Caçada escrita por Gabi Gomes


Capítulo 17
Hora Errada Para Ideias




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Abri meus olhos bruscamente, dando de cara com o teto do meu quarto, que tinha adquirido uma coloração prateada, devido à luz da Lua que invadia todo o cômodo pela porta de vidro que tinha ficado aberto.

Tentei me mexer, mas tudo que consegui foi ficar com uma enorme dor no corpo, o que me fez perceber que tinha caído no sono exatamente onde estava horas antes, no tapete do quarto. Passei minhas mãos pelo rosto e senti meus olhos ardendo e, com todo certeza, se eu me olhasse agora no espelho, seria visível um pouco de inchaço e vermelhidão naquela região.

Assim que meu cérebro começou a funcionar de um jeito razoável, vários pensamentos sobre a conversa com o senhor Kadam tomaram conta de mim, mas tentei esquecer aquilo enquanto procurava por um pijama qualquer para vestir.

Meu estômago roncava ferozmente, e tudo o que eu queria naquele momento era estar de volta ao circo para poder comer a deliciosa comida de Anne, enquanto Matt ficaria falando sobre coisas aleatórias que me fariam rir. Mas agora eu estava naquela casa idiota, junto com aquele tigre idiota.

“Não seja ingrata, Mia!”, rapidamente sinto um peso em minha consciência, e solto um suspiro pesado, me culpando por estar pensando aquelas coisas da pessoa que praticamente me tirou do inferno.

– Mas porque ele teve que esconder aquilo de mim? - Perguntei, frustrada, para meu reflexo no espelho.

Vesti meu velho pijama do Elmo, que ficava consideravelmente curto em mim, pois era da época em que eu assistia Vila Sésamo, aos domingos, junto com mamãe e papai. E ao mesmo tempo que tentava acabar com aquela batalha de sentimentos confusos dentro de mim, prendi meus cabelos em um rabo de cavalo frouxo e sai do quarto, tentando fazer o mínimo de barulho possível, passando por quase todos os cômodos escuros até chegar na cozinha.

Depois de alguns minutos abrindo e fechando as portas dos armários, consegui encontrar um pacote de bolachas doces e, com uma xícara de leite quente nas mãos, fui em direção a biblioteca.

Sabia que não encontraria ninguém lá, pois de acordo com o relógio da sala, já eram quatro da manhã. Mas eu queria que senhor Kadam estivesse acordado, queria conversar com aquele velho homem sábio, que transmitia-me uma paz enorme, como um pai.

Na verdade, acima de tudo, eu queria poder ter minha mãe ali comigo, afinal, ela era uma ótima pessoa para dar conselhos e, naquele momento, era tudo o que eu precisava.

Em meio aos milhares de livros espalhados pela mesa, encontrei o de mitologia indiana que Kadam tinha me indicado e, com tudo em mãos, marchei de volta para meu quarto.

Com pensamentos demais sobre tudo aquilo que estava acontecendo e sabendo que não conseguiria mais dormir, peguei meu caderninho de desenho e comecei a procurar pelo obsoleto Ipod que tinha ganhado de meu pai de aniversário. O aparelho grande demais para os padrões de hoje em dia, mal suportava uma centena de músicas, mas eu não me importava com aquilo, pois eram poucas as músicas que eu considerava boas.

A brisa fria bateu em meus braços, fazendo-me tremer enquanto arrumava a espreguiçadeira que ficava postada na varanda, ao lado do meu quarto. Abri o livro no capítulo sobre a deusa pagã da Índia, conhecida como Durga e engoli uma das bolachas, ao mesmo em que procurava por Hey Jude, a música que mamãe vivia cantando.

A melodia calma invadiu meus ouvidos enquanto meus olhos passavam pelas páginas amareladas do livros, e se por acaso eu estava pensando que ler seria uma boa maneira de tirar Kishan da cabeça, eu estava bem enganada.

O capítulo que eu tinha aberto contava a história da formação da Índia, a partir de uma grande guerra entre todos os reinos da Ásia contra um demônio, chamado Mahishasura. Após longos dias de lutas sem nenhum sucesso, uma deusa guerreira surgiu no campo de batalha, montada em seu tigre, eram Durga e Damon, criados pelos deuses especialmente para derrotar o demônio e, liderando o exército asiático, a deusa conseguiu a vitória e presenteou cada líder com um prêmio.

Durga pegou o amuleto que seu tigre usava e o quebrou em cinco fragmentos, distribuindo os pedaços entre dos reis, pedindo segredo sobre sua origem. A deusa instruiu os homens para usaram o amuleto para proteger e ajudar as pessoas, e depois, repassarem o presente para suas próximas gerações.

No final da página, a ilustração do que seria o amuleto de Damon completo, chamou minha atenção. Parecia uma moeda antiga, mas tinha o dobro do tamanho; era feito de um material bruto, com o entalho de um tigre no centro e com palavras em híndi em volta.

Rapidamente, peguei meu caderno e abri em uma folha limpa, começando a rabiscar fervorosamente o desenho que se encontrava em minha frente. Tudo o que se encontrava em minha cabeça sobre Kishan e Yesubai sumiu, dano lugar as histórias sobre a maldição que ouvi inúmeras vezes da boca do senhor Kadam.

Meu cérebro começou a me bombardear de ideias e teorias, enquanto minha mão continuava a trabalhar no desenho. E fiquei tão concentrada naquela tarefa, que não percebi quando alguém abriu as portas da varanda, vindo até onde eu estava sentada.

– Mia? - A voz aveludada de Kishan estava contida, mas ao mesmo tempo, preocupada. – O que faz aqui fora?

Pisquei com força, saindo do transe em que eu me encontrava. Balancei a cabeça e foquei meus olhos na folha de papel, que antes estava em branco, mas que agora continha inúmeras anotações e desenhos, que eu não fazia ideia de como foram parar ali.

Assustada comigo mesma, coloquei tudo de lado e voltei meus olhos para as íris douradas de Kishan, que ainda me estudava, de pé ao meu lado.

– Eu não estou com sono, então resolvi ler um dos livros do senhor Kadam. – Respondi, friamente.

Bilauta, por favor, me deixe explicar tudo isso. – Kishan jogou os braços para cima, em um ato cansado, e sentou-se no espaço vazio da minha espreguiçadeira.

– Não tem muito o que se explicar, Kishan. Você ama Yesubai e se sente culpado por sua morte. – Digo, como se estivesse contando o final trágico de um livro qualquer.

– Você não entende, Mia. – Ele suspirou pesadamente, passando as mãos pelos cabelos pretos.

– Então me faça entender. – Cruzo os braços e me ajeito na cadeira.

– Eu era jovem e apaixonado, achei que o que sentia por Yesubai era amor, afinal, não dava para olhar para ela e não se apaixonar, ela tinha um beleza exótica, era delicada como porcelana. – Me agitei por dentro, incomodada pelas palavras de Kishan. – Mas ela era vazia, apenas uma peça bonita que Lokesh usava para expor, enganando os olhos de quem olhasse a ingenuidade da garota.

– Não entendo por que ela nunca recusou as ordens de Lokesh. – Murmurei.

– Ela não sabia dos verdadeiros planos do pai, pelo menos era o que transparecia e, naquela época, as filhas mulheres não tinham voz, Mia. – Kishan prendeu meu olhar no seu. - Eu tinha entregado meu coração àquela mulher, e nós fizemos planos para fugir, mas Lokesh nos capturou antes que qualquer coisa ser feita. Ele nos torturou e, torturou Yesubai. O amuleto estava segando-o. Tudo o que me lembro daquele dia foi de ver Yesubai morta, com seu corpo flácido caído no chão e logo em seguida, Lokesh banhou seu próprio amuleto com nosso sangue, entoando algo como um feitiço.

Olhando para Kishan daquele jeito, parecendo tão triste, foi como sentir meu coração sendo esmagado. Conti uma lágrima de meus próprios olhos e tentei falar alguma coisa reconfortando, mas eu simplesmente não sabia o que dizer, então toquei seu braço forte com a mão, o que fez meu tigre virar sua cabeça para mim.

– Kishan, eu... – Minha voz estava falhada, por isso não continuei.

– Passei os séculos seguintes me culpando por tudo o que aconteceu. Eu e Ren estávamos presos em uma maldição, nossos pais estavam infelizes, tudo isso me fez ficar recluso por um tempo. Quando fui capturado pelo circo, passei anos preso atrás de grades de ferro, o que me fez mergulhar ainda mais em culpa. Mas você me tirou da escuridão, bilauta.

– Eu? - Arregalei os olhos, surpresa com aquelas palavras e, rapidamente, meu coração começou a ficar acelerado.

– Sim, você me fez ver através de tudo aquilo que estava me afogando, era como um porto seguro e finalmente consegui enxergar as coisas com clareza, percebi que Yesubai nunca me amou realmente, pois ela nunca sorriu para mim do jeito que você sorri, nunca me tratou com tanto carinho e preocupação. Aqueles sentimentos que eu tinha por ela não eram realmente meus, todos nós fomos manipulados, todos nós. Manipulados por Lokesh.

Minha respiração estava ofegante e parecia que havia uma manada de elefantes dentro do meu estômago, pisoteando-o. Minhas mãos suavam e eu não conseguia mais encarar Kishan, por isso, foquei meu olhar no desenho do amuleto, enquanto tentava ignorar os choques elétricos que percorriam meu corpo.

– Por isso eu preciso de você, Mia. Você me faz bem, pois é só eu ouvir suas ironias, ou ver seus olhos revirando enquanto ri, que eu começo a me sentir vivo novamente. – Senti seus dedos quentes tocando a pele do meu rosto, deixando um carinho leve naquela região.

– Kishan... – Eu queria falar alguma coisa, talvez despejar toda aquela loucura que eu estava sentindo, mas o seu rosto perto do meu, me desconcentrava, sua respiração pesada batendo em meu rosto, deixava-me embriagada.

– Eu quero você para mim, bilauta, para sempre. – A voz rouca de Kishan me fez perceber o que estava prestes a acontecer ali.

Tudo em volta de nós estava em silêncio, mas o som do meu coração batendo loucamente, era audível para mim e, aposto que para Kishan também. Fechei meus olhos quando senti suas mãos escorregando do meu rosto para meu ombro, até chegar na cintura, onde ele me envolveu com os braços.

Percebi que ele estava a poucos centímetros de mim, pois quase todas as partes dos nossos corpos se tocavam e, em um movimento automático, levei minhas mãos até sua nuca, passando os dedos nos poucos fios de cabelo que tinham ali.

– Você tem um cheiro maravilhoso, bilauta. – Kishan riu baixinho e eu provavelmente teria brigada com ele, fazendo-o explicar essa história de “eu cheirar bem”, se minha cabeça não tivesse explodido em milhares de pensamentos confusos.

Eu estava quase beijando aquele homem perfeito que se encontrava em minha frente, praticamente se declarando para mim, coisa que eu nunca imaginaria. Mas é claro que teria algo para estragar aquilo, e, infelizmente, foi eu.

Fragmentos da história que eu tinha lido agora a pouco, tomaram conta de mim. E tudo se tornou um flashback de algo que eu nunca vivi: o amuleto de Damon sendo quebrado em cinco e sendo entregue à cinco reis, o pedido de Durga para que o passassem para as gerações seguinte, a história dos príncipes-tigres, o plano de Lokesh e o estranho ritual de sangue que Kishan tinha mencionado.

Tudo parecia se ligar como uma teia de aranha em minha cabeça e logo, eu sabia que nem eu e nem Kadam iríamos precisar passar os dias procurando por informações sobre a maldição, pois tudo estava claro para mim.

– Eu sei como quebrar a maldição! – O meu grito ecoou pela noite, enquanto eu pulava para longe de Kishan, agarrando o caderno com o desenho do amuleto.

Eu estava eufórica, mas assim que olhei para os olhos dourados, e frustrados, do meu tigre, percebi que não tinha sido um bom momento para sair por ai tendo ideias de como quebrar uma maldição.

Continua...


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