Ausência escrita por Laurent


Capítulo 1
Capítulo Único




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Quando alguém me pergunta quem é o meu melhor amigo, eu logo penso em Christer; ele provavelmente é a pessoa que mais me entende nesse mundo. A gente se conheceu quando era criança, e até agora nossa amizade perdura. É um irmão pra mim, praticamente. Mais do que o meu próprio irmão. O Chris é um camarada pra todas as horas, uma pessoa na qual eu realmente confio.

Mas ultimamente algumas coisas têm acontecido com ele.

Christer anda saindo muito pouco de casa. Costumávamos ir juntos naquelas festas de arromba no fim de semana, mas ele não quer mais saber disso. Eu até considerei a possibilidade de ele estar se tornando uma pessoa madura e crescida — mas logo descartei a ideia. Christer é o cara mais louco que eu já conheci, e não jogaria sua maluquice no lixo em troca de uma vida parada e tranquila.

Nós temos uma banda de rock alternativo novata, a qual ainda não nomeamos. Eu a criei. Sou o baterista, e ele é o vocalista. Tivemos essa ideia do nada. Ainda procuramos um baixista e um guitarrista pra completar, mas enquanto isso, marcamos todo sábado à noite para ensaiar. Estamos ficando bons, de verdade.

Só que Christer está faltando aos ensaios. Há um mês.

Alguma coisa está errada em relação a ele, é o que eu digo a mim mesmo. Mas será que devo interferir? Sou amigo dele, é claro que devo. Mas e se ele só estiver querendo ficar em paz por alguns dias, sem incômodos? Eu já me senti assim antes, talvez seja esse o caso dele.

Um dia depois de eu refletir sobre isso, ele me mandou uma mensagem no celular. Um emoticon de caveirinha. Hum. Interessante, parece que o Chris está voltando do exílio. Envio uma resposta, perguntando por onde ele tinha andado. Ele não respondeu.

Talvez seja melhor eu visitá-lo. Mas eu não fui. Na verdade, já era muito tarde quando ele me mandou aquela mensagem, e no dia seguinte eu tinha que acordar cedo. Que se dane o Chris, aquele louco, eu preciso descansar.

Mas ele não foi à aula no dia seguinte. Quem sabe estivesse doente, ou algo do tipo. Tentei conversar com ele, mas ele não respondeu a mensagem que eu mandei. Certo, eu já começava a reconhecer que estava ficando ligeiramente preocupado com o Christer. Ele nunca tinha ficado tão isolado daquele jeito. Mas talvez isso só fosse uma paranoia desnecessária da minha parte.

Mesmo assim, quando cheguei em casa, dei um telefonema na casa da mãe dele. Pensei em ligar para o próprio Christer, mas sabia que ele não iria me atender. Ele morava com o pai — que se divorciara da esposa havia algum tempo —, e este quase não ficava em casa.

— Alô? Eva? — a mãe do Chris aceitava que eu a chamasse pelo primeiro nome.

— Jan! Como vai? Por que está me ligando?

— Não é nada, eu só queria saber se... sei lá, se aconteceu alguma coisa com o Christer. Ele faltou à escola, e não comparece aos ensaios da banda há um mês.

Eu realmente esperava que ele tivesse um bom motivo para faltar aos ensaios.

— Ah, querido, o Chris não te contou? — a voz de Eva assumiu um tom cauteloso. — Ele está com depressão.

***

Desliguei o telefone e fiquei com cara de tacho. Depressão? Logo o Chris, que sempre vivia tirando sarro de tudo? Não, Eva havia se enganado. Pessoas loucas como ele não deveriam ficar tristes a esse ponto. Sem falar que ele era jovem demais para isso.

Continuei não acreditando naquilo. Achei que o Chris tinha mentido para Eva (ele não gostava muito da mãe), para ela parar de encher a paciência dele, ou pra fazer alguma brincadeira sem graça. Você deve estar se perguntando “Que espécie de filho é esse?”. Mas, no caso do Chris, eu diria “Que espécie de mãe é essa?”. Ela o tratava bem, e fazia o possível para mantê-lo feliz. Sempre o escutava. Mas, desde aquele incidente com o pai, Christer nunca mais tratou-a do mesmo jeito.

Lembrei-me do dia em que eu o conheci. Eu tinha sete anos, e fora mandado para a diretoria da escola por mau comportamento. A diretora não estava lá, e me mandaram sentar em uma cadeira enquanto ela não chegava. Não havia ninguém na sala, só um menino com o qual eu nunca conversara antes.

— Por que está aqui? — perguntou ele, logo que me sentei e a coordenadora que me trouxera foi embora.

Achei estranho ele querer saber. Mas falei, mesmo assim.

— Fui tentar dar um soco num outro menino.

— Como assim “tentar”? Você não conseguiu dar o soco?

— Claro que consegui — eu respondi, um pouco acanhado. — Só que eu acabei acertando a professora.

E então ele riu tanto que chegou a lacrimejar.

— E você? Por que está aqui? Aposto que não é por coisa boa — disse eu, um pouco bravo por ele ter caçoado de mim.

Ele parou de rir e me olhou sério.

— Estou aqui porque minha mãe é a diretora.

Realmente, eu não esperava por aquilo. Eu planejava mentir para a diretora Eva, mas agora que contara tudo ao filho dela, não havia mais escapatória. Droga, pensei. Naquela época, esse era o único elemento da minha lista de “palavras feias”.

— Por que está com essa cara? — perguntou ele.

— Só estou com medo. Acho que a diretora vai querer me expulsar, e minha mãe não vai gostar nada disso.

— Minha mãe não vai te expulsar — afirmou ele, calmamente.

— Como você sabe?

Ele demorou para responder.

— Eu vou pedir pra ela não te expulsar. Prometo.

— Por que está fazendo isso?

— Você parece ser legal — respondeu ele, e eu me perguntei como é que, naquelas circunstâncias, ele poderia me achar “legal”. — E, bem, porque você é meu amigo. Meu nome é Christer. Se disser que é nome de menina, te dou um chute no saco.

Ele estendeu a mão pequena pra me cumprimentar.

— Janus — disse eu, apertando a mão dele. — Mas é melhor me chamar de Jan. Os outros caçoam demais do meu nome.

Não entendi como ele podia me chamar de amigo sendo que nós dois nos conhecêramos havia menos de cinco minutos. Mas então eu compreendi.

Não fui expulso da escola, ainda bem. Depois do baita favor que Christer me fez, eu e ele passamos a conversar diariamente. Ele estudava em outro colégio, e só estava na minha escola naquele dia porque a dele estava em reformas, e a diretora Eva acabou levando-o até o trabalho.

Surpreendentemente, descobri que ele era um cara de poucos amigos. Por isso ele quis tanto arranjar um. Mas, ao contrário do que eu pensava que seria, a amizade com Christer não foi algo forçado ou entediante. Pelo contrário; nós nos entendíamos muito bem. Falávamos a mesma língua, uma língua que eu nem sei se os outros sabiam falar. Ele se tornara meu melhor amigo em questão de semanas.

E agora estava com depressão.

Eu tinha que ajudá-lo.

De volta ao presente, segui a pé até a casa do Christer. Chegando lá, bati na porta até cansar. Pra variar, o pai dele estava fora, e ele ficara sozinho em casa.

— Chris! Ei, Chris! — gritei. — Sou eu, o Jan! Abre essa porta!

Nada aconteceu. Bati com mais força.

— Abre logo, caramba!

Nada.

— Está bem, eu vou embora.

A porta se abriu após um instante. Eu sabia.

A aparência de Christer não estava muito diferente do habitual. Cabelos desarrumados, barba e o famoso piercing do nariz — Eva tinha ficado furiosa quando ele o colocara —, só que ele estava mais pálido e com olheiras.

— E aí — falou ele, com tão pouco entusiasmo que eu fiquei chocado.

— Chris — eu disse, entrando, enquanto ele fechava a porta. — Que porra é essa? Como é que você fica nesse estado e não me diz nada?

— Você não é minha mãe — respondeu ele, em uma falha tentativa de aliviar a tensão.

— Podia ter me dito que... que... — que estranho, era difícil falar aquilo.

—... Que eu estava com depressão? — completou Chris.

Eu demorei um pouco pra responder.

— Isso — falei, enfim.

Christer olhou para si mesmo, para baixo, encarando suas roupas. Estavam todas amassadas.

— Venha, vamos sentar, cara — disse ele, a voz monótona. — Quer comer alguma coisa? Tem chips, refrigerante, batatinhas.

— Umas batatinhas e um refri cairiam muito bem — eu falei.

— Então vai buscar.

Fiquei feliz pela depressão não ter levado a personalidade do meu amigo. Entretanto, eu estava com preguiça demais de ir até a cozinha. Chris se sentou no sofá, os pés em cima da mesinha de centro da sala de estar. Eu me sentei na poltrona, do outro lado.

— Você precisa me contar melhor essa história de depressão — comecei.

— Contar o quê? Não tem o que contar. Eu estou com depressão, fim da história.

— Desde quando?

— Não sei, acho que uns dois meses, ou mais. Não sei direito.

Ele não parecia estar a fim de conversa.

— E por quê? — indaguei.

Ele respirou fundo. Seus pés balançavam impacientemente em cima da mesa.

— É complicado demais.

— Acho que seria bom se você contasse, mesmo assim.

— Não vale a pena. Você não saberia me ajudar.

— Claro que saberia — eu duvidava um pouco da minha própria afirmação. — Anda, fala logo.

Ele refletiu um pouco.

— Acho que... — começou ele. — Acho que isso acontece desde que o meu pai se separou da minha mãe.

— A que se refere com isso?

Ele olhou para as próprias mãos.

— Me refiro a essa sensação estranha... uma coisa chata. Uma tristeza sem fim. Mas eu não me sentia tão triste no começo. Só piorei há algum tempo. Eu ficava repetindo pra mim mesmo que ia melhorar... mas não melhorei. É isso, não melhorei de jeito nenhum. E eu fui ficando cada vez mais desesperado, cada vez mais nervoso e... e...

Ele arfava. Meus olhos se arregalaram levemente. A coisa estava feia.

— Chris, calma, cara — eu disse, me levantando da poltrona e colocando a mão no ombro dele. — Calma. Respira fundo. Isso, isso. Quer um copo d’água, qualquer coisa?

— Não. Senta aí, eu não estou morrendo não — disse ele, a respiração um pouco mais tranquila.

Não era o que parecia. Mas eu me sentei de volta na poltrona, mesmo assim.

— Sua depressão é por causa do divórcio dos seus pais?

— Não. Mas isso ajudou a piorar.

— Então... qual é o motivo?

Chris ficou em silêncio, por um instante, balançando os pés na mesinha.

— Meu pai — disse ele, por fim.

— Seu pai?! O que ele fez pra você?

— Nada.

— Nada — repeti. — É, ele não fez nada mesmo. Como é que ele te deixa aqui sozinho sabendo que você está com depressão?

Ele respirou fundo. Parecia estar tentando controlar a respiração ou algo do tipo.

— Não é por isso. Eu sei que meu pai não é lá aquelas coisas mesmo. Mas a questão não é essa. Você sabe por que meus pais se separaram, não sabe?

Nós quase nunca falávamos daquilo, mas eu disse logo o motivo do divórcio:

— Eva o traiu.

— Isso — Christer não gostava de dizer aquilo em voz alta. Por causa disso ele morava com o pai, e não com a mãe, mesmo que esta fosse mil vezes mais cuidadosa. — Sabe que meu pai ficou arrasado com isso. E o que me deixou triste foi vê-lo nesse estado. Ele tem cinquenta anos, Jan. Passou vinte e três deles casado com a minha mãe, e agora ele está simplesmente no fundo do poço. Não tem mais ânimo pra nada. Mas esse ainda não é o motivo principal.

— E qual é?

Christer demorou para me responder.

— Eu sempre soube da traição da minha mãe, mas nunca disse nada ao meu pai.

***

Eu estava tentando ao máximo entender aquela história.

— Eu podia ter antecipado o divórcio dos meus pais— queixou-se Christer. — Quem sabe, se meu pai não tivesse se separado tão tarde, poderia ter aproveitado melhor a sua vida. Nos últimos dias de casamento, ele começou a beber e a fumar demais. O chefe dele tinha lhe oferecido uma promoção em outra cidade, mas ele rejeitara pra cuidar de mim e da minha mãe. Meu pai renegou sua vida por nós, e eu retribui esse gesto com mentiras. Ele é triste demais, é um cara que dá dó só de ver. E ele não era assim. Eu não queria isso pra ele, eu não queria mesmo, eu...

Chris voltou a arfar de novo, mas fez seus exercícios de respiração para se controlar. Quando se acalmou, passou a mão pelos olhos cansados e piscou duro.

Ele prosseguiu:

— Uma vez, quando voltei mais cedo da escola, peguei minha mãe se agarrando com um cara que eu nunca tinha visto na minha vida... quando ela me viu, mandou o rapaz embora, e começou a chorar, a implorar pra mim que eu não contasse nada ao papai. E eu não ia contar mesmo. Sabia que, se eu dissesse alguma coisa, minha vida e a dos meus pais mudariam. E eu não queria nenhuma mudança!

Eu não podia negar, aquela cena era triste. Ver Christer, meu melhor amigo, tão infeliz, era uma coisa para a qual eu não estava preparado.

— É isso que me quebra, Jan. Eu não aguento! É esse peso que me faz perder noites de sono, que me faz perder a razão. Eu estraguei a vida do meu pai. E agora, a minha vida está sendo estragada, do mesmo jeito. Eu me perdi, cara, e eu... eu não me acho mais... eu tento todos os dias dizer que essa depressão vai sumir, que meu pai vai ser feliz, mas ele continua mal. E eu me sinto mal por ser a causa disso. Eu não sei o que faço mais, eu tento não desistir...

Fiquei me perguntando o que ele quis dizer com “desisitir”.

—... Mas as coisas não funcionam de jeito nenhum. Sinto como se eu estivesse caindo de um precipício, e não tivesse nada a que me apoiar.

Eu nunca tinha ouvido Christer falar daquele jeito. Aquela voz não parecia dele, aquele rosto já não era mais o do Chris camarada que eu sempre conheci. O que acontecera com ele?

Eu precisava ajudá-lo urgentemente. Mesmo sabendo que seria difícil, e que talvez eu não conseguisse. Mas eu tinha que trazer meu amigo de volta à realidade. Não podia deixar que a depressão o levasse embora. Não, eu não ia deixar.

— Escute — disse eu. — Você pode achar que não, mas tudo acaba, Chris. Se até a vida acaba, por que não o resto? O que acontece é que existem alguns problemas que demoram mais para se resolver do que outros.

“Além do mais, eu não acho que você tenha estragado a vida do seu pai. Se quer culpar alguém por isso, culpe Eva. Ela o traiu, não você. Se ele está mal hoje, é por causa dela! Se você omitiu certas coisas pro seu pai... bem, você errou. Mas isso não quer dizer que você não possa consertar isso.”

— E como eu conserto? — quis saber ele.

Pensei um pouco.

— Sei lá — eu disse. — Mas a gente pensa em alguma coisa, Chris.

— Não sei como isso foi acontecer comigo, não sei mesmo — lamentou-se Chris. — Sempre tive vários problemas, mas eu os superava. Por que isso eu não consigo superar?

— Eu acho que é como se fôssemos corredores — comecei —, e tivéssemos que pular os obstáculos à nossa frente. Só que às vezes surgem obstáculos altos demais para nós, e acabamos caindo.

Ele prestou atenção no que eu disse, eu acho. Não dava para saber; ele estava olhando fixamente para baixo, com os olhos sem foco.

— Pelo visto eu caí, então — disse Chris.

— E agora você precisa se levantar e correr de novo.

— Se já caí uma, posso muito bem cair duas vezes.

— Não se alguém te segurar.

Ele olhou pra mim, as sobrancelhas franzidas.

— Você está me ajudando porque não quer que eu caia de novo, é isso?

— Sim — respondi. — E, bem, porque você é meu amigo.


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