Pequena Maria escrita por Ryskalla


Capítulo 8
Capítulo 8 - A Grandiosidade de um Boneco




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Killian realmente gostava da garota que Noire salvara. Ela era muito gentil e não se importava quando ele travava. Entretanto, aquele de quem Killian mais gostava era Ethan e por isso ele ainda tentava entender como os olhos do garoto mudaram de cor. Primeiro tentara conversar com o gato, que era o único que conhecia Ethan antes dele que não o olhava estranho.

— Imagino que tenha sido um truque de luz. Olhos rosados, você disse? Acho que não existe tal coisa em humanos. Tente pensar mais sobre aquele dia... Vai ver que é apenas uma peça que sua memória pregou. — E, como eram palavras muito sábias e o boneco tratou de colocar em prática... Começando com o pensamento daquela manhã.

Aquela vida não era difícil. Na verdade, era uma vida merecida para um defeituoso. Grandiosidade era questão de opinião. Para Killian, grandiosidade era algum ato que não gerasse reclamação de seu mestre. Era quando fazia algo corretamente. Não precisava de elogios, apenas do conhecimento de que o que fizera fora bom o bastante.

A loja estava tranquila e ainda não estava aberta, portanto, Killian varria o local o mais rapidamente que conseguia, mesmo que isso o fizesse travar diversas vezes e utilizar um tempo maior que o necessário. Tinha que atingir a grandiosidade, tinha que ser bom o suficiente naquele dia, tinha que...

— Olá? Por favor, é urgente, sei que a loja está fechada, mas... Por favor! — Um jovem gritava pela porta, com um olhar desesperado. Naquele momento, Killian travou. Não uma falha física, mas sim um debate mental. Olhou para o relógio que marcava quatro e meia. Ainda era cedo, muito cedo, e seu mestre deveria estar dormindo... Contudo, o garoto parecia realmente desesperado. O que deveria fazer?

— Por favor, sei que está cedo... — O garoto continuava a implorar, o que fazia Killian sentir-se ainda pior. Decidiu-se, por fim, e abriu a porta enquanto levava o dedo aos lábios, pedindo silêncio.

— Meu mestre ainda está dormindo... Ele acorda cedo, então você não terá que esperar muito, mas não faça muito barulho... Ele pode ficar zangado. — Killian murmurava enquanto olhava para o chão. Não viu o estranho dar um aceno positivo com a cabeça, mas viu seus pés dirigirem-se a uma cadeira próxima. Limitou-se então a voltar ao seu trabalho com a vassoura, travando ainda mais que anteriormente. O que seu mestre diria? O que ele acharia de sua atitude?

— Você... Também é uma boneca? — O jovem estranho perguntara, deixando Killian ainda mais aterrorizado. Seu mestre de certo o castigaria, não conseguiria atingir a grandiosidade. O pobre coitado tremia tanto que a vassoura acabou por escapar-lhe das mãos e Killian travara de tal maneira que seria impossível segurá-la. Porém, o estranho por pouco conseguiu impedir o temido barulho, que de certo acordaria todos da loja. — Desculpe, não queria perturbá-lo... É que você parece diferente dela. A propósito, me chamo Ethan.

O jeito simpático do estranho ia pouco a pouco acalmando Killian. Mas algo o incomodava ligeiramente. A quem ele se referia? Como aquele estranho poderia conhecer a jovem senhora?

— O senhor conhece a senhora Dulce? — As palavras, assim como seus gestos, também travavam ligeiramente, uma gagueira que aparecia nos momentos mais impróprios.

— Se for a boneca, sim. Não me lembrava do nome dela até agora... Ela é um pouco assustadora, durante anos tive medo de passar por essa rua. Tinha medo de vê-la. — Um leve sorriso iluminou ligeiramente o rosto do estranho, como se ele estivesse com vergonha da criança covarde que era.

— E por que veio se tem medo? — A gagueira ia desaparecendo levemente, enquanto a curiosidade aumentava.

— Preciso ajudar alguém... Finalmente descobri que às vezes temos de abrir mão de uma vida medíocre, seja por alguém ou por nós mesmos. — O estranho olhou para o relógio por um instante e suspirou. — Gostaria que o dono acordasse logo...

— Então está com sorte. Apenas gostaria de entender como entrou tão cedo em minha loja. — Killian sentiu o olhar pesado de seu mestre e afastou-se o mais rapidamente que pode para um canto escondido da loja

— Bom, eu estava fazendo uma barulheira tremenda e o seu gentil ajudante, com medo de acordá-lo irritado, deixou-me entrar e pediu para que eu fizesse silêncio. — O garoto Ethan ia explicando e Killian podia sentir a raiva de seu mestre abaixando consideravelmente.

— Muito gentil da parte dele, de fato... Suponho que o senhor queira uma boneca. — Do lugar onde estava, Killian apenas podia ver a sombra do corpo esguio de seu mestre que parecia querer engolir a sombra mirrada do rapaz. Um calafrio involuntário percorreu o corpo de Killian.

— Sim, preciso de uma boneca o mais rápido possível... Mas, ela tem que possuir algumas características. A primeira são os cabelos, têm que ser longos e negros como o céu noturno. Depois vem a pele, pálida como a neve. E então o tamanho... Quero uma boneca em tamanho real. — O garoto explicava lentamente, como se revisasse mentalmente para ter certeza do que queria.

— Características interessantes... — O mestre murmurara, enquanto começava a andar elegantemente pela loja. — Que combinam tão bem com uma determinada prisioneira, não estou certo, senhor...?

— Ethan. — O jovem respondera, Killian esticou a cabeça, para poder ver melhor a cena e espantou-se ao ver que o garoto estava branco feito um papel. Sabia que o rapaz sairia correndo em breve, iria desistir de ajudar quem quer que seja. — E sim, de fato está.

— E precisa dessa boneca para ajudar na fuga dessa prisioneira? Você sabe que engano terrível está cometendo, senhor Ethan? — A voz do confeccionista de bonecas ficava cada vez mais ameaçadora e Killian teve que reprimir a vontade recuar com a cabeça. Pela primeira vez, sua curiosidade era maior que seu medo.

— Sabe, senhor Maike, certo alguém me disse que é incomum você intrometer-se no assunto de seus clientes. — O garoto ia recuperando consideravelmente sua cor. E sua voz tornava-se mais corajosa a cada palavra, para a admiração de Killian. — Tenho certeza de que Aury ficaria decepcionado ao ver que estava enganado, principalmente quando ele ajudou tanto o senhor.

Para surpresa de Killian, agora foi a vez de seu mestre perder a cor. O mesmo parou e encarou o jovem estranho por um longo momento, até que permitiu que um sorriso calculado aparecesse em seu rosto.

— Então Aury pediu que viesse aqui para cobrar o favor que eu devo.

— Basicamente.

E então o gato saltou do muro, desesperado. Sua amiga serpente havia se machucado. Mas quem poderia desconfiar das intenções do gato? — Killian observou uma expressão confusa tomar conta do rosto de Ethan. O que seu mestre queria dizer com aquela frase?

— Isso seria um trecho de um dos Contos da Rainha? — O jovem Ethan perguntou, a confusão bem presente em sua voz.

— Sim, são histórias interessantes. Sua boneca ficará pronta em cinco dias. — Maike dirigiu-se para a porta da loja e a abriu, dando passagem para Ethan. — Agora pode ir embora.

Assim que o garoto fora embora, Killian voltou a se esconder, agradecendo o fato de seu mestre ter se esquecido temporariamente de sua presença.

As horas passaram e a loja começava a ficar barulhenta. Diversas crianças corriam, encantada com as perfeitas bonecas que seu mestre era capaz de fazer. Os pais davam sorrisos falsos, não eram todos que podiam pagar por uma daquelas preciosas bonecas e muitas crianças saiam da loja chorando, com o pensamento de que o mundo era terrivelmente injusto nascendo em suas mentes infantis.

O garoto Ethan não voltou antes do prazo estabelecido, para a grande tristeza de Killian. Embora que, no fundo de seu corpo oco e defeituoso, ele soubesse que o garoto estava muito ocupado, escapando de sua vida medíocre e entregando-se à grandiosidade de ajudar algum outro ser.

O mestre Maike empenhava-se mais do que nunca em criar uma boneca perfeita, tanto que, por vezes, ia até a praça e observava a modelo original e só então voltava para consertar algum erro que cometera, ou adicionar algum detalhe que passara despercebido. A boneca estava quase pronta quando Killian presenciou um acontecimento terrível.

— Para que serve essa portinhola? — A atenção de Killian voltou-se para a pergunta da senhora Dulce.

— Uma pequena surpresa para meu cliente... Vamos supor que, quando ele vier pegar a boneca, na mesma noite tente trocá-la de lugar com a modelo original. — Um brilho maldoso iluminava os olhos do mestre

— Por que à noite?

— Por motivos óbvios, minha querida irmã. À noite o risco de ser pego é quase nulo, a não ser...

— A não ser...? — Uma leve expectativa surgia na voz da boneca.

— Que um alarme resolva tocar. — E, enquanto dizia tais palavras, dava corda em um pequeno relógio dourado. Dulce exibiu um adorável sorriso, da forma que Killian exibia uma expressão de terror. Por que seu mestre queria destruir a grandiosidade que aquele pobre garoto demorou tanto para tentar alcançar?

Aquele pensamento aterrorizava a mente do defeituoso Killian. Aterrorizava-o suficiente para levá-lo a fazer algo imprudente. Iria desativar o alarme.

Quando a madrugada chegou, Killian caminhou até o trabalho de seu mestre. Estava tão concentrado em ajudar o garoto Ethan que sequer notou que não travara em nenhum momento, do contrário, ficaria extremamente feliz. Abriu a portinhola e retirou o relógio, pensativo sobre o que fazer. Se apenas o escondesse em algum canto, ele acabaria tocando e seu mestre descobriria, e também havia o risco de que o mestre conferisse se o relógio estava ali. A única solução seria desativá-lo. Entretanto, como faria isso?

Minutos se passaram e, logo após, horas. Foi quando Killian, afinal, descobriu um jeito que parecia promissor. Agora estava nas mãos do destino, tentara com todas as suas forças ajudar o garoto de estranhos olhos rosados, mas será que conseguiria?

Era evidente que, se tratando de Killian, tudo parecia dar errado. Naquela vez, foi um errado um pouco mais certo e foi essa pitada certeira que salvou a grandiosidade do jovem Ethan.

O garoto chegara pontualmente na loja. Ele não desconfiava do sorriso calculado do senhor Maike. Ele não sabia do alarme. Ele não sabia que, por muito pouco, tudo daria errado.

— Espero que tenha ficado satisfeito com a boneca. — Ethan deu um aceno positivo, estava estranhamente calado hoje. Seria o nervosismo ou talvez ele de fato desconfiasse de seu mestre? Retirou do bolso uma pequena sacola com dinheiro e Maike apenas fez um aceno negativo. — Não é necessário. Aury está cobrando seu favor, não é? Será por conta da casa.

Foi nesse momento que o alarme tocou.

Seu mestre ficou sem entender por um tempo e só então olhou para Killian.

— Killian! Seu intrometido maldito! Eu irei desmontar você! — Vociferou e o boneco quase se desmontou sozinho, tamanha era a sua tremedeira.

— Sabe, Maike... O que Aury te deu, ele pode tirar. É bom não desmontar esse boneco. Muito menos procurar os guardas. Porque se alguma coisa der errada hoje, Aury vai saber que foi você. — O tom de triunfo na voz do garoto era encorajador e, pouco a pouco, Killian parava de tremer.

— Isso é uma ameaça? — Mesmo que tentasse esconder, a voz de seu mestre estava carregada de medo.

— Apenas um aviso. Não há necessidade de se tornar uma ameaça, há? — Os olhos rosados pareciam brilhar... Ou aquilo era devido à luz? Quanto mais se lembrava da cena, mais verdes os olhos lhe pareciam... Até que Killian aceitou o fato. Sua mente defeituosa lhe pregara uma peça.

— Quanto ao boneco, não irei desmontá-lo. Entretanto, não há espaço para ele em minha loja. Talvez ele consiga se virar bem na rua. — E, abrindo a porta da loja, fez sinal para que os dois partissem. — Espero não encontrá-los novamente.

E foi naquele momento que Killian viu que estava completamente perdido. Lembrava-se das palavras de Dulce. As pessoas são más, você não pode ir lá fora... Eles iriam te destruir quando descobrissem o que você é.

— Killian, estou certo? — Perguntou, e seu tom era tão gentil que o boneco teve vontade de chorar. Claro que não poderia, pois bonecos não possuem lágrimas. Limitou-se a dar um aceno positivo, ao ver que não conseguia encontrar sua voz. — Você foi muito corajoso, sabia? Olha, se quiser, pode me ajudar. Sei que você não tem para onde ir agora, mas se ficar comigo eu prometo que irei lhe proteger. Podemos ser uma família, o que acha?

— A-a-acho maravilhoso, senhor E-Ethan. — Família... Nunca conhecera tal coisa. Seria algo tão doce quanto a risada de uma criança? Tão caloroso quanto aquela chama que jamais poderia tocar? Não sabia, porém... Uma estranha coragem lhe motivava a descobrir.

— Não precisa me chamar de senhor. Somos uma família, lembra? — Ele olhou para a lua e sua expressão se tornou preocupada. — Eu preciso ir, você pode me seguir, tudo bem? Não precisa correr, leve o tempo que precisar. Não irei a lugar algum sem você. Caso se perca, é só seguir os lampiões dourados.

E de fato ele se perdeu. Quando chegou à Praça Pública, encontrou um estranho gato ao lado de Ethan e uma moça de cabelos tão negros que Killian surpreendeu-se ao ver que seu mestre conseguira imitar aquela cor. Killian ficou com medo daquela criatura e sua admiração pelo seu salvador se tornara ainda maior.

E agora lá estava ele, fora do reino, longe daquela loja que carregava tanto sofrimento... Ao lado de Ethan. Ao lado de sua nova família.


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