Pequena Maria escrita por Ryskalla


Capítulo 1
Capítulo 1 - Teste Número 26




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— Você consegue nos compreender? — O homem vestido de branco perguntou pela vigésima sexta vez. A prisioneira sorriu e o homem se afastou. Deveria ser aterrorizante, para ele, contemplar aquele sorriso. — Responda, por favor.

— Sim... — A íris prateada da jovem assistiu o corpo do indagador estremecer. Havia outro, que tomava notas em um pergaminho. Naquela sala, existia uma quarta presença, escondida. Apenas a garota sabia que ele estava lá.

— Bom, muito bom. Você é acusada de roubar as almas das crianças desse reino. Você nega isso? — Por mais profissional que ele tentasse parecer, não podia disfarçar o tremor na sua voz. Tudo o que aquele homem queria era sair dali, ir para bem longe daquele demônio. Quando a garota balançou a cabeça em sinal de negação, ele fez uma nova pergunta. Sempre eram as mesmas perguntas, porém só agora a garota parecia disposta a respondê-las. — Há alguma justificativa para ações tão abomináveis?

— Sim... — Moveu a cabeça de forma a afastar os cabelos negros que teimavam em esconder seu doentiamente pálido rosto. Aquele movimento fez com que o indagador se afastasse um passo. — Eu gosto... É bom... É divertido, um corpo vazio sem ninguém para comandá-lo... Um corpo solitário até a chegada da morte.

Ele não conseguia decidir se aquelas palavras eram nojentas ou assustadoras... Sim, conseguia, elas eram um misto dos dois.

No entanto, havia mais uma pergunta a ser feita.

— Por que crianças? — Sua voz estava carregada de raiva e desgosto. Seus olhos emanavam desprezo e pela primeira vez a prisioneira hesitou. Finalmente, com aquele macabro sorriso, ela o respondeu com uma nova pergunta:

— Por que não crianças? — Aquilo era o suficiente para ele. Iria começar os testes. Aqueles seriam os últimos... Se não funcionasse, ela seria transferida para a Praça Pública. O homem respirou fundo e sinalizou para seu companheiro.

— Teste número 26. Realizado por Victor e Fernando com o objetivo de eliminar a prisioneira. Última tentativa onde será realizada a retirada do coração. — Seu olhar recaiu sobre o rapaz do pergaminho. Era notável o quão assustado ele estava, não sem motivos. Todos acreditaram que decapitá-la colocaria um fim na existência desgraçada dela, mas mesmo após esquartejá-la... Seu corpo voltou a se ligar. Era uma cena que jamais esqueceria.

Certificou se a prisioneira estava devidamente presa na mesa. A luz pálida só piorava aparência da pele dela. Era como se já estivesse morta. Seu companheiro abandonou o pergaminho para lhe passar as ferramentas. Respirou fundo, já fizera aquilo milhares de vezes. Cortara o corpo daquela garota incontáveis vezes e sabia que aquilo não a incomodava. Aquela criatura era incapaz de sentir. Isso é bom, ele pensava sarcasticamente, pelo menos não há gastos com anestesia.

Cortou a pele nua da ladra de almas e observou o sangue florescer. Aquela sempre fora a parte difícil. O sangue não deveria fazer isso, o que só o lembrava de que ela estava viva... De que ela era incapaz de morrer. A jovem o observava sem nenhum sentimento no olhar. Como ela poderia parecer tão morta e tão viva ao mesmo tempo? A enorme faca ia rapidamente desgrudando a pele da garota, expondo seus órgãos internos. Agora era só remover a caixa torácica... E lá estava ele. O coração pulsante. Desviou o olhar para seu assistente cuja pele adquirira um estranho tom de verde. Por que Felipe tivera que faltar? Respirou fundo e fez sinal para que ele saísse. Não queria pisar numa poça de êmese¹ ou mesmo sentir seu cheiro. O rapaz o obedeceu, aliviado.

Victor fitava pensativamente o coração da prisioneira. Àquela altura suas vestes estavam vermelhas, assim como o chão ao redor da mesa. Era tudo tão... Antinatural. Os olhos prateados pareciam fraquejar, como quem está para cair no sono.

—Isso... Não vai adiantar... Não irei morrer, apenas adormecer... — Sem pensar duas vezes, arrancou-lhe o coração. Que adormecesse então. Observou, sem nenhuma surpresa, o coração que ainda pulsava timidamente desaparecer de sua mão e o corpo dela voltar a se regenerar.

— Teste número 26, resultado negativo. A infeliz continua viva... — Esquecera-se de que Fernando não estava ali para anotar suas palavras. Imaginava como seria a rotina do dia seguinte e por quantos dias ela permaneceria dormindo. Esperava que fosse tempo o suficiente para transportá-la para a Praça Pública, onde ficaria à mostra para toda a população. Não gostava daquela ideia, aquilo iria amedrontar as crianças e talvez até mesmo perturbasse a paz.

Deixou-se ficar ali apenas por mais alguns segundos, enquanto ponderava se a chuva já havia cessado. Não se preocupou em arrumar a sala, sabia que fariam aquilo por ele. Por fim, saiu do aposento, agradecendo aos céus por suas filhas estarem seguras daquele tenebroso pesadelo.


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Notas finais do capítulo

¹ - êmese: vômito