Um ano depois

Afrodite corre de um lado a outro do cômodo desesperada. Ares apenas revira os olhos sabendo mais de oitenta por cento daquilo tratar-se pura e simplesmente de exagero e drama, mas ai dele caso abrisse a boca para reclamar de uma só palavra. A deusa do amor prontificara-se para assumir seu papel de especialista neste ano, mas via-se agora organizando as comemorações feito louca, desesperada para que tudo saia perfeitamente e sem ter a menor noção de estar no caminho certo nestes últimos ajustes da celebração.

Atena ria-se sozinha ao observar as ações estabanadas de sua irmã, mas foi só ameaçar levantar-se da poltrona localizada no canto esquerdo do salão para que Afrodite se apressasse em impedi-la.

— Na na ni na não, dona Atena! A senhorita vai ficar quietinha e repousar – a reles ameaça de um revirar de olhos a fez acrescentar mais que rapidamente – pelo bem do bebê.

— Okay, okay, está certo.

— Eu vou dar uma saída para trazer o bolo e os docinhos porque quero tudo perfeito e logo as pessoas vão começar a chegar! E você trate de me obedecer, viu?

— Pode deixar que eu vou cuidar da minha corujinha, Dite.

— Ai, Poseidon, todo mundo sabe que você é suspeito no que diz respeito às vontades dessa loira... Mas tudo bem, comportem-se, eu volto já já, maninha.

A deusa do amor deixou o salão levando Ares consigo. Atena e Poseidon permaneceram quietos, apreciando a tranquilidade do local que os havia unido. Tranquilidade esta que não perdurou por muito tempo, visto que, se a gravidez deixa os hormônios femininos à flor da pele, o pequeno serzinho que crescia na deusa da sabedoria esgotara totalmente sua capacidade de conter a ansiedade e praticar a paciência que já fora sua marca um dia. Começou a remexer-se e alterar o peso entre um pé e outro, mesmo que sentada na cadeira e Poseidon gentilmente repousou uma de suas mãos em seu joelho, indicando para que se aquietasse.

— É que é muito frustrante ficar aqui sem fazer nada. – A justificativa saiu tão displicente de seus lábios e com uma leve pedancia de garota mimada que seu marido teve de conter-se absurdamente para não começar a provoca-la. Ao menos não ainda.

— Então vamos providenciar algo. Já sei! Conte uma história para Aletheia.

Parte de si acreditava que Atena iria provavelmente insultá-lo e dizer que o que buscava era participar mais ativamente da organização e exercer suas funções e não ficar sentadinha como uma boneca de porcelana, mas a realidade é que ela assentiu muito calmamente, digerindo a ideia, e foi acariciando suavemente seu ventre que começou a falar.

— Se Afrodite pudesse controlar os acontecimentos, filha, acho que tudo teria acontecido na primavera, mas a verdade é que era outono. Olhando para trás, vejo que por muito disfarcei a fagulha da atração entre nós atrás de uma fachada de despeito e muito preconceito oriundo da ideia de caráter que eu havia atribuído para o seu pai.

— Mais foi só me conhecer melhor para saber que não dava mais para mentir.

— Uhum. Algo assim, senhor ego gigantesco. Agora voltando, a gente criou essa espécie de tradição esquisita de celebrar as datas festivas dos mortais e ano passado o digníssimo Poseidon foi sorteado para ser o responsável pela organização do evento. Você pode imaginar o quão preocupada eu fiquei, Aletheia, considerando a total desorganização de seu pai. O dia dos namorados tinha tudo para ser um fracasso.

— A gente finge que acredita que desde o começo ela já não queria só uma desculpa para ficar comigo. Afinal, não é todo dia que se tem a honra de estar sozinha com um cara bonito e gostoso como eu...

— Olha a boca, seu energúmeno! Fale direito com meu bebê!

— Nosso bebê.

— Dá no mesmo. – Atena reclamou, mas o canto de sua boca estava sorrindo.

O deus dos mares para, então, de interromper a história, escutando atentamente, quietinho e maravilhado.

— Bom, a gente ainda se estranhou um pouquinho no começo, sabe, mas conforme os dias foram passando eu fui sentindo uma confiança e carinho cada vez mais fortes por esse bobão aqui. Mas posso te contar um segredo, filha? Foi esse jeitinho besta e bem-humorado dele mesmo que me conquistou. Além do mais, - afirmou piscando delicadamente para seu marido - ele é um ótimo cantor.

Por fim, Poseidon diz simplesmente, voz embargada: “Você será uma ótima mãe”, enquanto oferece-lhe a mão direita, convida Atena para levantar-se e dançar com ele sem praticamente sair do lugar, só curtindo estarem uns nos braços do outro. De olhos marejados, sussurra docemente a letra de uma canção para sua amada e sua vindoura filha, deusa da verdade absoluta. O mar não guarda segredos, afinal.

Someday

When I'm awfully low

When the world is cold

I will feel a glow just thinking of you

And the way you look tonight

Yes you're lovely

With your smile so warm

And your cheeks so soft

There is nothing for me but to love you

And the way you look tonight

 Seus pés mal saiam do lugar, mas a alegria de estarem juntos era ainda bastante nova e muito, muito encantadora e contagiante. Experienciavam juntos uma felicidade sem ímpetos de urgência ou desespero, mas sim repleta de plenitude, e da promessa de um futuro que, acima de tudo, era um presente.

With each word your tenderness grows

Tearing my fear apart

And that laugh

Wrinkles your nose

Touches my foolish heart

Lovely

Never ever change

Keep that breathless charm

Won't you please arrange it

Cause I love you

Just the way you look tonight

 O horário da festa se aproximava, mas ainda não haviam convidados e, de qualquer forma, os dois tinham um talento especial para isolarem-se do resto do mundo e curtirem seu pequeno universo particular. Iniciava-se o burburinho na antessala, vidro de vasos e copos estalando ao serem postos nas mesas, o aroma que deixava a cozinha preenchia o ambiente com calor e um sentimento aconchegante de lar. O Olimpo enfim estava em paz.

And that laugh

That wrinkles your nose

It touches my foolish heart

Lovely

Don't you ever change

Keep that breathless charm

Won't you please arrange it

Cause I love you

Just the way you look tonight

Hmm...

Hmm...

Just the way you look tonight

Os deuses chegam de mansinho, deveras encantados com o brilho e mágica que mais uma vez parecem ter tomado o salão, e vão logo encontrando seus lugares. Ártemis, entretanto, se aproxima de onde Apolo está, escorado em uma das pilastras, observando Atena e Poseidon trocando carinhos e acariciando a barriga já bem pronunciada da deusa. Talvez fosse mesmo o momento de se permitir finais felizes.

— Obrigada.

— Pelo quê?

— Por não desistir...

E ele sabia bem a que ela se referia.

— Nunca.

Suas mãos se enlaçaram e, mais do que uma oportunidade, era uma promessa.