O Lado Escuro da Lua escrita por MaeveDeep


Capítulo 44
Capítulo Quarenta e Quatro




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O Lado Escuro da Lua – Capítulo Quarenta e Quatro

– Claro – foi a concordância imediata de Apolo, ainda que com um tom de surpresa. O garoto então se levantou, empilhando os dois pratos para levá-los para a pia. – O piano fica na primeira porta à esquerda, assim que subir as escadas. Eu só vou arrumar aqui e já estou indo.

Mas Artemis balançou a cabeça, também se levantando.

– Não o piano – explicou, gentil. – Quero que toque violão para mim.

Apolo congelou no lugar, apenas seus olhos castanhos se movendo ao estudar cada centímetro do seu rosto.

– Claro – repetiu, sua expressão se suavizando aos poucos. O canto de seus lábios então se curvou de leve, ou talvez tenha sido impressão de Artemis. – Nesse caso, suba para o meu quarto. É a segunda porta.

Havia qualquer saída possível para aquele sorriso pequeno, para aquele pedido tão cheio de malícia em sua inocência? Artemis pôs um pé atrás do outro, testando as águas.

– Não vai querer ajuda?

Apolo balançou a cabeça, abrindo a geladeira.

– Não. Se eu te mimar, são maiores as chances de você querer voltar.

Artemis não quis pensar sobre a possibilidade de querer voltar por livre e espontânea vontade um dia, então demorou só alguns segundos para sair dali.

{...}

A porta do quarto de Apolo estava entreaberta, e Artemis a empurrou com cuidado. Tateou a parede à procura pelo interruptor, e, quando o encontrou, acendeu a luz e observou tudo o que podia sem entrar.

As paredes tinham um tom bem claro de azul, e as cortinas estavam só um pouco abertas. Tentou imaginar o quarto durante o dia, todo iluminado pelo fim da tarde. Virou o rosto para o lado, e descobriu que um grande mapa-múndi havia sido afixado ali. Havia fotos, anotações e setas, e ela desviou o olhar por medo de ver algo pessoal demais.

(Talvez Apolo sonhasse em viajar pelo mundo?)

Deu um passo à frente com cautela, na direção da cama de casal bagunçada que parecia confortável – em nome de Deus, por que estava reparando naquilo? Desconcertada, ela se virou para a escrivaninha à frente da janela, se aproximando para ocupar a mente com alguma coisa.

Havia vários papéis jogados sobre ela, canetas pretas quase caindo do tampo da mesa. Por reflexo, Artemis pegou os papéis e os alinhou, organizando partituras que não fazia ideia de como ler. Foi distraída que percebeu que havia canções também, e estava quase começando a ler quando notou que eram manuscritas, e que havia trechos cortados, grifados e asteriscos apontando para notas de rodapé – eram rascunhos, não letras aleatórias de uma banda qualquer.

Largou as folhas sobre a mesa em um movimento quase brusco, embaraçada pela possibilidade de ter sequer corrido os olhos por algo tão privado. Só podia imaginar que, para um músico, suas letras fossem algo tão íntimo quanto sagrado. Deu então as costas à escrivaninha, lembrando-se de Apolo dizendo que nunca havia composto nada para uma peça de balé. Pelo visto, compunha para todo o resto. (Quanto tempo conseguiria ficar naquele quarto sem esbarrar em nada pessoal?)

Procurando se distrair com outra coisa, reparou que o violão estava próximo à cama, mas não havia sinal da guitarra. As portas do armário estavam fechadas, o chão impecavelmente limpo. Pares de tênis a um canto, meias enfiadas de qualquer jeito dentro deles. Uma prateleira cheia de discos, três ou quatro miniaturas de carros antigos sobre ela. Havia também uma foto de Apolo com Anna, os dois sorrindo para a câmera, o Sol e o cabelo loiro dos dois deixando a foto surrealmente brilhante.

Ela nunca havia visto a loira psicótica sorrir antes, mas, na foto, parecia ser genuíno. Era o tipo de efeito que Apolo tinha nas pessoas, supôs. O garoto tinha jeito demais para lidar com as pessoas. Não era à toa que se dava bem com David, Anna... e também com ela, claro.

Suspirou, passando pela escrivaninha para chegar até a janela. A tempestade continuava do lado de fora, o vento tentando soprá-la para longe sem sucesso. A rua estava deserta, poucas casas com luzes acesas. A cortina era fina, então talvez Apolo acordasse cedo e não se incomodasse com o Sol invadindo seu quarto.

– O que achou?

Virou-se para ele, encontrando o garoto escorado no batente da porta, a observando com toda a tranquilidade do mundo. Deu uma olhadela rápida pelo quarto antes de respondê-lo, encolhendo os ombros.

– Considerando que eu esperava que você dormisse em um porão cheio de pôsteres de bandas de rock, é até bem decente.

– Não costuma ser tão bem-arrumado – Apolo comentou, olhando ao seu redor enquanto entrava. – É só porque não tenho quase dormido aqui – supôs, sentando-se de pernas cruzadas na cama. – Já estava com saudade – acrescentou, pegando o violão e o pondo no colo.

Artemis pôs os braços atrás das costas, inclinando a cabeça para o lado.

– Você não o leva para a Academia?

Apolo pareceu só um pouco embaraçado enquanto corrigia alguma desafinação mínima, evitando seu olhar.

– Sou cuidadoso demais com ele. É um capricho.

Mais por curiosidade do que por qualquer outra coisa, Artemis se pôs a observar o violão. Não era um instrumento novo, havia desgaste na madeira, um arranhão leve na lateral (o quanto Apolo se amaldiçoaria por aquilo?). Apenas as cordas pareciam recém-saídas da loja, o que ao menos explicava os machucados nos dedos do garoto.

Artemis já havia lido em algum lugar que cordas novas de aço podiam ferir, obviamente não tanto como sapatilhas de ponta (que eram verdadeiros instrumentos de tortura), mas ainda assim. Quando Apolo ergueu os olhos para ela, Artemis o viu com um pouco mais de simpatia.

– O que vai tocar para mim?

Ele dedilhou alguma coisa, encolhendo os ombros.

– O que você quiser. – Abriu um pequeno sorriso. – Patience, se se sentar aqui.

E a ruína absoluta de Artemis seriam aqueles pequenos pedidos irrecusáveis. Ainda não havia encontrado o que culpar – o sorriso, o tom mais baixo de voz, os olhos castanhos, a forma de colocar as palavras, mas, por via das dúvidas, culpava o garoto por inteiro. Andou então até a cama com passos cautelosos, sentando-se na beirada e cruzando as pernas para imitá-lo, pantufas de porquinhos sobre seu edredom marfim macio.

Receou algum comentário que enchesse Gabriel de orgulho, mas já deveria saber que Apolo era um cavalheiro. O garoto não demorou muito a correr os dedos pelas cordas, abaixando a voz sem deixar de olhá-la.

One, two, one, two, three, four.

As primeiras notas saíram suaves, talvez um pouco hesitantes, mas o assovio de Apolo foi certeiro e preencheu qualquer nervosismo. Aquela era uma música gostosa, toda artística e feita para um instrumento de cordas, e Artemis se viu sorrindo de leve, talvez enlevada demais pelo momento.

Shed a tear ‘cause I’m missing you… – Aquilo era um sorriso no canto dos lábios do garoto, saindo de levinho com aquela voz macia? – I’m still alright to smile... Girl, I think about you every day now. Was a time when I wasn’t sure, but you set my mind at ease... There is no doubt, you’re in my heart now.

Aquele olhar persuasivo fazia o rosto de Artemis arder, mas ela se recusava a acreditar que estivesse vermelha. A música mal havia começado...

Said, woman, take it slow, and it’ll work itself out fine. All we need is just a little patience... Said, sugar, make it slow, and we’ll come together fine. All we need is just a little patience.

Apolo lhe fez o favor de sumir com o murmúrio exagerado do Axl Rose, atendo-se apenas a um sussurro de patience tão sutil que fez Artemis morder a parte interna da bochecha, encantada demais pelo ritmo tranquilo do garoto.

I sit here on the stairs, ‘cause I’d rather be alone. If I can’t have it right now, I’ll wait, dear... Sometimes, I get so tense, but I can’t speed up the time… But you know, love, there’s one more thing to consider. Said, woman, take it slow, and things will be just fine. You and I’ll just use a little patience. Said, sugar, take the time, ‘cause the lights are shining bright. You and I’ve got what it takes to make it. – Apolo pausou por meio segundo. – We won’t fake it… oh, I’ll never break it… – balançou a cabeça, suavizando as palavras. – ‘cause I can’t take it.

Havia algo de sério na expressão do garoto, qualquer coisa que realçava seus traços bem-feitos e o deixava ainda mais lindo, mesmo que a curva de um sorriso ainda estivesse ali. Pela primeira vez Artemis se permitiu imaginá-lo no palco, um palco de verdade – microfone, telões, luzes ofuscantes e caixas de som capazes de levantar os mortos.

Talvez houvesse formas piores de acordar do sono eterno, supôs.

O garoto então recomeçou a assoviar, e as próximas notas foram mais espaçadas e mais decisivas. Artemis mordeu o lábio inferior, seu devaneio esquecido, sua parte preferida prestes a começar.

Little patience, yeah. – Apolo fez sua voz escorregar, preguiçosa, arrastada, e talvez Artemis morresse. – Need a little patience, yeah... – Aquilo era um sorriso de verdade, enquanto ele balançava a cabeça daquele jeito, todo lindo, todo prosa, todo certo de ter acertado em cheio? – Just a little patience, yeah. Some more patience, yeah, yeah… I’ve been walking the streets at night, just trying to get it right, it’s hard to see with so many around, you know, I don’t like being stuck in the crowd… – Apolo sorriu de verdade, e Artemis teve a clara impressão de que aquela parte não era apenas a sua preferida. And the streets don’t change, but, baby, the names! I ain’t got time for the game, ‘cause I need you, yeah, yeah, but I need you… – e não houve nada do final escandaloso da versão original, apenas um decrescer suave do ritmo e o sorriso mais satisfeito do universo… – I need you this time.

E, quando Apolo a olhou, não foi com menos do que expectativa.

O que era uma pena, porque Artemis não fazia ideia do que dizer.

– Você não pode cantar sorrindo – foi o primeiro pensamento coerente que teve. – Está proibido de fazer isso.

– E se for só para você? – Apolo perguntou, parecendo estar achando graça.

– Especialmente para mim – Artemis frisou, e o sorriso de Apolo deu a entender que ele havia ouvido ali todos os elogios do mundo. – Gostei das alterações que fez na música – comentou, desejando mudar de assunto. – Ela ficou melhor.

Apolo não a respondeu, e seu olhar prolongado deixou Artemis estranhamente ansiosa. Quando o garoto finalmente falou, o nervosismo em seu estômago não melhorou nenhum pouco.

– Quer dormir comigo?

Talvez ela também devesse proibir aquele tom de voz.

– Não posso – disse, procurando esconder o quão embaraçada a pergunta havia a deixado. – Gabriel me comprou uma camisola indecente, e meus padrões morais são altos demais para isso.

Esperou por um comentário impróprio, e surpreendeu-se quando ele não veio. Qualquer outro garoto tentaria se aproveitar do fato, não tentaria?, percebeu, subitamente incomodada. Apolo não fazia a mínima questão de vê-la em trajes indecentes escolhidos a dedo por Gabriel, ou seja, duplamente indecentes?

A observando com atenção, pelo visto Apolo não estava pensando em nada daquilo.

– E se você vestisse alguma coisa minha?

Artemis não fazia a menor – a mais singela ideia – do que aquilo deveria significar.

Sou linda. Não vai fazer esforço algum para me ver vestindo algo absolutamente indecente?

– Perdão?

Apolo se levantou, pondo seu violão de lado com cuidado. Confusa, Artemis o acompanhou com o olhar, vendo-o abrir o próprio armário.

– Eu sou mais alto do que você. Alguma camiseta larga minha é com certeza muito melhor do que qualquer camisola que o Gabriel possa ter arrumado.

Apolo realmente não fazia questão alguma de vê-la naquela camisola de renda? Aquilo era praticamente rejeição, talvez ainda mais amarga. Artemis estava habituada a se sentir desejada, ora nos vestiários ora nas apresentações. A ideia de que Apolo não a quisesse daquela forma era enervante, para dizer o mínimo.

Completamente em outro mundo, o garoto estava observando uma camiseta, parecendo pensativo. Quando a jogou para Artemis, a garota a pegou no ar por reflexo, a meio caminho de se levantar.

– Não é tão larga quanto as outras, mas deve servir.

Apertando o tecido macio entre os dedos, Artemis franziu os lábios para aquele tom casual.

– Provavelmente. – Se pôs de pé e, após dois ou três passos, já estava à frente dele, erguendo-se na ponta dos pés para, com uma mão em seu ombro, beijar seus lábios de surpresa, um gesto tão rápido quanto inesperado. – Boa noite, Apolo – abriu seu sorriso mais doce.

Dizer que o garoto parecia confuso seria um exagero. Apolo estava estático, as sobrancelhas loiras erguidas.

– Boa noite? – repetiu, sem entender, apoiando a mão em sua cintura quase como se não quisesse que ela fosse embora. Mas Artemis desvencilhou-se dela com graça, sorrindo de leve.

– Sim. Nos vemos amanhã.

Quando lhe deu as costas e saiu do quarto, decepcionou-se ainda mais um pouco quando Apolo não tentou impedi-la.

{...}


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Notas finais do capítulo

Esses pequenos mal-entendidos podem originar catástrofes, ou não. A forma como a mente da Artemis funciona é impressionante, e só resta a vocês rezar para que eu conserte isso ou comece o próximo capítulo com um "No dia seguinte..."
Afinal, impossível ninguém maliciar um pouquinho a ideia de Apolo a querendo em uma de suas camisetas (talvez apenas Artemis seja capaz de tamanha ingenuidade. É o orgulho entrando na frente de tudo, como sempre...)
Mil beijinhos da Maeve