O Lado Escuro da Lua escrita por MaeveDeep


Capítulo 70
Capítulo Setenta




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O Lado Escuro da Lua – Capítulo Setenta

Artemis conhecia a sensação de medo bem demais. Crescera aterrorizada por uma mãe perfeccionista e irascível, assistira a todos os seus namorados se perderem de alguma forma. Encarando seu pai naquela noite, contudo, experimentou um novo tipo de medo – misturado à ansiedade, era mais desespero do que qualquer outra coisa.

Sebastian começou a andar pelo quarto como se escolhesse as palavras, tranquilamente pensativo. Artemis nunca o vira exaltado, sequer bravo com alguma coisa. Era o único a conseguir acalmar sua mãe, e, quando finalmente falou, começou justamente a partir dela.

– Elizabeth nunca entendeu... ela não fazia ideia do que tinha nas mãos – sorrindo para si mesmo, era como se houvesse se esquecido de Artemis. – Não sei como você pôde ter saído dela... é claro que vejo a semelhança – acrescentou, como se pedisse desculpas. – Mas ela era tão fraca, tão cheia de paixão... Descontou tudo isso em você, e até hoje não sei se a culpa foi minha. – Parou no lugar, balançando a cabeça para si mesmo. – Ela queria te mandar para uma escola interna. Dizia que não era normal.

E naquele curto silêncio, a compreensão se desdobrou à frente de Artemis como se por anos ela apenas não houvesse tido vontade de vê-la. Entendeu o motivo de sua mãe tê-la sempre tratado tão mal, entendeu a ausência de fotos suas pela casa e sua impaciência para com os mimos do seu pai. Compreendeu como o ciúme poderia levar uma mulher já temperamental à loucura, e encolheu-se ao perceber que talvez a morte de sua mãe não houvesse sido um acidente.

Sebastian ergueu os olhos para ela e suspirou, como se decepcionado com a preocupação de Artemis.

– Uma queda da escada... apenas uma criança acreditaria nisso, meu amor. Mas você era uma, e foi a mais ou menos a essa conclusão que os policiais chegaram – concedeu, com descaso. – Mas não precisa ficar assim, ela teve o que mereceu. Foi uma péssima mãe para você, que merecia tanto...

– Ela me odiava – Artemis disse, porque a palavra não poderia ter sido outra. – Mas não por minha culpa. Era apenas porque você...

– Não consegue dizer em voz alta? – A decepção de seu pai deu lugar à candura. – Eu não consegui por muito tempo, minha querida. Mas os anos foram se passando e eu não pude evitar. Me contive a princípio, sabia que você chamaria a atenção, sabia que um dia me apresentaria um garoto e eu teria de lhe apertar a mão e bancar o bom pai... Mas quando a hora chegou, eu não consegui.

Os dois tinham quinze anos na época, e Adam também fazia aniversário em maio. Era introspectivo e calado, mas Artemis gostara de ter sua mão sobre a dela enquanto desabafava, pela primeira vez, sobre sua infância horrível. O pobre garoto estivera tremendo ao conhecer seu pai, mas os dois haviam se dado maravilhosamente bem – até uma noite quatro meses depois, em que um assalto despropositado o deixara sangrando na rua tranquila pela qual sempre passava a caminho da casa dos avós.

Artemis chorara por semanas. Seu pai ficara sempre por perto, atencioso e quieto, gentil, permitindo que faltasse às aulas que quisesse e tivesse a solidão que preferisse. Quatro anos depois, confessava-se culpado sem nenhuma gota de remorso.

– Como pôde fazer aquilo com ele?

Sebastian encarou a filha com preocupação.

– O que é isso, tristeza? Foi há muito tempo, e para um bem maior. Aquele garoto tímido e bobo jamais seria bom o bastante para você.

– Harry – Artemis sussurrou, contendo o choro, quebrando-se de alguma forma ao se lembrar do moreno confiante que matava aulas para vê-la.

Sebastian assentiu como se concordasse.

– Esse foi mais trabalhoso. Quem diria que você gostaria de um bad boy, Artemis... Uma verdadeira decepção, mas a adolescência é cheia de descobertas. Você não pode me responsabilizar por completo, entretanto – acrescentou, se inclinando para uma das travessas da mesa e pegando um pequeno camarão com os dedos. – Os pais dele venceram na justiça e provaram que houve negligência médica.

Harry era lindo. De cabelo escuro e olhos claros, tinha pouquíssima paciência e nenhuma vontade de seguir a carreira do pai no banco. Os dois se atraíram como ímãs opostos teriam feito, e o garoto se mostrara surpreendentemente doce por dentro. Artemis já tinha dezesseis, e ele era ainda dois anos mais velho. Sua recusa em conhecer seu pai a encantara ainda mais, mas ela era apenas uma completa boba que tomava falta de educação por desafio.

Seu pai estava falando, mas Artemis não o ouvia. Lembrava-se, com um aperto no coração, daquela noite horrível no hospital, sangue demais, muito frio, Harry completamente assustado como ela nunca o tinha visto antes, seu rosto tão branco como os lençóis outrora haviam sido. Lembrava-se de ter tentado segurar sua mão e dizer alguma coisa, mas o choro a fazia tremer e logo os médicos estavam o levando para longe dali, Artemis com a mão nos lábios e os olhos muito fechados mal contendo as lágrimas.

– ... foi engenhoso, eu tenho de admitir. Teria dado certo se eu não houvesse sido mais esperto, mas você ainda tem muito o que aprender. – Ele estava comendo outro camarão, parecendo bem mais à vontade do que já estivera em sua presença. – Mas tive de pagar a mais para esconderem o corpo. Consegue acreditar nisso?

William. Artemis precisou de toda a sua força de vontade para não cair no choro, até porque seu pai estava se aproximando. Queria recuar, mas de nada adiantaria, então se contentou em observá-lo, tesa como um arco.

– Achei que ele seria o último – Sebastian disse, casualmente. – Aquela fuga malsucedida fora para mim a prova de que você buscava escapar de alguma coisa, e por um minuto acreditei que houvesse compreendido que eu estava por trás de tudo. Mas você voltou da estação de trem e me confessou toda a história aos prantos, insistindo para que fôssemos procurá-lo. Sua certeza de que algo de ruim houvesse acontecido ao menos me reconfortou, e eu soube que você estava no caminho certo. Que uma hora, eventualmente, entenderia tudo.

E a expectativa em seus olhos enquanto encarava Artemis a encheu de nojo, e ela não pôde evitar dar um passo para trás, mesmo que fosse inútil.

– Você foi ao meu quarto naquela noite. – Tenho pesadelos com isso quando menos espero... – Não tinha como você ter descoberto.

– Acompanhava vocês dois há um tempo – Sebastian soou levemente satisfeito ao admitir, mas estava realmente sentindo aquilo? Ou havia se ensinado a parecer humano, tão brilhante e tão bom ator, tão bom diplomata desde pequeno? – Mas achei que estivesse dormindo.

– Você se sentou na beirada da cama, eu só fingia dormir. E então você disse... – mas Artemis não conseguiu terminar a frase, e mesmo assim seu pai sorriu.

Você passa o resto dos seus dias comigo ou o envia para seu túmulo? O Fantasma da Ópera sempre foi um dos seus filmes preferidos. – E algo brilhou por trás de seus olhos azuis. – E então você soube... de alguma forma, sempre soube...

Seu tom de deleite era nauseante, e Artemis se afastou da mão que havia tentado acariciar seu rosto. Sebastian não pareceu incomodado.

– É claro que soube, por que outro motivo arrumaria um namorado às escondidas? – ele continuou, encantado. – Vim até aqui esperando encontrá-la aos prantos, só para descobrir que havia entendido tudo errado... mas que diferença isso faz?

E a ideia de que a morte de Andrew nada significasse a fez se afastar de vez de perto dele, andando de costas na direção da porta sem conseguir disfarçar o horror que sentia.

– Eu sempre soube que a sua primeira reação não seria boa – a calma de Sebastian era impressionante, e Artemis parou no lugar.

Parou no lugar e respirou fundo, buscando se lembrar de sua mãe, muito furiosa e muito decidida. Pensou na garota que queria ser e buscou se recompor, erguendo os olhos para o homem que outrora fora o melhor pai do mundo. Viu que aquela serenidade era a superfície de um poço de loucura, que estava diante de um homem capaz de mandar matar cinco vezes e de levá-la ao teatro no mesmo dia com o mais galante dos sorrisos.

Retomando o controle sobre si mesma, percebeu que teria de chorar e ter todos os ataques de raiva que quisesse depois. Tinha um psicopata à sua frente e precisava agir antes que alguma outra morte ocorresse, mas para isso precisava pensar com clareza. A adrenalina correu por suas veias e ela se sentiu em seu alerta máximo, pronta para o que quer que precisasse fazer.

– Preciso ficar sozinha – pediu, porque já havia lhe pedido aquilo um milhão de vezes. – Por favor – acrescentou, uma lembrança da Artemis dócil e assustada que sempre fora.

Sebastian vacilou por um segundo, sem saber o que fazer, e o fato de não confiar nela o bastante para deixá-la sozinha foi quase um elogio.

– É claro – ele disse por fim, e Artemis mal pôde acreditar em sua sorte. – Vou te levar de volta à Academia. Saberei se sair de lá – acrescentou, mais sério. – E quero que seu celular fique comigo.

Artemis percebeu que teria sido bobagem esperar por outra coisa, e então assentiu.

– Obrigada.

Gostaria de ter se mantido afastada enquanto voltavam para o hall, mas Sebastian andou próximo o bastante para que sentisse sua presença e seu estômago se revirasse, enojada. Enquanto ele chamava um táxi, observou as pessoas e percebeu como as aparências poderiam ser fatais – quem imaginaria que aquele charmoso homem com sua filha pudesse ser um assassino?

Até mesmo o silêncio no interior do carro foi tranquilo, Sebastian conversando com o motorista e sorrindo, Artemis encolhida contra a porta, com medo de que ele segurasse sua mão ou sequer encostasse nela. E pensar que ele queria... seu corpo todo estremeceu em um arrepio, ela agradeceu aos céus ao ver a familiar Academia se aproximando.

Seu pai pediu ao taxista que esperasse e entrou com ela, o gesto calculista a surpreendendo. Levou-a até a porta do dormitório sem que Artemis sequer tivesse ideia de como saberia que seu dormitório ficava ali, e se despediu apoiando a mão em seu ombro. O gesto, que teria sido reconfortante minutos atrás, a deixou rígida como pedra.

– Procurarei por você amanhã – ele lhe disse, e seus olhos azuis só mostravam a ela Adam, Harry, Will e Andrew, e então também sua mãe... – Não ouse sair daqui.

E Artemis concordou com a cabeça, perguntando-se como ele estaria a vendo. Assustada? Desafiante? Ela sequer sabia como se sentia. Abriu a porta e entrou antes que ele tentasse abraçá-la, encontrando a sala vazia. Sebastian fechou a porta atrás dela com delicadeza, mas Artemis sabia que ele não sairia de perto da Academia tão cedo, não até que pusesse em sua cola a misteriosa pessoa que o mantinha ciente de seus passos.

Não realmente, disse para si mesma, indo até o andar de cima. Ele sabe que saí algumas vezes, mas não para onde fui.

Entrando em seu quarto, encontrou em sua cômoda exatamente o que esperava – o celular de Gabriel, carregando na tomada escondida atrás da cama. (“Não vou precisar falar com ninguém enquanto estiver com David, e posso usar o celular dele para tirar nossas selfies.”) Digitou então a senha do garoto (1982, o ano de estreia de Cats na Broadway), encarando sem realmente ver o papel de parede (Gabriel mostrando a língua para Moony).

Não era boa em correr riscos, nunca fora. Mas seu pior pesadelo havia ganhado vida, e ela tinha apenas uma noite para fazer a coisa certa – mesmo que não soubesse o que fosse, mesmo que talvez nem tivesse essa noite. Seria estupidez imaginar Sebastian voltando para o Commonwealth e indo dormir, então ela tirou o celular de Gabriel da tomada. Quarenta e cinco por cento era mais do que suficiente.

O número de David tinha o coração ao lado, mas ela procurou pelo de outra pessoa. Gabriel a havia salvo como Anna Krueger, mas não fazia realmente diferença.

{...}


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Notas finais do capítulo

Eu não vou nem falar nada, quero só ler os comentários de vocês.