Pequena Maria escrita por Ryskalla


Capítulo 6
Capítulo 6 - A Cor da Morte




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Uma das últimas chuvas de outono castigava o mundo lá fora, contudo naquele lugar só existia o silêncio. Estavam no subterrâneo do castelo, mas Yui acreditava estar em algum outro mundo porque nada que ela vira se parecia com aquele lugar. Chegara até mesmo a cogitar se sua mãe estava errada sobre a morte... Em seus tempos de roubos inocentes, quando seu pai insistira em vestir sua cor favorita antes de morrer, a garota perguntara a sua mãe se a cor da morte mudava de acordo com o que cada pessoa vestia e sua mãe com uma expressão dura no rosto, como se seu pai estivesse fazendo algo que lhe desagradava, perguntou:

— Qual a cor que você vê quando fecha os olhos?

— Preto. — Respondeu lutando contra as lágrimas que pareciam querer voltar.

— Então essa é a cor da morte. Porque quando você morre, seus olhos se fecham para sempre. — E a mulher afastou-se dali, deixando a filha contemplar o cadáver do pai.

Antes de abandonar o quarto, para permitir que os colegas de seu pai enterrassem o corpo, Yui acendeu uma vela para ele.

Pensar naquilo já não lhe fazia chorar, talvez estivesse endurecendo como sua mãe. Nem poderia dizer se aquilo era bom ou ruim, tudo o que podia dizer era como aquele lugar a apavorava. Talvez até mais que as bonecas.

Não havia outra cor além do branco. O chão, as paredes, o teto... Tudo ali era mais branco que a neve, tão branco que lhe parecia doentio. Mesmo o esquisito do gato era branco e por vezes Yui o perdia de vista naquele ambiente. Era quando o felino olhava para trás com seus olhos rosados que ela o diferenciava do lugar. Dois orbes rosados flutuantes... Era tudo o que tinha além do branco e dela mesma.

Uma coisa engraçada sobre os pensamentos é que quando estamos com medo eles geralmente caminham para um rumo que irá piorar esse seu medo e não amenizá-lo. Yui conhecia essa regra e por isso ocupava seu pensamento com coisas bobas, como contar até o último número que conhecia ou listar todos os pequenos objetos que furtara. Isso nem sempre funciona, porque sempre há um sub-pensamento. Esse pensamento, que é quase como outra pessoa, surge sem você poder refreá-lo.

E se estivessem dentro de uma boneca?

Era uma ideia ridícula, Yui repetiu diversas vezes. Por mais estranho que o lugar parecesse, ele não poderia ser uma boneca. Lembrava-se claramente de ter entrado no castelo...

Lembrava?

O gato parou bem quando o medo começava a manipular as lembranças da jovem. Só agora ela percebera que o corredor viraria à direita. O felino apontou sua pata para uma fileira de caixinhas pretas penduradas no alto do corredor. Todas pareciam estar ligadas por uma espécie estranha de corda.

— O que é aquilo? — Sua mão começava a coçar por aqueles objetos desconhecidos.

— Dizer o nome verdadeiro de nada lhe adiantaria, pois você continuaria sem saber o que é. Então, para falar de um modo que você entenda: são olhos. Felizmente estamos fora do campo de visão deles por enquanto. — Aury olhava fixamente para as caixinhas, como se estivesse contando-as. A pobre garota não enxergava mais que meia dúzia, sua visão já não era a mesma, porém se recusava terminantemente a usar aqueles vidros redondos. Eram horríveis e ela não queria parecer uma pessoa de muita idade. Não que pessoas com tanta idade fossem comuns, mas geralmente as que existiam eram terrivelmente ranzinzas. Como o velho bibliotecário com quem Ethan trabalhava, por exemplo.

— Por enquanto? — A pergunta escapou, mesmo que ela já desconfiasse da resposta.

— Exato. Precisarei que você corra como nos seus tempos de criança, Yui. Porque eu não irei devagar e os olhos não deverão ver você. — Após o aceno afirmativo da ladra, o gato jogou-se na frente do primeiro Olho. Yui o seguira de imediato e sentiu-se grata pela presença daqueles olhos. Correr era ótimo, era como se estivesse deixando para trás aqueles pensamentos tóxicos que tanto lhe amedrontavam. Eles não poderiam alcançá-la se ela continuasse correndo assim. Poderiam ter corrido desde o início, afinal, tudo acabaria mais rápido.

Ao final daquela imensidão branca, agora riscada por traços negros, uma nova cor foi vista: cinza. Uma simplória porta de ferro guardava o que estava além do corredor. Não havia nenhum ornamento ou fechadura, era completamente lisa e apenas uma caixinha que aparentava estar cortada no meio lhe fazia companhia. Aury parou e sinalizou para que ela ficasse ali, voltando para o Olho mais próximo. Quando Yui percebeu o que havia de errado com o gato, ele já estava batendo suas asas de morcego e pegando o que parecia ser um pedaço de papel em cima do estranho Olho. Ele não pousou, apenas voou graciosamente até a caixinha quebrada e passou o, que Yui viu ser duro demais para ser apenas um pedaço de papel, objeto na fenda da caixa e, como mágica, a porta se abriu depois de se ouvir um estalo.

A sala era oval, provavelmente estavam na base de alguma torre. Havia os mais variados tipos de objetos ali, alguns dos quais a garota nunca vira. Aury continuou voando, possuía uma expressão preocupada que Yui ignorava completamente. Sua atenção estava presa a um objeto engraçado com a forma de um funil, só que obviamente não era um funil. Em primeiro lugar, a parte cilíndrica era grossa demais. E, em segundo lugar, ambos os lados estavam tampados. Um pelo mesmo material que era feito o funil (que Yui julgou ser ferro, mesmo que não conhecesse tão bem esse tipo de coisa) e o outro por vidro.

— O que é isso? — Questionou curiosamente sem olhar para o felino. Havia tantas coisas interessantes ali. Antes que Aury pudesse responder, o dedo da garota deslizou por alguma parte do objeto, que emitiu uma luz muito forte no seu rosto, dando-lhe um susto a ponto de quase deixar o misterioso artigo cair.

— É uma espécie de lampião. Um dos projetos que não deu muito certo e não é o que estamos procurando. Consegue ver uma foice por perto? — O tom urgente do gato foi o suficiente para que a ladra engolisse suas perguntas e olhasse atentamente ao redor. Bom, havia algo que parecia ser uma foice, embora não fosse possível ver muito bem. — Aquilo ali?

— Não, é apenas um machado. — A pobre criatura soltou um suspiro, talvez no final das contas não estivesse ali. A esperança só reapareceu quando a garota acidentalmente esbarrou em uma caixa que, por sua vez, derrubou o pano responsável por ocultar uma caixa de vidro na qual o tesouro tão almejado estava guardado. Aí sim! Yui ajude-me aqui.

A garota não sabia ao certo se era assustada demais, talvez a covardia de Ethan houvesse passado para ela, no entanto aquela foice não fazia questão de esconder... Não foi necessário perguntar ao gato, pois a resposta estava óbvia. Fora com aquela foice que a prisioneira roubara a alma de milhares de crianças.

E devido ao conhecimento desse fato, a cleptomaníaca temeu, pela primeira vez, roubar um objeto. Seria correto devolver aquela arma para o monstro que tentavam ajudar? E se o seu receio fosse sua racionalidade voltando? Um sinal para que nada daquilo ocorresse... Deveria ir embora dali e esquecer-se de toda aquela loucura.

Será que Ethan ainda estava nos esgotos? Não poderia desistir... Não com Ethan se esforçando tanto. Lembrou-se de quando o amigo parara de falar com eles, do quão esperto ele fora em fazê-los odiá-lo. Não um ódio de adulto, porém aquele ódio bobo de criança que com o passar dos anos a gente acaba esquecendo... Por qual motivo eles pararam de se falar? Ethan devia ter dito algo maldoso sobre Hector e os dois brigaram, sobrando para Yui escolher um lado... Hector sempre fora orgulhoso, de fato, no entanto se esquecia das coisas com facilidade. Fora uma sorte que sua família se mudasse naquele tempo... Ou Hector também descobriria o que Yui descobriu.

O pai de Ethan sempre fora um homem adorável e a garota sempre gostou conversar com ele, mesmo quando o amigo não estava presente. Fora graças ao pai do amigo que conseguira compreender melhor a mãe e aguentá-la por tanto tempo. Fora ele que a consolara após o falecimento de seu pai.

No dia em que brigara com a sua mãe, o tempo estava maravilhoso. O Sol brilhava forte no céu, mas uma brisa dançava frequentemente para refrescá-la. A garota corria para a casa do amigo, mesmo sabendo que ele não estaria em casa, afinal, ela mesma que havia marcado de se encontrarem no Rio Viúvo. As lágrimas ainda estavam frescas em seu rosto quando viu o corpo pendurado.

A princípio, ela não entendeu muito bem o que estava vendo. Parecia tão... Errado. Por que um homem como o pai de Ethan se mataria? Não havia explicação, nem sentido... A garota quase não conseguira se esconder a tempo quando o amigo chegou.

Pareceu que ele também demorara a compreender o significado de tudo aquilo. Sua mão se ergueu para tocar o pai e quando retornou, segurava um bilhete. A reação que a garota esperava não era nem de longe a que ela presenciou. As lágrimas que ela achou que viriam, jamais ameaçaram rolar. Do contrário, apenas um olhar de fúria surgiu. E aquela foi a primeira vez que Yui viu Ethan tão irritado.

— Papai! — Aquela era a voz de Lúcia. A irmãzinha do amigo sempre foi uma das coisas que Yui mais admirava, eram poucas as famílias que concordariam em criar alguém como ela... — Papai! A mamãe quer mais água. Papai!

— Já vou! — Ethan respondera mais alto que o esperado. Suas pálpebras se fecharam, escondendo os olhos verdes que a garota tanto invejava. Quando olhou para as mãos do garoto, percebeu que estavam tremendo. Após alguns segundos, ele repetiu a mesma frase, agora em um tom mais amável. — Já vou, Lu...

Quando ele subiu com a jarra d’água, a menina permitiu-se ficar olhando para o cadáver por mais um tempo. Entreouviu a conversa entre Ethan e sua mãe, ele aproveitara-se do bolo que Yui lhe dera para justificar sua irritação.

— Garoto esperto... — Quem murmurava isso não era a jovem Yui na cozinha e sim uma Yui cleptomaníaca indecisa sobre qual escolha tomar.

— Não que eu ache que você tenha algum problema visual, então irei assumir que é apenas confusão da sua cabeça. — O felino falava rápido, numa tentativa de evidenciar sua pressa. — Mas, para sua informação, sou uma entidade com forma de gato e não um garoto esperto.

— Estava apenas me lembrando de uma coisa... Não sei se é correto devolver isso a ela. — Embora... Seria justo com Ethan desistir de sua missão? Ele que fora encarregado da tarefa mais difícil... Não conseguia confiar naquele gato, mesmo que seus motivos estivessem corretos. Não poderia permitir que aquela criatura enganasse seu amigo.

— Se eu tivesse esse poder, mostraria todo o passado de Noire para você. Então você entenderia... Ethan é a única esperança dela, o único que pode salvar a alma dela. Se Ethan conseguir, Noire não precisará usar essa foice nunca mais. — Talvez estivesse errada sobre o gato. Seu tom de voz era tão angustiado que a garota não viu nenhuma alternativa além de se apiedar dele. O que o passado daquela prisioneira escondia?

— Então me prometa. Deverá prometer que ela jamais fará mal ao Ethan. Nem a nenhum de nossos amigos. — Quanto àquelas palavras, o felino sequer pestanejou.

— Eu prometo por minha função. — Até mesmo erguera sua pata, em uma tentativa de dar mais seriedade ao seu juramento.

E assim, tanto Aury quanto os cinco guardas assistiram Yui roubar a foice.

A surpresa atingiu ambos os lados, contudo o gato não perdia tempo e derrubara uma porção de objetos para distrair a atenção deles. Yui, como a boa ladra que era, aproveitou-se dessa deixa para fugir dali, passando pelos guardas amedrontados que temiam tocar na foice.

— Isso nos tira algum tempo... Vamos! — Por mais rápida que a dupla fosse, os guardas estavam com vantagem. Talvez por conhecer Hector, Yui sabia da obsessão da rainha Charlotte. Por mais pacífico que o reino de Lycoris fosse, eles deveriam treinar dia após dia por pelo menos quatro horas. Logo, os guardas estariam quase a alcançando, até que viraram à esquerda. Estavam agora fora do alcance dos olhos.

— Yui, preciso que continue sem olhar para trás. — E quando a garota abriu a boca, ele a interrompeu prontamente. — Nem questionar. Lembra o caminho da saída?

Depois que a garota acenou, o gato fez sinal para que ela partisse. Tal como o gato pedira, Yui não olhou para trás. Se houvesse olhado, não acreditaria no que teria visto.

Quando chegou ao lugar marcado, um dia já havia se passado. Todo o seu corpo tremia, estava fraca e faminta... O que não daria por um pouco de água fresca! O gato continuava desaparecido, será que ele conseguira escapar? Claro que não havia motivos para preocupação. Aury foi a primeira coisa que ela viu, seguido pela prisioneira, Ethan e Hector. No momento em que Noire viu a foice em sua mão, levantou-se de súbito e a arrancou da posse da garota. Todos pareciam preocupados, exceto o felino. O olhar do gato estava carregado de pena.

— Hector, você poderia abrir o portão? — E com uma expressão soturna no rosto, o guarda atendeu ao pedido do gato.


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