O Lado Escuro da Lua escrita por MaeveDeep


Capítulo 35
Capítulo Trinta e Cinco


Notas iniciais do capítulo

Mudanças de ponto de vista são adoráveis. Espero que gostem.



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O Lado Escuro da Lua – Capítulo Trinta e Cinco

Anna talvez nunca fosse dizer aquilo em voz alta, mas sabia que devia muito a Apolo. É claro, por que outro motivo se sujeitaria ao que estava prestes a fazer? Aquilo certamente poderia se configurar como aliciamento de menor, se ela fosse menor de idade. A palavra coação também talvez pudesse ser empregada, e chantagem emocional seria uma constante.

Com um suspiro, ela decidiu deixar de lado o processo que mentalmente estava redigindo. Apolo achava que ela lhe devia muita coisa por motivos bobos, como ter lhe dado uma carona para a galeria outro dia, ou por ter ajudado a mentir para sua mãe no fim de semana anterior, mas o motivo era bem maior do que esse.

Anna nunca havia sido uma garota normal. Qualquer um que olhasse para os seus diplomas em Literatura Inglesa e Física e suas medalhas em competições internacionais de matemática poderia dizer isso, mas ninguém parecia ser perspicaz o bastante para entender a complexidade da anormalidade em questão.

Anna nunca fizera amigos. Entediava-se com noventa e nove por cento das pessoas que conhecia, não gostava de assistir televisão, ouvia músicas que não tinham clipes disponíveis no youtube e nunca entendera a graça de brincar de boneca. Suas coleguinhas de sala do primário já a chamavam de esquisita, e, quando ela avançou quatro séries e começou a frequentar aulas avançadas, ninguém pareceu ter sentido sua falta.

À exceção de Apolo. Todos os dias ele a procuraria no recreio, ou teria a audácia de cruzar a rua que o levaria à sua casa. Anna se lembrava muito bem de como ele já era o garoto que todas as meninas chamavam para brincar de casinha, mas que lhes dava as costas para caçar dinossauros com ela no parquinho.

Apolo lhe apresentava seus amigos, a ouvia falar, entusiasmada, sobre hebraico e a órbita elíptica dos planetas, e, com o passar do tempo, passara até a brincar sobre a possibilidade dos dois se casarem, só para a alegria de suas mães (que nunca se cansaram de dizer o quão lindinhos os dois loirinhos não ficavam juntos).

Apolo lhe dera uma infância de verdade, e a salvara de uma adolescência trancada em casa tocando violino e lendo os livros de seus pais. Às vezes, o loiro quase fazia com que ela se sentisse uma pessoa normal, e Anna sempre lhe seria muito grata por isso.

Grata o bastante para interromper o treino da classe de balé de Artemis, contando, com a maior seriedade, uma mentira deslavada para a professora mais rígida e com o sotaque mais carregado do mundo.

– Só porque os treinos de sábado são facultativos – a professora Romanoff deixou bem claro, as sobrancelhas perfeitas ainda juntas, examinando Anna com desconfiança. – Está liberada, Artemis.

A nova namorada de Apolo parecia mais confusa do que brava enquanto recolhia sua mochila do armário, seu cabelo incrível preso em um rabo de cavalo apertado. (Anna havia tentado copiar aquela cor em um de seus quadros, ainda sem sucesso. Talvez conseguisse se colocasse o fundo em um tom mais escuro de vinho; certamente tentaria aquilo mais tarde).

– Ela te chamou pelo primeiro nome – comentou, assim que fechou a porta da sala, Artemis ao seu lado a encarando com uma expressão curiosa. – É assim com todos os alunos? Pelo menos ela acerta sempre, eu suponho. Não temos a mesma sorte com o Sr. D. Talvez devêssemos trocar.

Como sempre, qualquer ameaça ao seu balé fez Artemis endurecer o olhar.

– Não consigo pensar em ninguém para ser pior professor de balé do que o David.

– Kim Jong-I – Anna sugeriu. – Ou Stephen Hawking. Estou indignada com a sua falta de imaginação.

Apolo teria rido, mas Artemis revirou os olhos.

– Não me tirou da aula para falar sobre isso.

– Foi em nome de Apolo – Anna se eximiu da culpa, começando a andar, a bailarina a acompanhando com facilidade. – Interrompi um treino importante?

– Todos são importantes – Artemis replicou, em um tom mais sério do que rude. (Apolo provavelmente teria mentido que não, com aquela sua vontade característica de agradar. As diferenças entre os dois eram tão contrastantes que Anna talvez fizesse uma lista.) – E o que Apolo tem a ver com isso? É sobre as partituras?

– Não – Anna balançou a cabeça, cansando-se daquele assunto. Havia composto a primeira parte da música, destinada ao primeiro ato, e David ainda estava com ela em mãos para "correção". Se aquilo virasse origami de cisnes e passarinhos, ela se veria obrigada a pôr em prática todo o seu conhecimento sobre bombas caseiras e reagentes voláteis. – Apolo me contou tudo, você sabe. É um garoto maravilhoso, mas incapaz de guardar segredo.

Artemis assentiu, as sobrancelhas erguidas.

– Faz com que eu me sinta muito mais segura. Obrigada.

– A sua sorte é que ele está muito determinado em te agradar, então temos dois vetores de mesma direção e sentidos convergentes tentando não se chocar para garantir o equilíbrio do sistema – Anna explicou, porque esquemas sempre deixavam tudo mais fácil de ser entendido. Ganhou uma expressão vazia em resposta. – Não acho que ele vá contar para mais ninguém – resumiu sua teoria. – Por algum motivo, está demasiadamente encantado por você para isso.

– Eu não usaria essas palavras – a ruiva acabou respondendo, lentamente. – Mas agradeço a tentativa de me tranquilizar.

– Não estou tentando te tranquilizar – Anna revirou os olhos. – Apolo é o meu melhor amigo, mas isso não quer dizer que eu apoie as bobagens que ele faz. Não vou te assassinar caso algo dê errado, mesmo porque estou sem a minha coleção de facas, mas também não estou exatamente achando que dê certo namorar alguém que tem vergonha de você em público – empurrou os óculos para cima, obstinada. – Não sou a sua maior fã, você deve ter notado. Apolo é um idiota.

– Ele com certeza ficaria lisonjeado se ouvisse isso tudo – Artemis considerou, uma sobrancelha erguida. – Eu, por outro lado, não poderia me importar menos.

E a garota é mesmo inabalável. Anna sorriu por dentro.

– Acho ótimo que não tenha negado que ele seja um idiota. Já te faz mais inteligente do que as garotas com as quais ele sai.

Artemis não respondeu de imediato, parando no lugar e olhando por cima do ombro para o corredor por onde haviam vindo. Era um pouco mais alta do que Anna, mas o que realmente incomodava a loira era o ar de realeza – era normal andar tão empertigada, ombros tão retos, nariz tão empinado? Apolo também era lindo, mas de forma completamente natural. (Aqueles dois eram uma antítese perfeita.)

– Você vem ou não? – Anna a apressou, impaciente.

– Eu não sei aonde você está me levando – Artemis argumentou, desconfiada. – Parece extremamente insensato seguir uma pessoa que claramente me odeia para um lugar desconhecido.

Anna revirou os olhos de novo, entediada. Apolo havia mencionado as tendências paranoicas de Artemis.

– Já disse que estou sem minha coleção de facas, e ainda não sou incrível o bastante para matar com as minhas mãos nuas. – Artemis não pareceu convencida. – Poderia voltar a me acompanhar, por favor? Por Apolo?

A ruiva não pareceu minimamente acalmada pelo pedido.

– Uma das surpresas dele?

Algo me diz que você gostou das últimas.

– Ele não gosta de ser deixado esperando – Anna deu um último aviso antes de voltar a andar. Se ela se recusar a vir, não será exatamente culpa minha.

Segundos depois, contudo, já podia ouvir os passos ágeis da bailarina ao seu lado. Pessoas são estranhas, concluiu, o que fez com que se lembrasse, infelizmente, do indivíduo que chegaria de Cape Cod no dia seguinte.

Logan Wright era o primo preferido de Apolo, e o garoto mais detestável que Anna já conhecera. Culpa dos bons genes que corriam na família, tinha olhos verdes admiráveis – que ela nunca tentara copiar para um de seus quadros, irritada pela mera lembrança dele – e cabelo escuro cortado curto.

Como um desperdício de matéria orgânica profissional, passava mais tempo na praia do que sendo um membro contribuinte da humanidade, como se bronzeado e mãos calejadas pelo velejo fossem torná-lo importante o bastante para ser lembrado por alguém.

Anna não gostava de pessoas que pensavam pequeno. Que viam apenas o presente, que se preocupavam (ou seria o contrário?) apenas em se divertir. Carpe diem era a coisa mais imbecil que já havia ouvido, por mais que isso fizesse Apolo enterrar o rosto nas mãos. Logan Wright era um especialista em se divertir e em não se preocupar em deixar um legado para o resto do mundo, e Anna não tinha paciência para gente assim.

Ela não se importaria tanto se Logan não aparecesse tanto. Tinha uma memória excepcional, e nunca se esqueceria do dia em que Apolo, aos sete anos, lhe apresentara, cheio de orgulho, seu primo três anos mais velho. Logan não só achara ridículo caçar dinossauros invisíveis como também parecera incapaz de dizer pterodáctilo sem tropeçar; duas indelicadezas que a pequena Anna nunca perdoaria.

(Aquela sua amiga é esquisita, havia entreouvido. Por que você fica tanto com ela? Não me diga que está apaixonado, está?, a pergunta fora seguida por uma risada. Poderia arrumar alguém bem melhor. Também nunca perdoaria aquilo, vários anos depois.)

Logan tornara a aparecer em intervalos irregulares pelos próximos anos, e, mesmo que Apolo não deixasse de ficar com ela, sempre ia embora mais cedo para ficar com o primo também. Anna não poderia culpá-lo, supunha. Logan era o tipo de garoto que, aparentemente, as pessoas da sua idade consideravam cool.

Justamente quando tinha quatro quadros a serem entregues em novembro, uma apresentação importante para o fim do ano e uma série de problemas pessoais, menores, mas não menos importantes, Logan havia decidido vir passar um tempo em Boston.

Anna sabia o que aquilo significava. Menos Apolo, mais implicância, mais um para olhá-la como se ela fosse uma aberração da natureza. (Possibilidade que ela já havia contemplado na adolescência, e cuja linha de raciocínio levara a consequências catastróficas.)

Aproveite o dia, se viu pensando, com ironia. Carpe diem. Honestamente, o presente é detestável. Só me resta esperar que o futuro seja melhor.

– Para onde estamos indo?

A pergunta de Artemis fez com que Anna voltasse para a realidade, e a loira se virou para ela, momentaneamente surpresa. A visão que teve fez sua língua amargar, quem havia dito que a vida seria justa? Contra o sol que entrava pela janela mais próxima, o cabelo de Artemis parecia um incêndio, e seu perfil sério parecia implorar para ser desenhado.

Preciso ir para o ateliê ainda hoje, se rendeu. Amanhã, no mais tardar. Apolo não estava muito errado quando disse que Artemis poderia ser inspiradora.

– Para a saída dos fundos. Apolo sabe ser cuidadoso quando quer – admitiu.

Aquilo fez a ruiva juntar as sobrancelhas.

– Vamos sair da Academia?

– Se com “vamos” você quiser dizer você e ele, sim. O passeio acaba para mim naquela porta – avisou, porque já estavam chegando mesmo à saída dos fundos. – Carrega as chaves com você, eu espero? O plano não funciona sem elas.

– Estão na minha mochila.

Artemis, contudo, não fez o menor movimento para pegá-las. Observando a porta enquanto se aproximava, parecia extremamente desconfiada. Anna decidiu por ela, tomando a liberdade de abrir o bolso lateral de sua mochila para pegar as chaves (havia adivinhado pelo formato anguloso que uma delas havia deixado contra o tecido. Sherlock se orgulharia.)

– Nervosa? – perguntou, incomodada com o silêncio da outra garota, enquanto procurava pela chave certa. – Se for ajudar, nem parece que estava treinando.

Porque não parecia mesmo. Sua legging era de um tom fechado de cinza, sua camiseta azul clara, suas sapatilhas de ensaio escuras e gastas. Honestamente, Artemis estaria incrível vestindo qualquer coisa.

– É claro que não. Só tendo a apreciar meu livre arbítrio.

Ela não parecia mesmo satisfeita por ter sido praticamente empurrada para aquela situação. Bom, Anna considerou, entendendo o ponto de vista de Apolo, se houvesse sido consultada sobre o fim da noite, provavelmente não concordaria mesmo.

Quando a porta finalmente foi aberta, revelou que o outro lado era um jardim denso, com o muro coberto por trepadeiras e um gazebo à margem de um estreito caminho que desembocava na rua de trás. Como Apolo havia dito, aquela saída não tinha portão, e era praticamente um acesso livre à Academia, desde que se tivesse a chave da porta dos fundos.

– É para esperar ali – informou, apontando para o gazebo. – Ele não vai demorar.

– Achei que ele já fosse estar lá. – O tom de Artemis não era nada feliz. Uops. Talvez Apolo tivesse que aguentar seu mau-humor por um tempo antes que conseguisse diverti-la.

(Quem se importava, sinceramente? Apolo já era grandinho para escolher suas namoradas sozinho, por pior que fosse nisso. O garoto tinha um péssimo gosto para pessoas, Anna decidiu, lembrando-se de Logan de novo. Era um mistério como ela acabara se tornando sua melhor amiga. Ou, talvez, isso dissesse muito sobre ela também.)

–Ele não demora – acabou dizendo, à guisa de despedida. – Tenha um bom passeio.

Artemis franziu os lábios, mas cuidadosamente começou a descer a escadinha que levava ao jardim. Sem esperar por qualquer resposta (que provavelmente não viria, Artemis não parecendo ser o tipo mais comunicativo de pessoa), Anna fechou a porta e a trancou.

Revirando nos dedos o molho de chaves do qual a monitora havia se esquecido, perguntou-se qual abriria a porta do quarto da garota.

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Notas finais do capítulo

(Todo mundo identificou Poseidon, certo? Certo.) Bom, como muitos de vocês gostaram do pouco da Anna que tivemos nos últimos capítulos, decidi fazer um capítulo através dos olhinhos dela porque... bom, porque sou fraca quando se trata de mimar vocês. Reviews?
Beijinhos da Maeve