olhos outra bagagem, dessa vez para entregar a Robert algo com mais poder de fogo. – Use essa – Eva empurrou para ele uma arma de fogo automática, perfeita para usar contra oficiais que utilizavam como forma de ataque apenas balas de revólveres. A questão era, como Eva conseguira todas aquelas armas? Ainda haviam umas cinco ou seis grandes armas dentro da bagagem, além de munições.

– Eva, o que está acontecendo? – expressou-se Mero, o qual havia ficado calado durante todo o percurso.

– Você, eu e Wilbur vamos subir – respondeu ela. – Nós temos trabalho a fazer lá em cima. Tome, essa é para você – Eva entregou uma espingarda a Mero. – E Wilbur... – Wilbur tomou nas mãos uma metralhadora leve. – Essa outra é para mim – disse, agarrando outra metralhadora.

Os quatro já se encontravam praticamente no centro do salão principal do edifício, onde catracas e maquinetas de identificação dividiam o cenário em dois, não passava para o outro lado quem não utilizasse os recursos eletrônicos de segurança. Aquele era realmente um local de trabalho.

– O que eu vou ter que fazer? – indagou Wilbur.

– Fique do meu lado – Eva permanecia em frente, seu semblante inabalável. Sua respiração devidamente controlada, e o foco previamente estabelecido. Semelhante a uma militar.

Ela aproximou-se das máquinas de identificação centrais e, assim que uma das câmeras do salão a detectou, pousou o cartão de identificação na maquineta mais próxima.

– Agora! – exclamou.

Robert e Wilbur apertaram o botão lateral de seus relógios, e a contagem começou. Os visores luminares dos dispositivos de segurança mudaram de cor drasticamente, como se estivessem sendo reconfigurados à força, e então, Eva atravessou a catraca, agora destrancada, seguida de Mero e Wilbur, instantaneamente.


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