Setores de Sangue escrita por Carlos Junior


Capítulo 20
Capítulo 20: O Primeiro Corte




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– Vai ser hoje - avisou Martin, ao telefone.

Hoje? - indagou Cour, em uma mistura de surpresa e decepção.

– Você vai ter que fazer Clarice se mover o mais rápido possível - prosseguiu, em um nível sonoro que mais se assemelhava a um cochicho, mas veloz. - Não temos muito tempo.

Martin encontrava-se caminhando lentamente ao longo da cozinha vazia de Eva, os hóspedes e os inquilinos encontravam-se dividos entre os depósitos da mulher, organizando os itens que seriam carregados por eles durante a perigosa expedição que traçariam em algumas horas. Martin estava encarregado de avisar aos outros membros do grupo a mudança de planos por telefone, e o primeiro membro a ser avisado fora Cour.

– Não se preocupe com isso - tranquilizou Cour, finalizando a ligação após breves instantes.

Assim que a conversa havia sido encerrada, Martin tratou de discar uma nova sequência de números. Permaneceria dando avisos até que todos estivessem cientes do que estavam prestes a tratar.

》》》

Bipes constantes foram emitidos do alto falante plugado ao computador de Clarice, sinalizando a chegada de mais informações a respeito das propostas estabelecidas pelo usuário anônimo que a ameaçava.

A garota escutava os sonidos com os punhos cerrados, sabia que os comentários que estavam surgindo naquele momento estavam relacionados ao discurso de seu pai. E bybca ficara com tanta raiva de seu atual presidente antes. Ela se levantou, e com uma determinação impressionante, foi até seu quarto avaliar as mensagens que havia recebido.

"Hoje", dizia o primeiro comentário. "Em uma hora na fronteira com a ala presidencial", mais uma. Clarice arregalou os olhos, não imaginou que o dia de que o conspirador misterioso estivesse falando pudesse estar tão próximo, tão próximo que seu destino seria determinado em alguns minutos. Tão próximo que sabia que a atitude que seu pai tomara há alguns instantes tinha a ver com isso.

"Saberemos se estiver mentindo". Realmente, não havia mais como manter o blefe, uma estratégia infalível apenas para planos a longo prazo, o que não era o caso.

Ela já encontrava-se inconformada, o presidente conhecia o risco que estava correndo ao decidir se pronunciar, e mesmo asssim, foi até o fim, adotando medidas severas das quais nem a garota tinha noção. Era culpa dele, mesmo que não completamente. Além disso, era o responsável por todas as manifestações que haviam surgido, desde o momento em que assumira o posto político e transformara o país em uma ditadura.

Clarice soltou o ar pela boca, como se precisasse expelir algo dentro de si que não a agradava. O próximo movimento seria sua forma de protesto, sua própria manifestação.

A garota tornou o rosto para o lado de fora do quarto, lá estava o professor, ainda encarando o televisor com um ar pensativo, como se estivesse averiguando as ideias.

– Eu preciso que você venha comigo - disse ela, iniciando uma discussão com o recém desperto instrutor disciplinar, que nem ao menos questionou a demanda, apenas estabeleceu uma condição:

– Vamos demorar?

– Não se preocupe com isso - respondeu ela, caminhando até a porta da moradia ocupada para verificar o número de pessoas que circulava pela zona residencial, local dentro da ala presidencial que abrigava a habitação formal do presidente.

Após abrir a porta, Clarice se deparou com uma pequena mochila, estrategicamente colocada em frente a residência. Ela ainda procurou vestígios do responsável por aquilo ao longo do perímetro que compreendia a casa, mas não havia nada que ao menos indicasse um suspeito.

Satisfeita, puxou a mochila para o lado de dentro. Já havia visualizado a quantidade de pessoas que rondavam a área, não eram muitas, mas com cuidado, poderia ultrapassar a fronteira como se o professor fosse seu condutor, tornando-o responsável pelo seu sumiço. Não era justo, mas era a única maneira de manter a preocupação de seu pai na ativa.

– O que é isso? - indagou o instrutor, aproximando-se da mochila de maneira cautelosa.

Clarice não respondeu, simplesmente abriu o zíper e exibiu seu conteúdo. Eram mudas de roupa, mas não qualquer roupa, uniformes de oficiais.

– Deixaram para o presidente? - o professor tentava criar uma conexão.

Não. A adolescente sabia que não eram para ele, identificando rapidamente as vestimentas recebidas como disfarces. Algum traidor, do interior da ala presidencial, era o verdadeiro culpado por aquela façanha, e talvez, o mesmo, pelas ameaças que estava sofrendo.

Ela retirou os uniformes escuros do interior da mochila, revelando a presença de mais ou menos 3 ou 4 unidades de tamanhos diferentes.

– Foi ele mesmo que deixou para nós - mentiu ela, sabia que se envolvesse o nome de seu pai, poderia fazer com que o professor agisse conforme suas vontades.

– Com que finalidade? - o homem parecia confuso.

– Não levantar suspeitas - revelou Clarice, pendurando-se em uma rede de mentiras. - Nós vamos para fora da ala presidencial, e ninguém pode saber. Só os de mais alto patarmar conhecem o propósito disso.

– Por que ele não nos conduz em um veículo particular? Não iriam nem se interessar.

– Eu não sei - continuou, sem encontrar uma resposta para aquela pergunta. - Mas eu não vou questionar as decisões dele - ela estendeu algumas peças das roupas da mochila para o orientador. - E é melhor você fazer o mesmo.

》》》

Era como se a ficha de Robert finalmente tivesse caído: estavam partindo, e ele sentiu como se aquilo não fosse o bastante. Passara aquele período de dois dias imaginando que Myrian estivesse distante, assim como Mayla, e da mesma forma que se prendia à ideia de recuperar a garota, incoscientemente pensava na possibilidade de recuperar a ex-esposa. Mas agora que finalmente resgataria Mayla, quem resgataria Myrian? E o pior, como?

Todo o sentimento que lhe faltara momentos após a morte da mulher, começaram a investir contra a sua sanidade, transformando aquele momento, então, na pior parte do dia.

– Robert? - perguntou Wilbur, tirando Robert da profundidade de seus pensamentos. - Está tudo bem?

Robert rapidamente tratou de alterar o semblante, temendo ter externado desconforto ou tristeza, e exibiu uma expressão séria e imparcial.

– Estou ótimo - respondeu.

O homem não gostava de sentir, seus sentimentos eram sua maior fraqueza, podendo facilmente conduzí-lo a derrota, por mais que parecesse inabalável, com sua personalidade forçada e inexpressiva. E como se já não gostasse de sentir, gostava menos ainda de externar. Ele era, acima de tudo, humano, e não um robô.

– Tem certeza? - insistiu Wilbur.

Wilbur lhe lembrava Myrian. A mulher sempre sabia quando havia algo de errado com ele, e persistia até que Robert contasse o que estava passando em sua cabeça, era assim todas as noites. Confiava nela, era a única pessoa em quem confiava, a única para a qual poderia externar os seus sentimentos e não se preocupar com isso depois. O problema era que ela não estava mais ali, e não confiava o suficiente em Wilbur àquele ponto.

– Absoluta. Eva já terminou de empacotar as armas? - desfocou Robert, para que Wilbur desistisse do assunto.

– Ainda não, Martin está ajudando ela com isso - Wilbur prosseguiu, desanimado, provavelmente entendera o que Robert acabara de fazer. - E os suprimentos estão a cargo do Mero.

Robert virou o rosto para o lado.

– Eu não confio nesse homem - falou ele.

– Somos dois - Wilbur cruzou os braços, e pôs-se a observar o corredor, enquanto pessoas iam e vinham, todas membros do grupo, com sacolas e malas pesadas até a amplitude da sala de estar.

Pouco tempo se passou, até que um garoto, aparentemente da idade de Mayla, se aproximou dos dois.

– Quem são vocês? - indagou.

Robert franziu a testa, ainda não havia visualizado o rapaz ali. Como era possível que alguém tão novo pudesse estar envolvido em um projeto tão sério?

– Hunk! - exclamou um homem, ao fundo, de certo seu pai. Ele puxou o garoto para perto dele, mantendo um pequeno grau de distância de Robert. - Me desculpem, ele não é sempre assim.

– Quem são eles, papai? - Hunk insistia na pergunta, dessa vez para o pai.

– São pessoas novas, filho - disse o homem, virando o rosto do garoto para Robert e Wilbur. - Prazer, me chamo Peter - ele estendeu o braço.

– Robert - Robert apertou a mão do homem, com um leve sorriso, dando espaço para Wilbur, em seguida.

Peter acenou positivamente com a cabeça, e se retirou. Ainda teria que responder a pergunta de Hunk de maneira mais convincente.

Quando achava que finalmente teria um momento de paz para retornar seu pensamento a ex-mulher, Robert recebera uma nova surpresa. Eva surgira do fim do corredor, carregando quatro malas nas duas mãos, com uma expressão de determinação.

– Bom, pessoal, é aqui que daremos início a tudo - começou ela, em alto e bom som - Vou estipular as tarefas, prestem bem atenção. - Ela jogou as malas no chão e começou a encarar periodicamente as pessoas para as quais desejava falar. - Martin, você vem comigo de carro até o trem. Robert e Wilbur também. Cour, Mero, você ficarão responsáveis por chamar a atenção caso sejamos percebidos. Peter, Hunk, vocês levarão algumas malas de suprimento e armas de médio porte para chegar na dianteira e se estabilizarem perto da estação. Hulla - a mesma Hulla que iria procurar por Zack, uma parte dos planos que não constava mais no projeto atual. - Você ficará atrás do grupo e usará o walk-talk para nos comunicar caso alguma coisa esteja errada. Essa é a equipe que vai comigo, o resto, fiquem e aguardem mais instruções - e, para concluir, utilizou sua clássica pergunta. - Estamos entendidos?

E em uníssono, a resposta foi um "sim".

》》》

O plano começara.

Em instantes, Robert e Wilbur já estavam acomodados nos assentos traseiros do carro, enquanto, para a infelicidade de Eva, Mero assumia o banco do carona, pois Martin informara ser mais eficiente como parceiro de Cour na hora de chamar atenção, uma tarefa de extremo perigo. Por mais que tivesse tentado argumentar, tudo o que lhe restara em questão de parceria fora Mero.

A mulher entrou no carro, e rapidamente pousou uma pistola sobre o colo de Robert.

– Se algo der errado - ela deu um sorriso desafiador.

》》》

Marshal caminhava, suavemente, para longe da sala em que gravara o anunciamento. Ele estalava os dedos, com uma sensação de que havia concluído um trabalho, e de fato, fora isso que ocorrera.

– Senhor presidente - Garbon aproximava-se dele, apressado.

– Diga Garbon - ele estava contente. Parou de caminhar, e aguardou que seu fiel confidente desse a informação que desejara dar.

– Os oficiais que monitoravam a casa de Eva detectaram movimentação - disse Garbon.

– O que? - Marshall franziu a testa, sabia o que aquilo significava. Ele apressou o passo, e tratou de dirigir-se até a cabine particular. - Garbon, mande Francy acionar os guardas noturnos. Eva Rifles é perigosa.

– Sim senhor.

》》》

O carro de Eva seguia em velocidade média, a alguns quilômetros do carro de Peter e Hunk, não poderia chamar atenção, então tratou de se comportar na pista como se fosse uma motorista ordinária em um dia comum.

Atrás, vinha Cour e Martin, seguindo a mesma trajetória. O plano seguia sem nenhuma falha, quando, de repente, o carro de Cour e Martin virou bruscamente para a direita e decidiu seguir um novo caminho.

– Porra! - gritou Eva, socando o volante. Era tão desbocada quanto Zack.

– Eu sabia que tinha alguma coisa errada com o Cour - pronunciou-se Mero.

– Quem ele pensa que é? - a mulher falava consigo mesmo. E, como fazia raramente, deu atenção à Mero. - Se Martin não conseguir deter aquele vagabundo dentro daquela porcaria de carro, eu vou acabar com a raça daquele desgraçado.

Código 104!– exclamou uma voz do rádio. Era Hulla. O código significava que estavam sendo seguidos.

Eva bufou, e acelerou o veículo, sinalizando com os faróis para que Peter, na frente, fizesse o mesmo. A noite encontrava-se densa, e as nuvens negras que circundavam a área, indicavam chuva no interior do setor.

A chuva no setor usualmente era identificada pela presença de nuvens de cor cinza, enquanto do lado de fora, havia uma coloração diferente para as formações úmidas que anunciavam a caída de água, era vermelho-sangue, e sua composição química também deveria ser diferente, causada pela intensa radioatividade de territórios não pertencentes a nenhum país. Nunca ouvira falar sobre as consequências daquela chuva radioativa, mas, em breve, estariam prestes a descobrir.

Eva dirigia esbaforida, e quando olhou pelo retrovisor, conseguiu enxergar o carro de Hulla fugindo, com força total, de duas viaturas e três motos, todos do governo, que se aproximavam em alta velocidade.

Eva! Eles estão me alcançando! – gritou Hulla, pelo rádio.

A mulher, desesperada, então apertou um botão para abrir as janelas traseiras.

– Robert! - gritou ela. - Tenta atirar no piloto de alguma daquelas motos!

Robert agarrou a pistola, apoiou o tronco de seu corpo na porta, determinou a mira do cano da arma, cerrou os olhos, e apertou o gatilho.

– Desse jeito nós vamos começar um tiroteio! - avisou Mero.

– Mero - grunhiu Eva. - Nós temos que nos preocupar agora só com a porcaria do trem.

Mero encostou-se novamente no banco, visivelmente sem desejo de continuar contestando, porém, ainda espantado.

Com sucesso, Robert atingira o pneu de uma moto no terceiro disparo, e ela saiu, desgovernada, da trilha de perseguição.

– Mais uma, Robert! - instigou Eva. - Estamos quase na estação!

》》》

Cour conduzia o veículo por uma passagem estreita, seu destino era nada mais nada menos que a fronteira que dividia a cidade da ala presidencial. Era hora de buscar Clarice.

Quando o carro finalmente alcançou a gigantesca porta de metal platinado que dava entrada para a ala restrita, Martin avistou duas figuras desajeitadas trajando uniformes de oficiais. Sabia que era Clarice, pois fora ele mesmo que mandara Key deixar as vestimentas na porta do domicílio de Marshall quando ele não estivesse, porém, havia alguém mais com ela.

Martin deu um tapinha no braço de Cour, sinalizando para que ele desacelerasse, e investiu sua atenção na garota disfarçada, próxima a eles.

– Entre no carro - mandou ele.

Clarice arregalou os olhos, mostrando indícios de que estava extremamente nervosa e incerta do que fazer. A garota virou o rosto para o homem que a acompanhava, e pediu:

– Venha.

– Ele não, só você - restringiu Martin.

– Ele é meu professor, não... - iniciou ela. Provavelmente daria mais razões para aceitar o rapaz na tripulação, mas os guardas que cercavam a resistente superfície gradeada finalmente a reconheceram, e começaram a sair de onde estavam para impedí-la de seguir viagem com um aparente desconhecido.

– Entrem, entrem, entrem - apressou Martin, ao analisar as circunstâncias em que se encontravam agora, não mais se importando com o rapaz que Clarice levava consigo.

A adolescente de 17 anos abriu a porta, e de maneira ágil adentrou o veículo, acompanhada pelo suposto professor.

A porta do carro permanecia aberta quando os oficiais que a perseguiam alcançaram o automóvel, porém, felizmente, Cour pisou fundo, aumentando a distância entre eles e os guardas cada vez mais rápido.

– Quem são vocês? - perguntou Clarice, arfando no banco de trás, encontrava-se assustada e exausta.

– Você não sabe quem eles são? - o professor tornou para Clarice, surpreso.

Martin sorriu, satisfeito, observando pelo retrovisor a organização de viaturas prestes a perseguí-los.

Etapa um, concluída.

》》》

A iluminação encontrava-se fraca, e o corredor, vazio. Não havia nada fora do usual, e era assim que ele gostava. Possuindo cerca de 22 anos de idade, Rodrik havia sido escolhido pessoalmente pelo presidente de C2P2 para coordenar o laboratório nacional, fonte das principais pesquisas científicas da região, por seu comportamento metódico e desenvolvimento sistemático.

Tudo no lugar. Ele costumava dizer a si mesmo, para sua própria satisfação, enquanto avaliava as condições da estrutura do lugar. Já estava quase no fim do corredor do terceiro andar da instalação quando avistou a luz esverdeada em tons neon, anunciando sua parte preferida do laboratório: a sala cilíndrica do grande tubo.

Saindo do corredor, encontrou o gigantesco tubo de vidro temperado, com um líquido bioluminescente em seu interior, mas não era o fluido que o fascinava, eram os cadáveres das pessoas que haviam sido usadas em alguns experimentos e agora desciam lentamente pelo tubo o que realmente o enlouquecia, no melhor dos sentidos.

O tubo saía do teto, e terminava apenas a alguns metros do chão, chão, este, que estava a quilômetros de distância de Rodrik, pois o rapaz estava mais ou menos suspenso no ar, se não fosse pela ponte metálica que começava no fim de um dos corredores do terceiro andar, e convergia, junto com as outras dos quatro andares, em diferentes altitudes, para rodear o grande tubo.

– Tudo no lugar – disse Rodrik, para si mesmo, e mais um corpo inerte, dessa vez de uma criança do sexo feminino, desceu o tubo.


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Notas finais do capítulo

Eu espero que estejam gostando da história, e o principal, que nada esteja ficando confuso. Qualquer coisa, podem reclamar diretamente nos comentários, eu aprecio imensamente críticas construtivas. Muito obrigado por acompanharem.



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