Passado, Presente e Futuro escrita por Blue Butterfly


Capítulo 9
Presente de fome


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura ^^



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Quando ele acordou, a cabeça tinha parado de girar e as paredes pareciam tão sólidas quanto deveriam ser, o único problema era a cor azulada que as cobria, já que, até onde ele podia lembrar, as paredes de seu quarto eram da cor de gelo prateado. Seu corpo estava dolorido e ele tinha uma estranha sensação de rosto inchado. Tentou erguer a mão, a contração dos músculos doeu mais do que o normal e ele começou a se preocupar. Buscou sua última memória, tentando descobrir onde estava e porque seu corpo doía tanto, flashes começaram a surgir, extremamente embaralhados e confusos, revelando pedaços de uma noite fria, garotos o encurralando, Sako segurando um soco inglês, uma voz forte que ele desconfiava reconhecer até no inferno, gritando seu nome.

–Touya – Yukito murmurou.

Ele não tinha percebido, mas, deitado no chão, Touya encarava o teto também, absorto em pensamentos nada saudáveis que quicavam entre Kaho, Hiro, Sako e uma vontade incontrolável de mandá-los para um lugar nada agradável. Mas assim que ouviu seu nome, ele se sentou e olhou para o outro menino, esperando vê-lo ainda adormecido. Encontrou um par de olhos prateados o encarando de volta, os hematomas estavam mais escuros em seu rosto, deixando pouca área pálida exposta, a imagem era de desamparo e comoveu o coração do moreno, uma criatura tão frágil não podia ser machucada daquela forma.

–Yukito-kun – Touya disse num tom suave.

–Touya-kun – ele sorriu mesmo que as bochechas doessem com o movimento – Estou tão feliz em te ver.

–Que bom que você acordou – Touya ignorou a última frase, ele nunca foi bom em receber demonstrações de afeto e não sabia o que fazer com elas – Como se sente?

–Nada bem – o sorriso diminuiu – Onde estou? Voltei para o hospital?

–Não, está na minha casa, mais precisamente no meu quarto. Eu te encontrei caído na rua, você estava bem machucado, como não parecia nada grave achei melhor te trazer para cá. Desculpe, não sabia para quem ligar nem onde fica sua casa – Touya explicou.

–Não há ninguém para ligar – Yukito respondeu –Meus avós viajaram de novo.

A expressão de Touya endureceu e ele teve que perguntar:

–Yukito-kun, não há ninguém que possa ficar com você além de seus avós?

–Não – ele respondeu com simplicidade, a expressão vazia – Eles são minha única família, não há ninguém além deles.

O menino não parecia a vontade para tratar daquele assunto e Touya preferiu não insistir, decidindo que quando Yukito quisesse, ele falaria de seus avós e de suas viagens, então preferiu mudar de assunto:

–Lembra do que aconteceu?

–Sako me bateu – Yukito respondeu com uma careta – Ele estava muito irritado. Eu ia direto para casa, mas dai lembrei que tinha deixado o livro de química no armário e tenho que entregar o trabalho amanhã, não consigo entender essa matéria e precisava muito do livro, com isso acabei me atrasando, quando sai da escola, não havia mais nenhum aluno por perto. Sako me encurralou com mais dois amigos e acabaram me batendo um pouco. É tudo o que eu consigo lembrar

Era mais ou menos o que Touya previra, ele olhou para o menino menor sem saber muito bem o que fazer em seguida, foi o estômago de Yukito que respondeu a essa questão, rugindo deselegantemente e fazendo o pequeno corar.

–Vou buscar algo para você comer – o moreno falou se pondo de pé.

–Não – Yukito tentou se sentar, uma mão estendida como se fosse impedir Touya de agir – Não precisa se preocupar, eu já dei trabalho de mais.

–Tudo bem – Touya respondeu vendo o garoto voltar a deitar, provavelmente a dor era forte demais para que ele conseguisse sentar por conta própria – Não vai ser trabalho nenhum. Você é só um garoto, precisa de um adulto para cuidar de você agora e Oto-san disse que pode ficar aqui até melhorar. Quando seus avós chegarem, você pode ir para sua casa se quiser, mas até lá, ficará com a gente.

A voz era autoritária, Yukito já tinha captado aquelas pequenas mudanças de tom na voz do rapaz. Normalmente, ele era apenas sério, voz grave, desinteressada, com uma pontada de cansaço, como se o mundo e as pessoas fossem extremamente entediantes, com a irmã era um tom impertinente, cheio de desafio e zombaria, escondendo de forma quase convincente toda a ternura e cuidado por trás de cada monstrenga que era proferido, como jogador, sua voz era firme, lotada de autoridade e confiança – esse era o mesmo tom autoritário que ele estava usando naquele momento. Também havia um tom que Yukito ainda não conseguira classificar. Era um tanto encabulado, quase doce, trazendo imagens de rostos corados, manhãs de sol e sorvete de casquinha, algo muito doce e bom, ele tinha ouvido quando Touya o chamara de Yukito-kun e decidiu que aquele era o melhor tom de todos.

Touya se retirou do quarto sem esperar qualquer negativa que o menino machucado pudesse fazer. Na cozinha ainda havia restos do jantar e a sobremesa de Sakura uma vez que ela tinha deixado de comer sua parte para que Yukito tivesse a sua. O irmão mais velho quase sorriu, de todas as pessoas que ele tinha conhecido, nenhuma era tão boa quanto sua irmã, sua monstrenga barulhenta e desajeitada, sempre atrasada, que carregava um coração tão grande que ele não sabia como cabia em seu corpo minúsculo. Inicialmente ele reuniu uma quantidade normal de alimentos, só que antes que chegasse a porta da cozinha já estava voltando para pegar mais comida. Se ele estivesse certo, o estômago de Yukito não obedecia os parâmetros normais de fome.

Com alimentos suficientes para duas refeições, o moreno chutou a porta de seu quarto e encontrou um garoto de cabelos brancos sentado confortavelmente em sua cama, uma careta estava presente em seu semblante enquanto ele tocava com cuidado o rosto.

–Está doendo muito? – o moreno quis saber, deixando os pratos em cima de uma mesa e a arrastando para que ficasse perto do outro – Depois que comer, vou te dar um analgésico e podemos colocar um pouco de gelo.

–Não é tanto a dor, é mais o inchaço. Parece que meu rosto virou uma bola de futebol – e deu uma risadinha, tentando se imaginar.

–Coma – Touya mandou – Vou buscar seu analgésico.

Na verdade, ele queria dar espaço para o garoto, suas observações mostraram que Yukito não gostava de comer com outras pessoas, sempre fazendo isso escondido. Como cada pessoa tinha o direito de se envergonhar do que quisesse – Touya tinha uma vergonha danada de tudo que envolvesse elogios – se Tsukishiro tinha vergonha de se alimentar na presença de estranhos, ele não deixaria o garoto ainda mais desconfortável.

–Onii-chan?

Sakura surgiu no campo de visão do menino, usava seu pijama de ursinhos e imensas pantufas rosas.

–O que foi? – perguntou mal-humorado.

–Yukito-san já acordou?

–Sim. Ele está comendo agora, por isso é melhor deixá-lo em paz.

–Está bem – e um enorme sorriso invadiu suas bochechas – Eu estou muito feliz que ele esteja bem agora, você vai cuidar dele, não é Onii-chan?

–Vou – ele respondeu sem muita paciência, desviando da garota.

–Onii-chan!

Ela o segurou pela blusa, seu semblante ganhou uma gravidade que Touya nunca tinha visto antes, nem quando seu hamister (senhor Dingle para os íntimos) morrera no verão passado.

–Você vai cuidar de Yukito-san, não é mesmo? Assim como você cuida de mim e do papai?

Touya se abaixou, ficando na mesma altura de seu monstrinho. Com calma e seriedade, ele prometeu:

–Não, porque a forma com que cuido de você e de Oto-san é única, mas farei tudo o que puder para cuidar de Yukito-kun. Eu prometo que, se depender de mim, ele jamais vai apanhar ou se machucar.

Isso pareceu bastar para a garota, ela sorriu e voltou para o seu quarto. Touya foi até o armarinho de medicamentos e pegou o remédio que precisava, ele ficou um tempo sem fazer nada, parado no corredor. Os quartos ficavam no andar de cima, mas só ocupavam uma parte da casa e ele podia ver ali do corredor a sala, a porta da cozinha, o pequeno corredor que levava ao escritório e ao porão. A luz do escritório estava acesa, seu pai provavelmente estava trabalhando, há muitos anos que Oto-san passava horas trancado em seu escritório, trabalhando, ele tentava ter todas as refeições com os filhos, mas dificilmente aparecia fora desses horários. Quando pequeno, Touya tinha sentido falta do pai em vários momentos…

Ele deu de ombros e voltou a andar, como todas as noites abriu com cuidado a porta do quarto de Sakura, verificando que ela já estava deitada, os lençóis caindo pelo chão. Um sorriso paternal voltou ao seu rosto, ele arrumou os lençóis e deu um pequeno beijo na testa da menina, desejando bons sonhos a ela. Toda noite, desde que Oka-san não estava mais com eles, ele fazia a mesma coisa, era seu jeito de garantir que ela estava segura, protegida.

Quando saiu do quarto, voltou para o seu, pelo tempo Yukito já devia ter terminado de se alimentar. Hesitou na frente da porta, mesmo que fosse seu quarto, não podia só entrar, havia outro garoto lá que merecia respeito.

–Hã… Posso entrar?

–Pode – uma voz abafada respondeu.

Yukito tinha terminado, ou ao menos tinha comido tudo o que o moreno trouxera, o que era surpreendente, os cantos de sua boca estavam sujos de molho, fazendo com que ele parecesse uma criança pequena lambuzada de sorvete. Era encantador.

–Seu remédio – o moreno disse entregando dois comprimidos e um copo com água – Está satisfeito?

–Sim.

Mesmo de costas para o pequeno, ele notou que a voz do garoto ficou mais aguda e captou a mentira.

–Você está com fome? – a voz fria e séria.

–Não – ainda mais aguda.

Touya respirou fundo, estava na hora de esclarecer algumas coisas. Ele sentou na beirada da cama, tomando cuidado para não incomodar o outro, e começou:

–É o seguinte, se não quiser conversar sobre algo, eu vou respeitar. Mas não minta para mim, está bem?

Yukito concordou, envergonhado por ter sido pego.

–Yukito-kun, você está com fome?

–Sim. Na verdade, estou morrendo de fome.

Touya ignorou solenemente o intenso rubor que tomou o rosto do garoto e foi mais uma vez pegar comida para o outro. Naquela noite ele descobriu que Yukito comia o equivalente à três refeições de atletas até ficar satisfeito, e era bem possível que ele comesse muito mais antes que estivesse cheio, também descobriu que não havia nenhum problema em assisti-lo comer uma vez que aceitava a quantidade de comida sem fazer cara de espanto. Vê-lo comer tudo aquilo foi desconcertante, mas não era nada impossível de lidar.

Quando as luzes já estavam apagadas e os meninos deitados, Yukito na cama e Touya em um colchonete no chão, após Touya emprestar uma camiseta velha e o menor moletom que possuía – e que ainda assim ficara grande para o outro, o moreno perguntou só por curiosidade:

–Yukito-kun…

–Sim, Touya-kun – a risada escondida.

–Para onde vai toda a comida que você ingere? – ele esperava não ser indelicado, mas a curiosidade estava o matando.

–Para o mesmo lugar que vai a sua – Yukito respondeu rindo – Mais precisamente para o banheiro.

Touya revirou os olhos, mas ele merecia aquela resposta, tinha sido muito idiota em pergunta uma coisa daquelas.

–Touya-kun…

–Sim, Yukito-kun – e quase sorriu.

–Como se faz panquecas sem que elas grudem no teto?

–Basta jogar sem muita força – Touya explicou sorrindo com a imagem de um Yukito olhando desolado para o teto.

–Exatamente o que é jogar sem muita força?

–É o contrário do que você fez hoje no jogo.

Yukito aceitou a resposta, sorrindo para si mesmo.

–Yukito-kun…

–Sim, Touya-kun – mais uma risada.

–Quem cozinha na sua casa?

–Eu mesmo – Yukito respondeu com certo orgulho.

–E você sabe cozinhar? – a dúvida era muito clara na voz do moreno.

–Eu faço o meu melhor – Yukito respondeu com resignação, um tanto decepcionado consigo mesmo.

Ficaram em silêncio por mais alguns minutos, ao que parecia, nenhum deles conseguia dormir, mesmo que o barulho da chuva fosse um ótimo plano de fundo.

–Touya-kun…

–Sim, Yukito-kun.

–Você… Você está melhor? – a voz foi suave, praticamente um sussurro.

Demorou até que em outro sussurro o maior respondeu:

–Ainda não, mas um dia eu vou ficar. Obrigado.

–Disponha.

Eles estavam quase adormecendo quando a voz grave voltou a ser ouvida.

–Yukito-kun?

–Sim Touya-kun– a voz do outro lado veio molenga de sono.

–Pode me chamar de Touya. Só Touya.

–Então me chame de Yukito. Só Yukito.

E sem querer, os dois meninos sorriram ao mesmo tempo, entregando-se ao sono logo depois.

#####

Fujitaka acordou antes dos filhos para preparar um café da manhã especial para o seu convidado. Ele não tinha visto o menino acordado, a única imagem que tinha dele era a de um jovem inconsciente nos braços de seu filho, sujo de sangue e de lama, com o rosto visivelmente machucado. Mesmo assim, ele pareceu tão frágil, tão pequeno, nem parecia um colega de classe do seu filho mais velho.

No mesmo horário de todos os dias, Touya apareceu na cozinha, o rosto terrivelmente sério e o mau-humor matinal de todos os dias. Por experiência própria, o pai aprendeu que os dez primeiro minutos da manhã de Touya exigiam absoluto silêncio e espaço, ele vagaria pela cozinha, recolhendo os ingredientes que fosse usar, se ninguém ficasse em seu caminho ou tentasse iniciar uma conversa ele estaria comunicável quando Sakura aparecesse, nem mesmo o barulho de um passarinho era bem aceito por ele naqueles primeiros dez minutos.

Yukito veio logo atrás, bocejando e tomando todo o cuidado do mundo para não tropeçar nos próprios pés, não era comum ter sono uma hora daquelas, seu sono era efeito dos analgésicos – tivera que tomar mais dois de madrugada e mais dois agora de manhã. Ele parou assim que viu Fujitaka, seu coração perdendo algumas batidas, ainda que não tivessem sido apresentados, ele sabia que estava na frente do pai de Touya, aquele homem tinha que ser um pai, ele representava proteção, cuidado, segurança…

–Bom dia, você deve ser Tsukishiro-san – e Fujitaka se aproximou, sem se importar com a careta de Touya.

Yukito apertou a mão que lhe era estendida e sorriu de volta para o homem.

–Você me lembra meu pai – ele deixou escapar, sem conter a emoção que sobrecarregava seu coração.

Touya congelou, a chaleira na mão. Os olhos de Fujitaka cresceram, levemente surpresos, ele nunca esperaria por aquelas palavras, só que o menino a sua frente parecia tão dependente, tão inocente que ele quis ser, era injusto que ele tivesse perdido sua família. Sem se importar o quanto aquilo poderia parecer estranho, Fujitaka abriu os braços e recebeu o menino num abraço apertado, uma mão tocando de leve seus cabelos brancos.

–Sempre será bem vindo aqui – Fujitaka murmurou.

O abraço não durou muito, como se uma descarga elétrica os acordasse, os dois homens se separaram, o menino Kinomoto não tinha visto nada aquilo, ainda preparando o chá. Os olhos do mais velho voltaram a normalidade e ele ficou levemente confuso, sem saber como tinha se aproximado do jovem a ponto de estar quase o tocando. Na mente de Yukito uma mensagem surgiu “Esqueça. Agora!” e ele piscou, surpreso por Fujitaka estar tão perto.

–Sou Yukito Tsukishiro, senhor – se apresentou, embora tivesse a estranha sensação que não precisaria fazer aquilo.

–Muito prazer em conhecê-lo, sou Fujitaka Kinomoto. Bem vindo a esta casa.

A sensação de dejavu tomou os dois, como se aquelas palavras tivessem sido já ditas…

–Yukito – Touya chamou com o humor um pouco melhor, já tinham se passado 9 dos 10 minutos iniciais – Venha, vou te ensinar a fazer panquecas.

Na terceira tentativa, Touya desistiu e tomou o controle, deixando que o outro menino ficasse sentado, observando boquiaberto a habilidade que o amigo tinha na cozinha. Logo Fujitaka também estava boquiaberto, olhando para a pilha enorme de panquecas que Touya estava fazendo, porém preferiu não perguntar. E foi a muito custo que tanto o pai quanto a filha – uma Sakura extremamente vermelha que não parava de olhar para Yukito – esconderam a surpresa quando Yukito comeu a metade de tudo o que Touya tinha preparado.


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Notas finais do capítulo

E ai amores? Ficou bom?



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