Pequena Maria escrita por Ryskalla


Capítulo 2
Capítulo 2 - O Garoto da Biblioteca




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/469326/chapter/2

A chuva caía vagarosamente e o rapaz parecia observá-la através da janela. No entanto, não era a chuva o alvo de sua atenção e sim a garota prisioneira. Algo dentro dele fazia com que sentisse pena daquele ser. Já fora alertado quanto a sua natureza sombria... Sabia quão perigosa ela era e o que ela gostava de roubar. Ainda assim... Não parecia correto deixá-la presa no meio da Praça Pública sendo castigada pela chuva e pelo frio. O inverno logo chegaria e com ele a neve... Iriam deixá-la ali para morrer? Olhou para o velho relógio de carrilhão. Faltava pouco para as cinco horas e em breve poderia voltar para casa.

—Ethan, seu garoto inútil! Já terminou aí em cima? — A voz do bibliotecário se fez presente fazendo com que Ethan suspirasse. Era algo particularmente difícil ser empregado de um homem que vivia constantemente de mau humor. O senhor Novack, que era como o bibliotecário se chamava, era extremamente desagradável e possuía um temperamento difícil que poucos conseguiam suportar. Ethan era uma dessas poucas pessoas, para a sorte do seu emprego. Aturar o velho era desgastante, contudo o rapaz era dono de uma paciência invejável que muitas vezes podia ser confundida com covardia. — Ethan!

— Já estou descendo, senhor Novack! — respondeu enquanto olhava uma última vez para a prisioneira. Deveria descer antes que o velho lhe arrancasse a cabeça, ele parecia especialmente mais desagradável naquela semana. Uma súbita pergunta surgiu em sua mente quando terminou de descer as escadas e Ethan sentiu a curiosidade brigar por espaço. Ficou observando o franzino bibliotecário fazer suas anotações diárias, deveria mesmo perguntar aquilo? — Senhor Novack, posso lhe fazer duas perguntas?

O bibliotecário ergueu os olhos, negros como piche, do que escrevia para encarar o jovem empregado. Seus lábios finos e trêmulos formaram um sorriso debochado cujo motivo Ethan sabia perfeitamente: o rapaz destruíra uma chance de o velho ralhar com ele. Isso deixou o moreno estranhamente satisfeito, talvez porque estivesse finalmente conseguindo se adaptar àquela criatura senil. Estava tornando-se cada vez mais atento às suas armadilhas. Viu a mão trêmula do homem ergue-se levemente para passar por seus alvos e ralos cabelos.

— Bom, já fez sua primeira. Pode fazer sua segunda pergunta. — Seus olhos escuros voltaram a encarar suas anotações, entretanto sem pegar novamente a pena, deixando claro que estava prestando atenção.

— Aquela garota lá fora... Que foi acusada de roubar almas. O senhor não acredita que seria mais humano matá-la? — O bibliotecário tornou a encarar o garoto. O que ele estaria pensando? Ethan sempre fora um terrível leitor de pessoas, nunca poderia dizer o que elas de fato sentiam. Sabia que nunca conseguiria conhecer verdadeiramente uma pessoa e por isso evitava o contato com elas. Era um medo irracional, porém ainda assim...

— De fato seria, se ela fosse humana. Ainda não encontraram uma forma de matá-la. — Ao ver a expressão surpresa de Ethan o velho soltou uma risada asmática. — Acha que iriam deixar uma criatura como ela viva por aí? Claro que não, garoto tolo! Todos desejam a morte dela.

— Mas... Isso não é possível, não é? Como ela poderia ser imortal? Ninguém pode ser imortal, digo... É impossível e antinatural. — Seus olhos cor de esmeralda fitaram o chão, presos a lembranças que há muito não o assolavam.

— O impossível está muito mais presente nesse mundo do que o possível. A diferença entre eles é que um parece incompreensível e o outro não. — Essa era uma das poucas coisas que lhe agradavam no bibliotecário: sua inteligência. Algumas vezes, Novack falava coisas realmente muito belas e sensatas e Ethan o admirava por isso. — Quando é compreendido passa a ser possível, entendeu? Agora vá embora e pare de me atrasar.

Limitou-se, por fim, a dar uma última olhada na biblioteca para montar seu cronograma de arrumação para a manhã seguinte. Analisar as áreas que necessitavam de maior atenção. Seu plano para o dia posterior iria consistir inicialmente em retirar pó das estantes e reorganizar os livros do primeiro andar. A biblioteca não era um lugar grande, porém havia um número considerável de frequentadores que a deixavam constantemente bagunçada, desprezando todos os esforços que Ethan fazia para manter a organização. Ao terminar sua inspeção desejou uma boa noite ao bibliotecário e partiu.

Desde que a garota passara a ser mantida prisioneira, a segurança da Praça fora aprimorada. Era possível encontrar um guarda a cada dez metros, o que era bastante coisa tendo em vista o tamanho do lugar. Ethan imaginava se aquilo não era um absurdo da rainha, no entanto, agora já não estava tão confiante. Seguiu rumo a Rua Noroeste que desembocava em várias ruelas, incluindo a rua onde estava localizada sua casa, e passou pela garota suspensa por quatro correntes, uma para cada membro de seu corpo.

Os avisos de sua mente sensata não funcionaram. Continue andando, não pare, vá para casa. Conselhos inúteis uma vez que o interesse por aquela figura misteriosa havia ganhado mais espaço em sua mente. Balançou a cabeça negativamente, o que estava acontecendo com ele? Foi quando viu o gato que se recordou da chuva. Porque, evidentemente, era pouco usual um gato sair em dias chuvosos, mesmo que naquele momento a chuva estivesse caindo delicadamente e ameaçasse parar a qualquer hora. Os pelos do animal eram de um branco quase que fantasmagórico. Mesmo com a chuva fraca, aquela criatura parecia emanar uma luz... Observar aquele gato lhe deixara mais calmo, mesmo que o felino estivesse caminhando em direção à prisioneira. Ethan notou que a cabeça da garota movera-se ligeiramente para cima, como se quisesse olhar para o felino.

Foi então que ambos olharam para ele.

Deu um passo para trás, assustado. O gato não foi o motivo do susto. Não, por mais estranho que aquele animal lhe parecesse... Ele não era a razão. A razão foram os olhos da prisioneira. Eram extremamente frios, mais do que isso... Não havia sentimento em seu olhar. Lembrava-se de uma vez ter lido sobre um homem cujos olhos não possuíam sentimentos, mas sim um brilho assassino. Ethan soube que o brilho assassino seria no mínimo tranquilizador. Ao menos não seria como olhar para um cadáver. Aquela garota já estava morta, morta espiritualmente. Ela não podia possuir uma alma... Não com aqueles olhos.

O jovem já não duvidava de que ela podia roubar uma alma, já não duvidava de sua imortalidade. Afinal, além de mortos, Ethan relembrava agora, eram como os olhos do bibliotecário, aqueles olhos que já viram tantas coisas... Entretanto, quão antigos eram os olhos daquela garota? Quantas almas ela já havia roubado? Quando aqueles olhos perderam o calor?

Não havia respostas para as suas perguntas e percebeu que não havia razão para ficar ali. Dois guardas começaram a cochichar enquanto lançavam olhares desconfiados ao rapaz, a última coisa que desejaria era ter que dar satisfação a eles. Deu um leve aceno com a cabeça para os homens e continuou seu caminho para casa. Mas, cada vez que se afastava daquele ser assustador, mais a sua piedade e curiosidade cresciam. Queria as respostas para suas perguntas, contudo... Como poderia obtê-las?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Pequena Maria" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.