A Herdeira de Hécate escrita por Rocker


Capítulo 4
Capítulo 3 - Shout




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/491260/chapter/4

A Herdeira de Hécate

Shout, Shout, Let it all out

These are the things I can do without

Come on, I'm talking to you, come on

Capítulo 3 - Shout (Tears for Fears)

Apesar de ter dito a Nico que iria à escola, eu ainda fiquei em casa durante uma semana. Não que eu não quisesse, mas depois que o vi indo embora naquela noite, eu não havia arranjado forças para mais nada. Dormia e acordava com sua jaqueta de aviador em mãos, sentindo seu cheiro delicioso e amadeirado, para ter certeza de que não havia sido mais uma alucinação da minha mente. Eu rezava para que não que fosse mais uma ilusão de alguma esperança de melhora em minha vida. Eu sabia que não podia continuar a viver assim. Chegava a ser deprimente até pra mim. Além disso, eu tinha feito uma promessa a Nico, e pretendia cumprir.

Então, agarrando a jaqueta dele como meu único fio de esperança - agora que eu teria que refazer todos os quadros -, levantei-me na terça-feira decidida a mudar minha vida. Coloquei as lentes para tampar meus olhos coloridos, uma calça cáqui estilo militar, um coturno e uma regata cinza desbotada. Minha avó insistia em me dar ao menos roupas dignas, mas eu preferia deixar todas elas numa mochila grande no fundo do guarda-roupa. Eu ainda sonhava com o dia de fugir dali, tanto quanto eu sonhara em me matar. Mas Nico me mostrara que a última opção não era das mais válidas.

Abri um sorriso sonhador ao perceber que pensava nele novamente, como tinha sido a semana toda. Suspirei, pegando minha mochila e saindo finalmente do quarto. Meu pai, Pablo D'Cleir, saía ao mesmo tempo do dele, meio abacado com sua samba-canção azul e regata branca larga. Podia sentir o cheiro do alcóol de longe. Revirei os olhos e fui até a cozinha.

– Não fala mais com seu pai não, garota?! - ele perguntou, a voz rouca de sono e do tanto de bebida que ele ingere desde que me entendo por gente.

Dei de ombros. Nunca conversamos nem nada, ele sempre me maltratava. Eu praticamente fiquei orfã, então tinha porquê disso. Peguei uma barra de cereal e a engoli rapidamente, enquanto andava até a porta da frente. Nosso apartamento era bem pequeno e com poucos móveis, e só ainda se mantinha de pé pelos meus esforços diários.

Estava quase abrindo a porta quando senti meu braço ser puxado e dei de cara com uma expressão de fúria nunca vista antes nas feições carrancudas de meu pai.

– Olha aqui, garota, sua mãe pode ter nos abandonado, mas me deixou você, então é melhor me tratar melhor. - ele disse, pingando veneno em cada sílaba, mas não fora seu tom que me chamou a atenção e me deixou entorpecida.

– M-mas você disse que ela... Que ela tinha sido morta... - murmurei, tentando recobrar a linha de pensamentos.

– É, eu menti. - ele disse, sem remorso algum aparente. - Mas ainda sou seu pai e você me deve respeito.

Gargalhei amargamente.

– Belo pai, que mal sabia o que acontece com a filha! Eu cheguei ao ponto de tentar cometer suicídio, sabia?! Ah, claro que não, porque você não se importa! - soltei tudo o que ficara entalado na garganta por anos. - Na verdade, nunca se importou! Nunca se importou com o fato de que sou uma adolescente com mais problemas do que deveria ter! Você é um bêbado desprezível... Tenho dislexia e TDAH, além de que me acontece coisas que eu só posso julgar ser minha imaginação! Já fui perseguida por bichos estranhos que eu sabia serem só ilusão e ainda tenho olhos anormais que mudam de cor! Tenho que usar lentes para escondê-los para não sofrer ainda mais na escola! E eu nem sei porque continuo indo e continuo cuidando de casa e colocando comida na mesa com a mesada que a vovó manda! Mas, sabe, eu cheguei ao ponto de quase acabar com tudo. Semana passada eu estava prestes a pular da Ponte do Brooklyn, se não fosse por um menino gentil e educado que me abriu os olhos e que eu provavelmente nunca mais vou ver na vida. Então não venha me dizer que eu lhe devo algum respeito, porque parece que no mesmo momento em que mamãe me abandonou, você também fez o mesmo!

E eu saí, simples assim.

~*~

Andei rapidamente pelas ruas até chegar ao meu colégio. E mais coisas estranhas aconteceram no caminho. Eu nunca tinha enfrentado meu pai antes, então isso atingiu bem meu emocional. Eu sentia as cores mudando ainda mais rapidamente por baixo das lentes negras. E as alucinações começaram. À medida que eu andava pela calçada, as destruições que meu humor causava aconteciam. Uma lixeira pegou fogo, um fio elétrico estourou e quase me torrou inteira, a calçada que eu pisava rachou ao meio. Até transformei um cão numa coruja. Mas eu ficava repetindo pra mim mesma, como sempre que essas coisas aconteciam.

"Isso é uma ilusão, Cristal, nada disso está acontecendo. É apenas um trabalho da sua imaginação fértil ao extremo".

Mas, dessa vez, eu não consegui me acalmar. Entrei no colégio sob o olhar atento dos alunos. Eu era a abominação. Eu era a estranha, a esquisita. E eu quase me acostumei, sabia que aquilo nunca ia mudar. Caminhei a passos rápidos até meu armário, na esperança de que se eu fosse ágil o suficiente, conseguiria escapar do Kyle. Era o chamada valentão, que toda escola tinha. Era aquele garoto que sempre me ferrava e sempre me batia e chantageava, sem se importar com a ética moral de que era errado bater em uma garota - mas ele tentava compensar sempre que tentava me agarrar à força. O ruim de ser de uma escola pública que não te expulsam, é que não expulsam ele.

Mas, como sempre, eu não tive sorte. Assim que fechei a porta do armário com alguns poucos materiais na mochila e me virei, dei de cara com o loiro fortão e metido a jogador de futebol.

– Olhem, caras, o que temos aqui! - disse com a aquela pose ridícula de fortão.

E eu queria fazer alguma coisa. Sempre quis bater naquele cara, mas eu não podia. Tinha a força necessária, mas não a coragem.

– Me deixa em paz, Kyle... - murmurei, quase implorante.

– Ora, a bonequinha implorou...

Fechei os olhos, virei o rosto e me encolhi contra o armário. Eu podia senti-lo mais e mais perto, prestes a morder minha bochecha, como costumava fazer. Mas então, de repente, ele não estava mais tão perto.

Aprenda a não mexer com garotas, babaca.

Então me dei conta.

Era ele.

Abri os olhos e dei de cara com ele, o garoto lindo e gentil que me impedira da morte e que eu passara a semana inteira pensando.

Ele estava ali, no meu colégio, me defendendo e me ajudando mais uma vez.

Nico di Angelo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Herdeira de Hécate" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.