Neo Pokémon Hoenn escrita por Carol Freitas


Capítulo 21
Para onde vão os órfãos




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                  8 meses  atrás...

 

               As ruas de Canavale estavam vazias, exceto pelo andar apressado dos carros. Não se viam pedestres pelas calçadas e até mesmo as lojas fecharam mais cedo naquele dia, a maioria delas não havia tido sequer um cliente o dia todo. Havia sido assim nos últimos meses, com a ameaça de uma doença misteriosa que vinha assolando a região, poucas pessoas se atreviam a deixar a segurança de suas casas para enfrentar as ruas cada vez mais frias com a chegada do inverno.

                O único lugar que ainda possuía certo movimento na cidade era o porto, que ainda mantinha um razoável transporte de mercadorias para essa e outras regiões. O preço das passagens já haviam caído várias vezes numa tentativa de ainda manter o fluxo de pessoas pela região. Poucos vinham para Sinnoh naqueles tempos, mas muitos decidiam sair.

                Era próximo daquele porto que uma jovem de pele e cabelos negros andava. Sua pele estava pálida e ressecada, bem como os lábios que chegavam a formar feridas. Ela vestia apenas um agasalho desbotado e gasto e grandes botas que claramente eram maiores que seus pés para proteger-se do frio. O queixo da menina batia e sua respiração condensava-se em sua frente à medida que ela caminhava e observava os navios do porto. Precisava chegar à Snowpoint, soubera que lá eles estavam empregando pessoas e necessitava mais do que tudo de dinheiro naquele momento.

                Caminhou algum tempo pelo porto feito de concreto até perceber que provavelmente nenhum dos donos daquelas grandes embarcações estariam ali e sim, no mercado local, onde eram feitas a maioria das negociações daquela parte da cidade. Mudou sua rota passando entre os armazéns cinzentos com seus tetos cobertos de neve. Seus passos eram vacilantes e trôpegos, era difícil caminhar com aquelas botas, por mais meias que colocasse. Se não bastasse, sentia seus pés enrijecidos pelo frio.

                O mercado não estava muito longe dali e antes de virar a esquina para vê-lo, o barulho intenso de pessoas gritando anunciando seus produtos chegou ao seu ouvido. Construído com o objetivo de abarcar o maior número de mercadores possível, não possuía paredes, apenas tetos marrons construído com algum metal econômico. Não era um local bonito, a maioria dos produtos estava espalhada sobre bancadas construídas sobre caixotes velho com pouca ou nenhuma higiene ou segurança. A maioria dos produtos vendidos ali eram frutos do mar e temperos, muito diferente do que fora a meses atrás, quando a região era conhecida por ter o maior ou um dos maiores comércios da região.

                Sentiu-se receosa em se aproximar, a maioria dos vendedores não possuía uma aparência simpática. Ela, com seu trajar evideciando que não tinha dinheiro, provocaria ainda menos simpatia. Deu passos pequenos e vacilantes enquanto observava as pessoas ali, procurando em meio aos rostos desconhecidos algum sinal amigável de que um pedido de ajuda fosse bem recebido.  Uma senhora um pouco acima do peso, de pele branca e cabelos cheios foi a escolhida como seu alvo de aproximação.

                – Com licença, senhora – Sua voz saiu áspera para os próprios ouvidos, fazia já algum tempo que não conversava com ninguém.

A mulher virou o rosto para ela e fez uma cara nada simpática, encarando-a com o mesmo olhar que se daria a um cachorro fedido que chegava muito perto.

— Não tenho nada para dar a você. Vá embora daqui – pronunciou a mulher em tom rude.

— Desculpe senhora, eu não vim lhe pedir nada. Apenas gostaria de saber se você poderia informar onde ficam os barqueiros que estão aqui no porto.

A mulher desviou o olhar da negra e apontou para a rua que seguia direto pelo mercado, depois voltou o olhar para a banca em sua frente sem dizer sequer uma palavra. A menina agradeceu educadamente, não recebendo sequer um olhar em resposta enquanto seguia em frente.

Enquanto andava, refletia sobre o que os tempos difíceis fazia com as pessoas. A gripe negra era uma doença cruel, passava como guilhotina nos laços construídos. Separava casais, famílias, amigos e tudo de bom que a pessoa fora ou fizera simplesmente se reduzia a pedaço de carne apodrecido no chão. Ela despertava o pior dentro da gente e a única coisa que restava no ser humano era a luta desesperada pela sobrevivência.

Procurava com o olhar o que havia sido apontado pela vendedora, até avisar no final da rua uma taverna de aspecto lúgubre onde alguns homens bebiam e conversavam animadamente. A maioria deles vestiam roupas brancas típicas de marinheiros, e, embora estas estivessem um pouco encardidas pelo uso contínuo, ela acreditava que eles ainda exercessem suas funções.

Ela sentiu medo em se aproximar, estar no meio de tantos homens a deixaria vulnerável. No entanto, não via alternativas em sua frente. A fome guardada e reprimida em seu estômago já se transformara em uma pedra gelada e dolorida. Decidiu aproximar-se sorrateiramente à beira das casas para avaliar o que via com o olhar. Coisa que talvez tivesse dado certo se as botas grandes não tivessem se prendido em um vão no meio da rua, fazendo-a tropeçar e ir ao chão.

Sentiu as pernas trêmulas ao levantar-se, no entanto, diferente do que estava esperando, a atenção dos homens não se voltara para ela. Algo parecia estar acontecendo do lado de fora do bar. A concentração de pessoas que antes estivera sentada e seus lugares agora se amontoavam do lado de fora vendo algo que acontecia sob as calçadas de pedra rústica.

Por um canto, à beira da parede pintada de cor amarelo limão, ela viu uma cena exótica. Um senhor alto e magro de meia idade, vestido com roupas rubras que seriam elegantes se estivessem no século passado. Com um bastão negro que também devia servir-lhe de bengala comandava uma trupe de pokémons desajeitados que saltavam de um lado para o outro fazendo acrobacias. No chão, um Farfetch’d simulava ser uma espécie de domador, castigando aqueles que errassem com golpes do talo que carregava em uma das asas. Ela conhecia aqueles criaturas saltitantes, eram Azurills, já havia visto alguns nascerem no Day Care de sua família.

O que era para ser um espetáculo coordenado a princípio, aos poucos se tornava um show barato de comédia. Sem conseguir manter o ritmo, aos poucos um ou outro Azurill caia no chão e era atingido pelo pássaro. Porém, quanto mais eram atingidos, mas desengonçados os Pokémon ficavam e erravam cada vez mais. O fato dos pokémons estarem com seus rostos pintados como um palhaço deixavam a cena mais bizarra, se é que era possível.

                Ela se afastou daquele círculo de pessoas. A cena estava lhe causando enjoos, não suportava ver aquele tipo de maldade ser cometida contra pokémons. Pensou em dar mais uma olhada dentro do bar agora que este se encontrava mais tranquilo, no entanto, antes de entrar sentiu uma mão áspera segurando-lhe no ombro e puxando-a para trás.

                Aquele que puxara não era uma figura nada bonita, ao contrário, a lhe causou arrepios de asco e uma vontade incontrolável de puxar seu braço e correr para longe dali. Possuía uma grande barba crespa já quase toda branca e um sorriso de dentes amarelados. A cabeça estava coberta por um lenço azul imundo, mesmo estado que o resto de suas roupas. Exalava um cheiro de bebida misturado a suor acumulado por dias.

                – Me solte – Ela ordenou enquanto puxava o braço magro, mas o aperto do homem não cedeu, pelo contrario, ficando mais forte a ponto de quase machucá-la.

                – Está perdida, garotinha? Precisa de ajuda para chegar em casa? – perguntou com voz rouca.

                – Me solte ou eu vou gritar...  – Juliana tentou soar o mais ríspida que conseguiu, porém o desespero ainda era audível entre as notas de sua voz.

                – E quem irá te ajudar? Se você está em um lugar como esse, é porque não tem mais ninguém – deu uma risada seca – Venha comigo. Levarei-te até minha casa e cuidarei de você.

                Os olhos dela encheram-se de lágrimas devido ao medo, sabia que estava sozinha e indefesa. Sabia que ninguém apareceria para ajudá-la. Estar naquela situação, com fome, frio e presa por alguém bem mais forte que ela a fazia se sentir mais vulnerável ainda. Seu interior revirava-se numa mistura de terror, vergonha e desespero.

                – Louise! Você está aqui. – Uma voz fez-se ouvir atrás dela, fazendo o bêbado erguer o olhar – O que está fazendo com minha sobrinha, Edson?

                – R-Roberto, essa é sua sobrinha?  - Perguntou o homem, em sua voz era audível o medo por trás da surpresa.

                – Sim, ela é. É melhor você sair daqui e ir procurar o que fazer.

                O homem apenas confirmou com a cabeça rapidamente e saiu dali, soltando o braço da negra que àquela altura já estava dolorido. Ela virou-se para ver quem a ajudara, não o tinha feito até então para que sua expressão não denunciasse que não o conhecia.

                Em sua frente havia um homem muito alto, seu rosto exibia o cansaço acumulado por anos. Os olhos castanhos e frios encaravam-na, mas ao mesmo tempo passavam por ela, como se estivessem perdidos em uma época distante. Os cabelos negros e a barba farta cobriam-lhe quase todo o rosto.

                – O-Obrigada... – murmurou ela em tom de agradecimento. Apesar de tê-la ajudado, seu instinto de sobrevivência recusava-se com todas as forças a confiar em um desconhecido.

                – Não deveria estar aqui  - Disse ele, como se não tivesse escutado uma palavra do que ela dissera.

                – Eu não tenho para onde ir...

                – Isso não importa. Canavele não é mais um lugar onde as pessoas deveriam vir. Não importa o quanto tentem restaurá-la, tudo o que resta aqui são fantasmas e o lamuriar eterno daqueles que perderam tudo que um dia tiveram. Essa cidade é um cemitério de almas esquecidas.

                Após pronunciar as palavras simplesmente continuou seu caminho, a cabeça e os ombros baixos pareciam carregar um enorme fardo invisível. Aquela altura, o treinador exótico já recolhia seus pokémons e catava os trocados que foram-lhe dados pela apresentação. Ela teve medo que a atenção dos outros ali se voltassem para ela, por isso correu atrás do tal homem chamado de Roberto.

                – Senhor... Desculpe-me incomodá-lo outra vez, mas preciso chegar a Snowpoint – Ela falava ofegante enquanto tentava alcançar o ritmo dele – Você conhece algum barco que vá naquela direção?

                – Nada que você poderá pagar...

                – Por favor, senhor...

                Ele finalmente parou de andar e virou-se para ela. Analisando-a com o olhar, talvez fosse a primeira vez que vira os olhos dele realmente focados nela.

                – Qual o seu nome?

                – É Juliana...

                – Onde estão seus pais? – Ela encarou o chão. Vendo que não iria obter uma resposta, Roberto prosseguiu – Duas vezes na semana um barco de cargas sai daqui e vai para Snowpoint comercializar com os mercadores da cidade.  Às vezes, por um alto custo, eles também levam pessoas, mas não recomendo você ir com eles. Tipos como aquele que mexeram com você trabalham aos montes lá.

                Juliana apenas assentiu com a cabeça, ouvindo atentamente o que lhe era dito.

                – Daqui cinco dias farei uma viagem rápida a Jubilife. Lá você poderá pedir às autoridades locais que lhe arrumem um transporte para Eterna. É para onde vão as crianças órfãs – a ultima palavra teve certo peso sobre a garota, cujas mãos se fecharam inconscientemente.

                – Entendi.

                – Se quiser minha ajuda, esteja no porto ao amanhecer do quinto dia. Se atrasar-se, a deixarei para trás – Com essa última frase, o Roberto recomeçou a andar.

                – Obrigada! – A negra agradeceu, mas não teve certeza se ele ouviu.

***

                A noite estava ainda mais fria naquele dia, se é que ainda era possível. Por sorte, naquela noite não havia nevado, fazendo com que ela conseguisse se manter escondida nas sombras de um velho galpão a beira do cais. Comprimia o corpo magro contra a parede enquanto esfregava as próprias mãos numa tentativa de esquentá-las.

                Ficara a tarde toda à espreita pelo porto, tentando descobrir qual era o barco mencionado por Roberto. Se tivesse sorte, talvez ele saísse hoje ou no dia seguinte. Ela não poderia ficar mais cinco dias na cidade, o pouco dinheiro que ainda restava para se alimentar estava acabando. Por fim, ela tivera sucesso, vira alguns marinheiros transportando caixas para dentro de um grande navio com containers.  Algumas pessoas também haviam entrado, uma delas havia sido o homem excêntrico que fizeram a apresentação bizarra que vira mais cedo.

                Um vento forte a atingiu mais uma vez e ela encolheu seu corpo. A essa altura, sentia que os dentes começavam a se chocar uns contra os outros. O que mais desejava naquele momento era uma lareira ou uma cama onde pudesse se aquecer, até mesmo o abrigo de uma porte serviria para fugir do vento. No entanto, ela não poderia sair dali, talvez outra chance não aparecesse tão cedo, talvez até morresse de fome ou frio antes. Precisava ficar ali e esperar pacientemente o momento em que os homens se distrairiam e ela pudesse se aproveitar disso.

                Agora a noite, pareciam restar poucos trabalhadores, apenas dois homens traziam caixas enquanto um terceiro dentro do barco ajudava a acomodar as mercadorias. Os dois homens saíram mais uma vez e ela se questionou quando o terceiro finalmente iria sair quando o barulho de algo pesado caindo no chão fez-se ouvir.

                – Seu idiota! Se danificar essa mercadoria o chefe vai comer seu fígado! – gritou o homem de cima do barco.

                – Idiota é o seu pai! Já viu como essas merdas são pesadas? Ao invés de ficar aí se achando o mandachuva deveria descer aqui e nos ajudar! – respondeu algum dos homens. Sua voz parecia vir de algum ponto mais distante.

                – Você é um inútil mesmo -  resmungou o primeiro e desceu pela rampa que eles estiveram usando, indo em direção aos outros dois.

                Ela viu sua oportunidade diante de seus olhos e no segundo seguinte correu com o máximo de cautela possível para o barco, com os olhos e ouvidos atentos à movimentação ao redor. Seu coração palpitava de medo, mas manteve-se firme ao ponto de passar pela plataforma e pular para dentro do navio poucos segundos antes dos marinheiros surgirem com uma grande caixa cujo conteúdo não podia ser visto.

                Ela correu pelos containers até encontrar um vão entre eles e entrar ali, o corpo emagrecido facilitara a tarefa. Mais tarde, quando todos estivessem adormecidos acharia um lugar melhor para se esconder. Em seu interior, sabia que era errado fazer aquele tipo de coisa, porém não lhe restavam mais escolhas. Viver em Eterna não era possível, não mais, não com o que ela precisava fazer. Menos de meia hora depois o navio saiu do porto, o que seria algo estranho se não fosse o local onde estivesse. A Polícia Regional havia comandado o esvaziamento da cidade e do porto, fazer transporte de pessoas como o que o navio estava fazendo provavelmente deveria ser proibido ou, no mínimo, visto com maus olhos.

                As horas passaram-se lentamente. O contato com aquela estrutura de metal deixava seu corpo ainda mais frio, se é que isso era possível. Ela precisava sair dali, não adiantava nada ter consegui transporte para o outro lado da região se tivesse uma hipotermia na primeira noite. Levantou e, com cuidado, observou o ambiente ao seu redor. O céu estava nublado, dificultando sua visão. Não havia ninguém patrulhando por entre os containers por isso ela decidiu se arriscar a caminhar por entre as estruturas para achar um local onde pudesse se abrigar do frio.

                Lembrava-se de que, no momento em que entrara as pressas, ter visto nos fundos do barco uma possível escada que daria para o andar inferior. Não era o local mais seguro e aquecido, mas ao menos serviria de proteção contra as intempéries climáticas. O interior estava escuro, sendo iluminado somente por uma estreita faixa de luz produzida pelo vão da escada. Um cheiro de óleo misturado ao que parecia ser ração para pokémons.

                Pelo alcance de sua visão, conseguia ver muitas caixas de madeiras sobrepostas umas sobre as outras. Um leve som de engrenagens e metal em atrito indicava que o motor daquele veículo imenso não estava longe dali. Num dos lados próximo á uma parede distante ela visualizou um amontoado de sacos do qual se aproximou. Era dali que vinha o cheiro de ração, a maioria das pessoas poderia considerá-lo desgradável, mas trazia a jovem uma ligeira lembrança de tempos mais felizes onde sua única preocupação era ajudar os pais a cuidar de pokémons deixados ali por treinadores. Ela sufocou toda a enxurrada me memórias rapidamente, pensamentos como aquele doíam e ela já sentira dor por um período prolongado demais.

                Um leve ruído chegou então aos seus ouvidos, chamando-lhe a atenção. Vinham da direção para o qual ela ia. Parecia uma mistura de ganido com o soluçar de um choro. Pensou em se afastar, poderia ser um pokémon agressivo, e contra algo assim não teria forças para se defender sequer de um ataque. Seu campo de visão era pouco, mas ela conseguiu ver uma pequena criatura, idêntica àquelas que vira se apresentar mais cedo com o artista de roupas exóticas. O Pokémon inicialmente não pareceu ter notado a presença da negra ali, porém um leve balançar de orelhas anunciou que ouvira seus passos e ele virou os olhos lacrimejantes em sua direção.

                O pequeno Azurill ainda tinha seu rosto quase completamente coberto daquela maquiagem estranha com o qual se apresentara, apresentando algumas partes borradas que mostravam q ele tentara removê-las de alguma forma ou ela simplesmente lavada por suas próprias lágrimas. Ele olhava para Juliana com medo, os olhos negros estavam arregalados e o corpo arredondado tremia.

                – Oi pequenininho – Ela abaixou-se para tentar ganhar a confiança da criatura – Você está bem? Está perdido? Venha aqui.

                Em resposta, o roedor fez uma cara ainda mais assustada e se afastou mais. Ela teve medo de que ele começasse uma crise de choro e atraísse a atenção dos marinheiros para aquela área.

                – Não se preocupe, eu não sou uma ameaça, tá vendo? – Estendeu os braços e as mãos magrelas – Provavelmente sou mais fraca do que você – Ele a encarou com uma expressão duvidosa, mas aproximou-se com pequenos passos. A negra pode ver que ele mancava.

                Um ruído de passos fez ambos se assustarem eles vinham da parte de cima do convés e aparentemente se dirigiam à escada por onde ela entrara. A garota se desesperou, ali não era um bom local para ela esconder-se. O pokémon ao seu lado também se assustou, esquecendo todo receio de momentos antes e escondendo-se por trás das pernas dela.

                Tateando pela parede ao seu lado e com o outro braço estendido a frente, ela caminhou cuidadosamente para não derrubar nada. Podia ouvir os passos se aproximando, chegando até o vão da escada onde uma luz que deveria pertencer a uma lanterna aumentava seu foco cada vez mais. Dois homens desciam as escadas e conversavam entre si, ela não pode entender do que falavam, mas a presença deles significava que ela devia sumir dali o mais rápido possível.

                Como se sentindo seu medo e sua presença, o foco da lanterna foi diretamente em sua direção. Talvez por um acaso de sorte ou simplesmente obra de Arceus, ela encontrou uma porta semiaberta por onde entrou. Aquilo parecia ser uma sala de depósito onde eram guardados equipamentos de manutenção e alguns materiais de limpeza. O cheiro de água sanitária era forte e fazia seu nariz arder. Desesperada para achar um lugar para esconder-se, ela se enfiou por debaixo de uma mesa de madeira, puxando um caixote para sua frente. Rezava para que, por todas as bênçãos de Palkia, eles não decidissem olhar por ali.

                O pokémon azulado a seguira e a encarava perdido e com medo, sem saber onde se enfiar. Ela não entendia porque ele simplesmente não fugia e corria de volta para os braços de seu treinador, mas ao agarrá-lo e puxar em sua direção, sentiu o corpo frágil tremer e soltar um pequeno gemido que pareceu ser de dor. Trazendo-o para próximo de si, ela sussurrou o mais baixo que pôde no ouvido do Pokémon para que o mesmo ficasse o mais quieto possível. Não sabia se ele iria fazê-lo, na verdade, temia que acabasse denunciando a localização dos dois, porém no momento não tinha escolha.

                – Tenho certeza que escutei algo por aqui, cara – disse uma voz masculina alta – E acho que era um Pokémon, vi uma sombra se mexer depois que passei a lanterna.

                – Você deve estar ficando maluco, John. A gripe negra deve ter afetado seu cérebro antes do seu pulmão – Outra voz o respondeu. A garota teve a impressão de que a mesma lhe era familiar.

                – Cale a boca seu velho desgraçado e caquético. Se há alguém com um parafuso a menos esse alguém é você! – a primeira voz respondeu ríspida – Se for um pokémon, principalmente um daqueles Bidoofs nojentos, temos que achá-lo pra não deixá-lo comer nossa comida.

                O segundo homem deu uma risada alta e grosseira. As vozes estavam muito altas e praticamente do lado da pequena sala em que se escondiam. Ela podia ver o brilho das lanternas, se a porta estivesse totalmente aberta, provavelmente teria visto a silhueta dos corpos dos dois homens que discutiam entre si.

                – Como se algum pokémon fosse se interessar por essa coisa velha e fedida que vocês chamam de ração. Nem mesmo um Raticate desnutrido comeria essa porcaria.

                – Bem, acho que esses coitados da região não tem muita escolha, tem? – deu uma risada maldosa enquanto – Merda! Esqueci a droga do cigarro no quarto. Me arruma um aí, eu preciso de paciência pra procurar essa porcaria de castor.

                – Você vai arrumar o seu porque eu não vou te dar nada, mesmo porque não estão aqui. E outra, não vou perder meu tempo procurando algo que você acha que viu.

                – Qual é, cara? Você sempre tem um cigarrinho ou outro. Arruma aí, ! – insistiu a primeira voz.

                – Já disse que não tenho, inferno! E suma daqui antes que eu decida te dar uns chutes - retrucou o segundo.

                Ouviu os passos se afastando e deu um pequeno suspiro aliviada, aparentemente estava segura. Apertava com tanta coisa o pequeno Azurill em seus braços que era surpreendente que o pokémon não houvesse lhe respondido com um ataque. Por alguns segundos, tudo se aquietou e ela pensou que finalmente poderia sair de onde estava escondida.

                No entanto, o destino era imprevisível e o mundo não protegia as crianças. O caminhar lento de apenas uma pessoa agora podia ser ouvido, porém dessa vez eram firmes e iam diretamente naquela direção. Ela ouviu a voz do segundo homem novamente e daquela vez, conseguiu se lembrar onde a havia ouvido pela primeira vez.

                – Eu te vi entrar aqui, garotinha – disse ele – Que tal sair pra gente conversar um pouquinho? Acho que você gostou mesmo de me conhecer.

                Ela sentiu um arrepio de medo se passar pelo seu corpo acompanhada de náuseas que a fizeram levar a mão a boca. O braço ainda exibia as equimoses produzidas por aquele sujeito que agora estava do lado de fora esperando por ela. Saiu debaixo da mesa rapidamente, precisava subir no lugar mais alto do armário e ficar o mais longe do alcance daquele homem. Colocou o Azurill no ombro e se pôs a subir, o instinto de proteger a pequena criatura era mais forte do que a consciência de que seria mais fácil para ele escapar sozinho.

                – Bem, já que você não vai sair, vou ter que ir até aí te buscar – Ele se aproximava, o foco da lanterna crescia.

                A negra ainda não chegara ao topo quando ele entrou na sala. O cheiro de tabaco misturado a álcool impregnou o ar revirando ainda mais seu estômago. Era realmente a mesma figura. O fato de agora estar vestido com vestes devidas de marinheiro não o tornava menos assustador, pelo contrário, era como uma figura saída daqueles livros que contavam histórias sobre navios fantasmas. Ele a procurou com o olhar e deu um sorriso de deboche ao perceber o que ela tentava fazer.

                – Não dificulte nossas vidas, menina. Você vai acabar se machucando subindo aí.

                – Me deixe em paz! – gritou ela já colocando a mão da última prateleira. Iria lançar as coisas que ali estavam no chão e se enfiar por aquele vão. Ainda não sabia se deveria gritar, o medo de atrair mais figuras como aquela era maior.

                – Te deixar em paz? Você que veio atrás de mim aqui e agora quer se fazer de difícil. Roberto miserável, tentou nos atrapalhar, mas você já mostrou o que quer – sua risada ecoava alta. Ela se esforçou, só faltava fazer força mais uma vez e conseguiria estar longe daquela criatura horrível.

                Em um movimento abrupto ele segurou uma das pernas da garota que lhe servia de apoio. Ela gritou e puxou o membro em resposta, mas o aperto do homem era firme e ele a puxava com força em sua direção. Seguiu-se uma batalha de forças na qual algo muito mais precioso do que a vida estava em jogo. Azurill ainda se agarrava nela, estava aterrorizado e chorava a plenos pulmões. Quanto tempo demoraria para que outro viessem ali?

                O resultado da peleja não fora dependente do esperado. Ela estava fraca, emagrecida pela fome e tristeza. Os pequenos dedos suados não resistiram à pressão e ela sentiu seu corpo cair, desabando sobre uma mesa de madeira que cedeu ao impacto. A estante de metal que antes segurava também cedeu para frente, porém, prendida por uma corrente na parede do barco para não cair nos maus tempos, apenas deixou cair uma série de objetos, fazendo-a levar as mãos ao rosto para não ser atingida.

                Ela sentia todo seu corpo doer. O lado direito de seu corpo ardia muito na altura das costelas, não duvidava que com a queda houvesse fraturado alguma. Sua cabeça girava e sentia um líquido quente escorrer por sua nuca. Ela levou a mão ao local, constatando um ferimento que com certeza precisaria levar pontos. Suas lágrimas estavam presas na garganta, a dor era que deixava seus sentidos confusos.

                Aquele ser nojento e sem escrúpulos aproximou-se dela. O toque asqueroso da mão áspera fez seu corpo estremecer.

                – Eu avisei que era melhor vir por bem, garota. Vou te levar para fora daqui onde poderemos ficar sozinhos e mais a vontade – Se moveu a para colocar os braços por baixo dela e carregá-la.

                O rosto da garota queimou. As lágrimas que estavam presas a segundos atrás escorreram em resposta à toda humilhação, toda maldade que um ser humano era capaz de fazer ao outro sem necessidade. Ela, que já sofrera tanto nos últimos tempos, teria que submeter a isso, mais uma situação degradante que acabaria com o resto de sua dignidade. A mão que se sujara com seu próprio sangue pendeu ao lado do corpo. Um objeto frio e comprido que parecia ser de metal chegou ao seu tato e o agarrou.

                Pouco pensou no que fez a seguir, talvez o instinto de sobrevivência lhe tivesse feito reunir todas as forças que lhe restassem para lutar por sua própria vida. O frio cano de metal, que depois ela descobriu se tratar de um pé de cabra foi de encontro ao crânio do velho fazendo um barulho estridente. Seu corpo foi ao chão juntamente com aquele que a carregava.

                Ele gemia com a mão sobre a cabeça de onde um líquido escuro e quente escorria. O calor do momento ainda preenchia o corpo da menina. Raiva, tristeza, medo, indignação, dor, solidão, desprezo, todos misturados numa correnteza descontrolada fazendo-a ajoelhar-se e acertar de novo a cabeça de seu agressor. E outra vez. E outra. Acertou mais algumas vezes até ver o rosto se converter em uma massa sangrenta disforme estirada contra o chão. O vômito atingiu-lhe a garganta e ela não o conteve, vomitando toda parca refeição que fizera naquele dia.

                Suas pernas tremiam quando ela se levantou. Pensava muito pouco no que fazia, apenas tinha a consciência de que deveria estar o mais longe possível dali. Não sabia se o homem sobrevivera, não tinha coragem de se aproximar para conferir. Fosse qual fosse a resposta para aquela dúvida, nenhuma a pouparia do destino terrível que lhe caberia caso a encontrassem ali.

                Com as pernas trêmulas, ela voltou ao andar superior, encontrando um barco surpreendentemente silencioso e vazio. Por bondade de Arceus ou de qualquer um dos deuses que regiam o sono, o barulho feito no andar inferior não despertara os passageiros do sono profundo para o qual se imergiram dentro de suas cabines.

                Juliana correu até um dos botes salva-vidas e com os dedos enrijecidos tentou soltar um dos botes. Precisou limpar as mãos sujas de sangue em sua roupa para conseguir fazê-lo. Quando por fim,  obtendo sucesso, entrou no bote para descer a si mesma junto. Numa última olhada pelo barco, viu que o pequeno Azurill pintado estava parado onde ela estivera a poucos segundos antes, olhando a com uma cara triste.

                 – Você quer vir? Mas não posso te tirar de seu treinador – os olhos do roedor brilharam de lagrimas novamente – Ok, venha. Precisamos sair logo daqui – Ela fez um sinal para ele que saltou para dentro do bote. Seus passos eram tão leves que mal puderam ser ouvidos.

                Ela desenrolou a lona que cobria o bote e procurou nos fundos do mesmo, geralmente sempre vinham com compartimentos com itens para sobrevivência dos náufragos por algum tipo. Achando uma lata de água, abriu da maneira que pode e tomou grandes goles. A seguir, pegou os remos e começou a remar da melhor maneira que pôde, não tinha muito senso de direção. Iria para onde acreditava ser a direção certa até o cansaço a dominar. O Azurill olhava para frente da proa, hora ou outra vira-se para ver o que ela fazia, para logo em seguida voltar seu olhar na direção do oceano

                 – Você é um medroso mesmo, não é? Mas é tão pequeno. Pelo seu tamanho tem cara de que foi tirado de sua mãe muito cedo, não é?

                 O Pokémon a olhava sem esboçar reação, apenas caminhou em direção a ela subiu em suas pernas, se aconchegando em seu colo. Ela pegou o que restava da água, juntamente com uma gaze do Kit de Emergências e passou a limpar o rosto diminuto. As lágrimas desciam novamente por seu rosto conforme a ficha caia da situação pela qual era havia passado e pelo que poderia ter feito a uma pessoa. No entanto, manteve seu fico naquilo que fazia.

                – Eles nem se quer se dignaram a tirar essa coisa do seu rosto – Comentou com voz soluçante e trêmula. Ao passar um pano por seu corpo, ela notou as falhas e diversas regiões de textura e consistência alterada. O pokémon se encolheu ao sentir o toque em algumas, ela finalmente entendeu que se tratavam de cicatrizes. Quando acabou, pegou o roedor entre seus braços e o abraçou com carinho – Está tudo bem. O mundo é cruel para aqueles como nós, que não tem mais ninguém, mas nós vamos ficar bem. A partir de agora seu nome será Nigel.

                As nuvens negras e pesadas cederam então ao toque do vento e a lua finalmente surgiu no céu pela primeira vez naquela noite, iluminando jovem e pokémon. Ambos pequenos demais para a idade, ambos órfãos de família e do mundo, que também não se importava com eles. O barco balançava suavemente com o movimentar das ondas e ainda fazia muito frio.


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Notas finais do capítulo

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