Pequena Maria escrita por Ryskalla


Capítulo 3
Capítulo 3 - Pombos


Notas iniciais do capítulo

Vou dizer, esse capítulo foi realmente difícil de escrever e estou bem receosa se alguém irá gostar dele, por isso a demora para postar, espero que me perdoem. Sei que ele ficou um pouco grande e peço desculpas por não ter conseguido resumi-lo. Qualquer coisa que tenha ficado confusa, podem me avisar, estou aqui para ouvi-los ^^



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Por alguma razão, naquela noite sonhou com seu falecido pai. Era um sonho sem sentido aparente, sobre quem deveria comprar os presentes para a prisioneira. Acordou com o humor abalado, por que sonhara com aquele covarde?

Era mais um dia como todos os outros. Realizou suas atividades matinais metodicamente. Nunca saía de sua rotina e nem a considerava enfadonha, como muitos a julgariam. Era só... que ela era tudo o que ele possuía. Sua família e amigos estavam enterrados em um passado distante.

Poucas semanas depois de Ethan completar onze anos, sua mãe adoecera. Muitos foram os esforços para que ela se recuperasse, porém nada parecia ajudar. Houve, é claro, uma melhora que renovou a esperança da família. A melhora da morte, o jovem pensava amargurado. Se soubesse naquela época que sua mãe morreria pouco tempo depois... Talvez tivesse conseguido impedir o suicídio de seu pai. Quando seu pai percebeu o que viria depois, decidiu tirar a própria vida... deixando apenas um bilhete de desculpas que justificava sua odiosa covardia. Ele não poderia ver a mulher que tanto amava morrer. Ethan teve que acompanhar sua mãe trilhar o caminho da morte... Nunca contou para ela sobre seu pai. Nunca contou para ninguém sobre ele.

Sem opção, viu-se obrigado a arrumar um emprego. Longos meses se passaram até que encontrasse uma esperança na biblioteca. Longos meses de fome e medo onde quase levaram a única que havia lhe restado: sua irmãzinha. Não tardou para que ela fosse embora também. Pensar em Lúcia era mais doloroso que pensar em seu pai... Balançou a cabeça em um aceno negativo. Não deveria pensar nesse tipo de coisa.

Foi quando estava trancando a porta de sua casa que Ethan o viu novamente. Era, definitivamente, o mesmo gato branco. Ele parecia normal à luz do dia, exceto pelos olhos rosados. O garoto franziu o cenho e iniciou seu caminho. Tinha a impressão de que aquele gato o perseguia e isso o incomodava ligeiramente, mesmo que sentisse afeição por aqueles animais.

O felino caminhava a sua frente, como se estivesse lhe ensinando o caminho e Ethan tentava ignorar essa cena. Não iria admitir que um gato lhe mostrasse o caminho para seu próprio trabalho. Bom, talvez não fosse isso, talvez ele apenas quisesse visitar a prisioneira.

Quando chegaram à Praça Pública o gato parou. Inicialmente, Ethan ficou interessado por aquele comportamento. Não era típico para um gato ter um olhar tão... Triste, doloroso. Era quase engraçado pensar que os olhos de um animal possuíssem mais sentimentos do que os daquela garota.

Foi apenas nesse momento que Ethan deu-se conta da multidão. A Praça, normalmente era movimentada, no entanto todas as pessoas pareciam concentrar-se ao redor da ladra de almas. Motivado pela curiosidade, o garoto aproximou-se da cena. Alguns observadores gritavam, embora Ethan não pudesse entender o quê. Até que pôde ouvir o primeiro “por alguém”.

— Por Jean! — gritara uma mulher que ele não conseguiu achar.

E o barulho de um chicote.

Ethan ia abrindo caminho pela multidão, cada vez que se aproximava, ouvia novos “por alguém” e barulho de um chicote. Eram Pablos, Annes, Eduardos, Violetas e diversos outros nomes que o garoto já não prestava atenção. Cada nome seguido pelo som de uma chicotada.

Era uma cena horrível.

A ladra de almas continuava amarrada, ao seu lado encontravam-se três pessoas: dois homens vestidos inteiramente de branco que pareciam examinar atentamente a pele da garota. Ao chegar para o lado, Ethan pode ver que um dos homens estava cortando um pedaço da pele do braço esquerdo da prisioneira e colocando em uma lâmina de vidro. Seus lábios mexiam-se rapidamente, dando a impressão de estarem debatendo sobre alguma coisa, era difícil saber sobre o que debatiam por causa dos gritos furiosos da multidão.

O outro homem era o que estava com o chicote.

Ele parecia estar se divertindo ali, a cada “por alguém” ele sorria e acertava o chicote nas costas da prisioneira. Provavelmente não conseguira pensar em alguma forma digna de usar sua força, deixando-se levar pelo caminho da violência.

Ethan só voltou a dar por si quando gritou: Isso dói.

E então se deu conta do que fez.

A multidão silenciara, os homens de branco olhavam confusos para ele e o homem do chicote o encarava furiosamente. Todos pareciam esperar que ele falasse alguma coisa, porém o que ele poderia falar? Ele mal se dera conta de ter caminhado até a pequena plataforma de madeira, nem de ter entrado na frente do chicote e erguido o braço direito para proteger o rosto.

— Que diabos você tem na cabeça, idiota? — O homem do chicote foi o primeiro a quebrar o silêncio. A mente de Ethan zunia, o garoto mal lembrava como falar.

— Eu... Errado... — balbuciava incoerentemente. Que perfeito idiota ele era. Um grande idiota. Respirou fundo e sacudiu a cabeça. Era um idiota, está certo. Mas não era irracional. — Bater é errado.

— Ela não sente dor, jovem, não precisa ficar irritado. E, mesmo que sentisse, o que é isso comparado a todas as almas que ela roubou? — Um dos homens vestidos de branco se aproximou e ajudou Ethan a levantar.

— Ela não sente... dor? — Todo o discurso que havia formulado rapidamente em sua mente desaparecera. Viu o homem de branco fazer um aceno positivo com a cabeça. Notara agora que ele era ruivo e que usava óculos quadrados. Um gosto horrível para óculos, Ethan pensara.

— Exato, acreditamos que seja insensibilidade congênita à dor, ou alguma mutação do corpo dela. — continuou o homem com um tom de voz calmo e extremamente paciente, era como se estivesse ensinando a um aluno com dificuldades quanto era dois mais dois.

— Mutação é mais provável. — interrompeu o de cabelos loiros. Este, pensara Ethan, parece mais normal.

— Sim, mais provável, tendo em vista que ela não sente frio ou calor. Está mais para uma insensibilidade geral, tanto física quanto emocional. Estamos realizando estudos para podermos entendê-la e então sacrificá-la. Não vejo mal nenhum usá-la como divertimento para o povo.

— O que tem de divertido nisso? — A raiva já se tornara notável em sua voz e em seu corpo também. Todo o seu corpo tremia em fúria, os nós de seus dedos pouco a pouco se tornavam brancos. — Acha que isso vai trazer a alma de alguma criança de volta? E se ela não sente dor, qual o objetivo nisso? O quão irracional vocês são?

E novamente o chicote.

Desta vez, fora no rosto de Ethan. Os olhos do garoto encheram-se de lágrimas e uma palavra explodia em sua mente, como fogos de artifício. Uma pequena e poderosa palavra: Dor. Ela repetia em sua mente sem cessar. Era como se falasse: Estou aqui! Sinta-me! Sinta-me, porque essa garota que você tentou proteger não pode sentir. Quase podia ouvir a palavra rir. As lágrimas começaram a rolar por seu rosto enquanto ele corria para longe daquela loucura. Um bibliotecário ranzinza? Era melhor do que aquele círculo de loucos. Nem sequer olhou para trás, ou para a garota.

— Que demora! Pensei que não iria chegar mais, quer perder o emprego? Seu saco de ossos inúteis. — berrava o bibliotecário ao ver seu jovem ajudante irromper pela porta da livraria.

— Eu sei que demorei, está bem? Por que você não cala essa boca, seu velho estúpido? — gritou no auge de sua fúria. Iria perder o emprego, o velho iria criar forças e jogar uma cadeira em sua cabeça e então gritaria para que ele nunca mais ousasse botar os pés em sua biblioteca outra vez.

— Pelos céus, Ethan, o que aconteceu? — perguntou naquela voz asmática enquanto saia de trás do balcão para aproximar-se do rapaz em fúria. Finalmente levantou esse traseiro velho e ossudo da droga do balcão, pensava Ethan, porque você que é o saco de ossos aqui, seu velho insuportável. — Você está tremendo, garoto, se acalme. O que é isso no seu rosto? Óh, céus! Acalme-se.

Aquele estranho comportamento do bibliotecário fez com que sua raiva diminuísse. Não estava no olho da rua? O mundo estava errado, totalmente errado.

— A garota. Estavam batendo na garota com chicote... Aquilo é ridículo! Por que fazem isso? — E arrastou os livros que descansavam inocentemente numa mesa de leitura para o chão.

— E você se meteu na frente? O quão estúpido você é, Ethan? Você deve esquecer aquela criatura, ela só irá lhe trazer problemas. Você não precisa fazer parte daquela estupidez, mas também não pode ser estúpido o suficiente para tentar impedir. — Aquela voz asmática nunca fora tão mansa, tão compreensiva. Era estranho ouvir aquilo, era como se estivesse no lugar errado, um mundo paralelo. — O verdadeiro sábio não deixa a emoção controlá-lo, ele é que controla a emoção.

— Desculpe, Sr. Novack... — O sentimento de irrealidade era tão forte que tudo o que podia pensar em fazer era pedir desculpas. E foi esse mesmo sentimento que impediu Ethan de rir de si mesmo. Fora um perfeito imbecil, a vergonha começava a desabrochar como uma rosa tímida. A vergonha não tinha pressa, a raiva sim, entretanto a irrealidade ganhava a corrida e por isso controlava o garoto.

— Não precisa se desculpar, precisa se controlar e recuperar o juízo. Você é um rapaz muito inteligente e ágil, não me faça demitir você. — E agora ele voltava para o balcão como se o assunto estivesse encerrado. — Comece a organizar as coisas até se acalmar e até aquela multidão lá fora ir embora, pode ficar o tempo que quiser, hoje irei fechar tarde.

Ethan lançou um olhar agradecido para o bibliotecário que talvez pudesse chamar de amigo. Buscou lembrar se o velho sempre fora tão ranzinza quanto a mente de Ethan fazia parecer e decepcionou-se ao não conseguir lembrar de nada com precisão. Era tão cego a ponto de não reparar qualquer demonstração de carinho por parte do bibliotecário? Será que durante todo esse tempo fora movido por algum conceito egoísta que o impedia de ver a boa pessoa escondida dentro de Novack? Começara a organizar todos os livros, submerso em pensamentos. Era tão estranho que minutos atrás estivesse com vontade de matar o primeiro que aparecesse em sua frente e que agora, enquanto arrumava as prateleiras, estava absurdamente calmo. Não que a raiva não estivesse mais presente, apenas estava lenta. Ele imaginava que a raiva fosse veloz apenas nos primeiros minutos da corrida, a irrealidade desaparecera como um fantasma, provavelmente era um intruso na corrida que já fora retirado.

Mas a vergonha.

Ah! A vergonha. Ela começava lentamente, analisava a pista e só então começava a correr de verdade. Ela se tornava um sentimento mais urgente, mais desesperador. E, até que ele pudesse esquecer momentaneamente do ocorrido, ela continuaria correndo para sempre, mesmo que reduzisse sua velocidade razoavelmente.

Entretanto, havia coisas mais importantes para se pensar. Primeiramente, o que o faria com aquelas feridas? Ergueu o braço machucado e analisou o corte, se ele estava daquele jeito não queria sequer imaginar o estrago que fora feito em seu rosto. Os olhares de soslaio que o bibliotecário lhe enviava também não ajudavam em nada a sua situação. A biblioteca começara a ficar estranhamente movimentada, curiosos fitavam o rosto de Ethan e faziam uma cara desgostosa que levava o garoto a crer que: Ou seu rosto estava deformado ou sua atitude fora muito imoral. No entanto, o que havia de imoral em sua atitude? Que problema havia em defender um ser indefeso? Cada vez que pensava nisso, sentia a raiva ganhando espaço. Aparentemente, o senhor Novack reparara, pois expulsara boa parte das pessoas da biblioteca e pendurara uma placa de “apenas devolução” na porta.

Esperou mais uma vez que a raiva fosse embora, organizar era uma boa terapia, limpar também seria se sua mente ocupada não prejudicasse a tarefa. O bibliotecário de nada reclamava, era como se estivesse sozinho no local.

Uma pergunta atormentava sua mente. Por que havia entrado na frente do chicote? Por qual motivo deixara que a irracionalidade tomasse conta de seu corpo? Estragara tudo, fizera tudo o que dizia a si mesmo para não fazer: Fora imprudente, atraída atenção desnecessária e ainda fizera algo errado.

Errado?

Relembrava-se de uma cena de sua infância, uma das poucas em que seu pai estava presente que guardava com carinho. Era em uma praça onde não havia prisioneira sendo chicoteada. Era em uma praça onde havia um grupo de adolescentes e um pombo.

— O que estão fazendo? — Seu pai perguntara aos garotos com um tom duro, porém levemente curioso.

— Brincando. — respondeu o garoto mais audacioso, tentando dar uma falsa impressão de que não tinha medo de um homem mais velho. Garotos de rua frequentemente tinham essa atitude que, na época, Ethan acreditava ser ilógica.

— De quê? — A voz de seu pai caminhava lentamente para aquele tom perigoso que sempre fazia Ethan se esconder, e não foi diferente naquela vez, a única diferença era que seu único esconderijo era seu próprio pai. Nenhum garoto respondeu, talvez porque não soubessem a resposta ou então tinham medo de responder. Ao lembrar-se disso, Ethan pode ver que o motivo misturava as duas alternativas. — Não sabem, não é? Talvez infernize o pombo?

— É, acho que esse seria um bom nome para essa brincadeira. Não é, Michel? — O garoto que falara inicialmente perguntou para o garoto mirrado que segurava firmemente as asas do pombo. Elas não pareciam estar na posição certa, uma delas devia estar quebrada, embora Ethan não pudesse dizer qual, já que o menino segurava o pombo de uma maneira estranha.

— De fato é um bom nome. O que vocês não têm é um bom motivo. Vocês acham que machucando esse pombo irão para algum lugar? Qual a utilidade do uso dessa violência desnecessária? É vergonhoso e empobrece a alma. E pessoas com alma pobre nunca poderão conseguir alimento de forma digna, nunca saberão como sair dessa vida miserável em que se encontram. — O grupo de garotos encarava o chão, envergonhados e assustados. Menos o garoto audacioso, não se deixaria abalar por um adulto de vida fácil. Porque ele não entendia, ele não tinha o direito de falar. E provavelmente teria dito tudo isso, se naquele momento Ethan não tivesse tido um de seus ataques de covardia e implorando ao pai para ir embora. — Isso também serve para você, Ethan, por isso fique quieto.

O silêncio seguiu-se por longos três minutos, o garoto com as palavras presas em sua garganta fitava o homem que ele julgava ter uma vida fácil. Mal sabia o garoto que a vida de ninguém era fácil, nem mesmo a de um pombo.

— É só um pombo, por que se importa? — O garoto perguntou por fim, incapaz de manter o silêncio.

— Porque ele existe. Se ele existe é porque tem alguma função, nada existe por acaso. Seu propósito não é mais importante do que o dessa ave, logo você não tem o direito de infringir sofrimento a ela. Ninguém tem o direito de infringir sofrimento a algo, não importa se é humano ou um animal. É por isso que me importo. — Abaixou-se e recolheu o pombo, o garoto mirrado que o segurava soltou-o imediatamente, como se temesse tocar nas mãos daquele adulto. Ethan e o pai cuidariam daquela ave por duas semanas, até que a mesma voltasse a ter condições de guiar a própria vida.

O tempo passava rapidamente, mais rápido do que gostaria. Logo não teria mais como fugir, teria que enfrentar o mundo, enfrentar sua vergonha. Já passavam das dez da noite quando tomou coragem de voltar para casa.

— Boa noite, Sr. Novack e... Obrigado. — murmurou sem jeito, enquanto coçava a cabeça, bagunçando ligeiramente seus cabelos cor de chocolate.

— Boa noite, jovem. Não se atrase amanhã. — respondeu o velho, voltando ao seu jeito usual de ser e Ethan sentiu-se ainda mais agradecido, não gostava do velho ranzinza, porém era irreal demais vê-lo de alguma outra forma.

— Certo, senhor. — E saiu da biblioteca, o coração batendo tão forte que Ethan tinha a impressão de que ele acabaria rasgando sua pele.

Entretanto a praça estava vazia.

Exceto pelos guardas e pela garota, obviamente.

Ethan caminhou em passos rápidos, jurou a si mesmo três vezes que não olharia para a garota, que esqueceria completamente de sua existência, que não pararia e iria diretamente para casa.

Só que era impossível, para Ethan, cumprir aquele juramento.

Parou e fitou a garota que já o observava. Isso o chocou ligeiramente, mas procurou recuperar-se do choque. Não era nada demais. Ela apenas estava encarando-o. Caminhou lentamente na direção da prisioneira, sentia que sua garganta começava a secar, no entanto isso não o impediria de falar com ela. Respirou fundo algumas vezes e fechou os olhos, tinha que se acalmar. Daria apenas uma boa noite. Apenas isso. Não havia motivos para nervosismo. Abriu os olhos e estava prestes a falar quando ela quebrou o silêncio.

— Você não precisa falar comigo. Não se force a isso. — Como aquela voz poderia existir? Ethan repetia as duas frases em sua cabeça e não importava quantas vezes o fizesse, não conseguia encontrar nenhum vestígio sentimento, nada. Era uma voz morta, tão morta quanto aqueles olhos gélidos. Agora ele tinha absoluta certeza de que seu coração rasgaria sua pele e pularia para fora.

— Não estou me forçando, eu quero. — Começou Ethan lentamente, sabia que se falasse rápido demais iria errar as palavras e faria novamente papel de idiota. — É verdade que você não sente dor? E que rouba almas de crianças?

Imaginava que seria melhor ir direto ao ponto, não havia a possibilidade de enrolar a conversa, afinal o que poderia perguntar, além disso? “Tudo bem?”. Essa seria, sem sombra de dúvida, a pergunta mais imbecil que poderia fazer.

— Sim, mas prefiro alma de bebês a de crianças. — Era extremamente perturbadora a forma como ela falava aquilo. Ethan ameaçou dar um passo para trás, contudo se manteve firme. Deu alguns passos a frente e sentou-se na plataforma. Ainda havia muitas perguntas que gostaria de fazer.

— Por que faz isso? — Não sabia ao certo se deveria ficar com raiva, era um fato que aquilo era revoltante, entretanto, a presença dela o acalmava... E Ethan pegou-se sentindo pena da prisioneira.

— Porque preciso. — Ethan franziu levemente o cenho, não era a resposta que ele esperava. Na realidade, desde que ela aparecera por ali, nada acontecia como ele esperava.

— Não entendo... — Murmurou enquanto desviava os olhos para a madeira, sustentá-los por muito tempo o incomodava.

— Se eu não roubar almas, perco a minha... — Estaria ele imaginando algum sentimento na voz da garota? Ou ele próprio estaria sentindo medo por ela? Era confuso, e Ethan sentia sua mente se perder várias vezes. Era como se estivesse na linha intermediária entre o real e o imaginário. — Não sou altruísta para dar mais valor à alma de uma criança humana do que a minha alma.

— Compreensível, de certa forma. — tornou a erguer os olhos para a garota e percebeu que esta o encarava mais intensamente agora, virou rapidamente o olhar. — D-digo, continua sendo algo cruel, mas dá para entender, você não tem escolha, não é? Porque você também é imortal, embora eu não saiba como isso pode ser possível e...

— Você fala demais... Não precisa se explicar, já entendi o que quis dizer... — Seus olhos frios acompanhavam as expressões do garoto. Era um dos humanos que tinha os sentimentos mais expostos, talvez o segundo humano. Não podia se esquecer daquela humana.

— S-sinto muito. — apressou-se em dizer, encabulado. Era quase impossível conversar com aquela criatura, ao menos não da forma que gostaria. Tudo o que queria era sair correndo dali, contudo sua curiosidade o motivava a continuar buscando respostas. — Como funciona?

— O quê? — O garoto imaginava confusão na voz da ladra de almas, mas não havia nada ali e aquilo o entristecia.

— O sistema de roubar para não ser roubada. Porque é difícil acreditar que uma alma possa ser rouba... — começou Ethan, porém foi prontamente interrompido pela garota. O garoto se perguntava se ela não havia recebido algum tipo de educação ou se ele realmente falava demais. Provavelmente um pouco dos dois.

— Nunca disse que minha alma seria roubada. — Falava lentamente e não se calou quando Ethan fez menção de falar. — Minha alma é... defeituosa, se e não emendar outras almas à minha, ela acaba se desfazendo. Ninguém desejaria roubar minha alma.

— Que bom que arrumou um amigo, Noire. — Ethan pode ouvir uma voz estranhamente rouca à suas costas e virou-se rapidamente para falar com o guarda.

Mas não havia guarda.

Não haviam guardas na praça.

O garoto levantou-se num pulo, onde estavam os guardas? Por que não estavam cumprindo seu dever?

— Aqui embaixo, garoto. — falou novamente a voz que Ethan não conseguira encontrar. — Não vai achar os guardas, a essa hora devem estar bebendo em alguma taverna.

Ethan quase desmaiou ao notar que um gato falava com ele.

Era o maldito gato albino, Ethan tinha certeza, o mesmo pelo branco fantasmagórico.

A diferença é que ele falava. E gatos não falam. Não no mundo de Ethan. Olhou para a prisioneira, com esperanças de que pudesse encontrar alguma realidade ao olhar para ela.

Só que ela olhava quase que carinhosamente para o gato. Ao menos, o mais carinhosamente que era permitido a alguém sem sentimentos.

— Não fique assustado. Não quero que Noire perca um amigo por minha causa. — A voz rouca do gato era calma. Só que o que mais perturbava Ethan não era o fato do gato falar, era o fato do gato ter mais sentimentos que a garota.

— To-todos os gatos falam? — Estou sonhando, pensava, estava tão cansado que não me dei conta de já ter chegado. Estou dormindo em minha cama, certamente.

— Claro que não, gatos não falam. — acreditou ter ouvido o gato rir. Devia ser muito engraçado, para o gato, rir da estupidez de Ethan. Devia ser a pessoa mais idiota do mundo. Quem mais sentiria pena de uma criatura como ela? Quem mais tentaria conversar com uma prisioneira? — Eu não sou um gato, entende? Eu sou... Uma entidade, todavia prefiro ficar na forma de um gato.

— Aury... Será que... — Para surpresa de Ethan, havia um sentimento na voz da prisioneira: desespero.

— Sinto muito, Noire, não acho viável. Sei que você está há bastante tempo sem remendar sua alma, mas não posso fazer isso... É o mesmo que pedir para que eu te torture. — A voz do gato era preocupada, deprimida. Ethan sentia-se um intruso na cena. Do que estavam falando? Foi quando Aury, o gato, disse algo que o surpreendeu. — Não posso lhe emprestar minha alma.

— Não estou entendendo, como você poderia emprestar sua alma para ela? E ela só está aqui há quatro dias, não é tanto tempo assim, é? — Sua iris ia do gato para a garota, buscava uma explicação para aquilo. Ao que parecia, não ganhara suas respostas e sim novas perguntas.

— Na realidade, ela está presa há algum tempo. Um mês e meio. Só que a transferiram para cá há quatro dias, como você disse. — O gato respondeu tristemente, sua longa cauda branca balançava levemente enquanto falava.

Um mês e meio. Sabe-se lá o que fizeram com ela nesse período. E sua alma? Quanto tempo mais aguentaria antes de se despedaçar por completo?

— Quanto tempo ela tem? — Havia se decidido, iria ajudá-la. E também a ajudaria a encontrar uma forma de curar sua alma. Possivelmente estava fantasiando demais, porém... Toda a sua vida estava se tornando uma fantasia, então que problema havia nisso?

— Você não precisa me ajudar. — Nem gratidão, nem orgulho. Nada. Apenas o vazio, aquele vazio que embrulhava seu estômago.

— Contudo você precisa de ajuda. E acredito que esse humano será útil. — retrucou Aury com uma expressão pesada. Parecia tão determinado quanto Ethan a ajudá-la, o que deixou o garoto mais confiante. — A alma dela aguenta dois meses sem remendo, então isso significa que temos quinze dias para libertá-la.

— Você vai, realmente, me libertar? Irá colocar a alma de tantas crianças em risco? Você sabe o que significa perder uma alma? É algo muito pior do que a morte. Você não está preparado para isso. Você não é um herói, é apenas um garoto assustado com uma vida medíocre. — Aquelas palavras não poderiam ser mais verdadeiras. O que estivera pensando? Pela segunda vez naquele dia, correu para longe da plataforma de madeira. Talvez evitasse ficar perto das pessoas não porque era incapaz de conhecê-las verdadeiramente... Mas sim porque ele próprio era incapaz de se conhecer. Porque havia algo de muito errado no jeito que ele via o mundo... E por conta disso, poderia facilmente ser manipulado. Como uma marionete. Uma estúpida e crédula marionete.


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