Um Cupido (quase) Flechado escrita por Gaby Molina


Capítulo 10
Capítulo 10 - Ódio é uma palavra forte




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Celeste

— Ouviu falar sobre o baile, suponho? — Christopher sorriu, sentando-se ao meu lado.

— Pode-se dizer que sim.

— E planeja ir?

— Não tenho certeza.

— Quer ir comigo?

Droga, Christopher, por que você sempre me faz mentir?!

— Como eu disse, talvez não vá. Posso ter... Hmmm... Coisas para fazer no dia.

— Qual é, você sequer sabe que dia é o baile.

Suspirei. Eu sentia como se meus dedos estivessem em carne viva.

— Não fique esperando por mim, Christopher, não sei se estou livre. Você deveria chamar uma garota legal. Bonita. Que está na equipe de torcida.

— Anjo, eu não vou chamar a Layla.

Revirei os olhos.

— Espero que não. Eu... tenho de ir. Te vejo por aí, Christopher.

E então apenas saí correndo até o banheiro feminino, ofegante. Abri a torneira e deixei a água cair em minhas mãos, o que me dava uma falsa sensação de frescor nas queimaduras psicológicas por causa das mentiras.

Serena saiu de uma das cabines e ergueu uma sobrancelha ao me ver.

— Ruiva? Você está bem?

— Sim — menti. A queimadura voltou. — Não.

— Você está tremendo — ela notou, segurando minhas mãos. — Sua pressão caiu, ou...? Afinal, Nefilim sequer têm queda de pressão? Enfim. Você parece estar sofrendo.

— É que... tem ficado pior — murmurei com dificuldade. — Não costumava ser desse jeito, mas agora parece que qualquer coisa é o fim do mundo... Eu não aguento isso, Serena.

Serena

E então ela desabou em meus ombros. Eu não queria ser inútil, mas me sentia totalmente impotente quando as pessoas começavam a chorar.

— Shhh. Vai ficar bem. Você vai ficar bem. A Inglaterra não é tão ruim, vai ficar tudo... — suspirei, incapaz de acreditar em minhas próprias palavras. — O que aconteceu?

Ela me soltou, esfregando as mãos nos olhos claros marejados.

— Não me faça te contar.

— Tudo bem. Não vou. Tenho uma caixa de lenços aqui em algum lugar... — abri minha bolsa, encontrando o que precisava no fundo dela. Peguei um lenço de papel e entreguei a Celeste. — Se te faz se sentir melhor, ponha tudo para fora.

— Eu... Eu não posso.

— Chorar?

— É — ela fungou. — Se eu não conseguir me controlar... — ela deixou a frase no ar.

— Tudo bem. Respire. Inspire. Expire. Quer ir à enfermaria? Pode dizer que está se sentindo mal e matar o próximo período.

O choro recomeçou, mais forte dessa vez. Um trovão retumbou no céu.

— Ah, você tem de estar brincando comigo! — vociferei, levando-a para fora do banheiro.

— Eu... Eu sinto muito, eu não quis...

Fiz um sinal para que se calasse e a arrastei até a enfermaria. A enfermeira, que inclusive era a mesma que ajudara Heath quando ele desmaiara no semestre anterior, abriu um leve sorriso.

— Posso ajudar?

— Minha amiga aqui não está se sentindo bem.

— É mesmo? — ela fitou Celeste. — O que você tem, querida?

— D-d-dor de cabeça... — murmurou a ruiva, e começou a esfregar as mãos antes de levá-las perto da boca e assoprar.

Foi então que percebi.

— É quando você mente, não é? — encarei-a. — Dói quando você mente.

Celeste não respondeu, apenas deitou-se em uma das camas e pediu um copo d'água à enfermeira, que assentiu e se retirou. Sentei-me ao lado da garota.

— Sente queimaduras quando mente. Chove quando você chora — franzi o cenho. — Por quê? Isso não acontecia com Heath.

— Heath e eu somos... Hmmm... Tipos diferentes de Nefilim — ela sussurrou, mas não acho que percebeu que estava sussurrando. Afastou uma mecha ruiva do rosto de porcelana.

— Sim, você é um cupido e ele era...

— Não. Não é isso que quero dizer.

— O que você quer dizer?

Ela desviou o olhar.

— Talvez você devesse perguntar a ele.

— Acha que ele pode ajudar você?

— Eu... Bem... Talvez.

— Ele vem me buscar hoje, você pode vir conosco.

Ela me fitou, surpresa.

— Posso mesmo?

— Pode. Mas sem a coisa toda do sorriso enorme e abraço interminável.

Ela assentiu.

Heath

Ver Serena ao lado de Celeste se aproximando do meu carro foi o suficiente para ter certeza de que algo estava muito errado.

— Argent? — franzi o cenho. — Tudo bem?

— Pergunte a ela — ela apontou para Celeste e se aproximou de mim, sussurrando: — Ela teve um colapso nervoso ou sei lá hoje, eu esperava que você pudesse ajudar. Sabe, com todo o seu... Charme Angélico, ou o raio que o parta.

— Certo. Entrem.

Para minha surpresa, Serena sentou-se ao lado de Celeste no banco de trás e a abraçou. Dei partida no carro.

—... Então... O que aconteceu?

— Tem doído mais — Celeste contou. — Costumava ser apenas um pequeno incômodo na ponta dos dedos, mas agora parece que qualquer mentirinha queima até os ossos. As tempestades estão aumentando também. Eu não sei o que está acontecendo, Heath. Estou com medo.

Mordi o lábio, impotente.

— Eu... Celeste, você fez alguma coisa... errada?

— Eu menti!

— Certo, mas quero dizer alguma coisa realmente...

— Heath, todos os pecados são iguais aos olhos de Deus.

— Você sabe o que ele quis dizer, cacete! — Serena revirou os olhos.

Celeste arregalou os olhos ao ouvir o palavrão.

— Eu... Eu... Não. Não fiz.

— Você pode ajudar ou não, Seeler? — Serena se esticou, cravando os olhos azuis inquisidores em mim.

— Não. Mas sei de alguém que talvez possa. Alguém que assistiu pessoalmente um anjo cair — suspirei, fazendo um retorno brusco.

Serena

— Garoto, por que diabos tem uma Nefilim na minha porta? — Frederick ergueu uma sobrancelha, alternando o olhar entre Heath e Celeste. — Você não aprendeu a porra da lição sobre mexer com o Céu depois do último ano?

— Por que vocês ficam falando palavras feias? — Celeste murmurou, atordoada.

— Quantos anos você tem, cinco? — revirei os olhos e me voltei para Frederick. — Afinal, como você...?

— Ainda não percebeu que eu sei uma coisa ou duas sobre anjos, moça?

— Precisamos da sua ajuda — disse Heath.

Frederick fez um gesto em direção à porta.

— Entrem, então. Mas não tem biscoitos.

Um pouco decepcionada com aquela revelação, entramos. Celeste se soltou de mim, mas não desviei o olhar dela.

— Então — Frederick sentou-se no sofá. — O que ela tem?

— A sensibilidade dela aumentou — disse Heath. — A tristeza causa tempestades, as mentiras causam queimaduras psicológicas... — Quando ele percebeu que Frederick ia abrir a boca para falar, completou: — E não, ela não dormiu com um humano.

— Escute, garoto, a sua mãe começou com essas coisas também, e a partir daí apenas piorou. Essas torturas são como tentações. Razões para se jogar do Céu. Mas elas não simplesmente aparecem — Frederick estreitou os olhos, analisando Celeste. — É como um revólver. É inofensivo, até algo ou alguém puxar o gatilho.

— Eu... Eu não sei o que aconteceu — disse Celeste, e estava falando a verdade, porque não começou a sentir como se estivesse queimando.

— Por que isso nunca aconteceu com Heath? — indaguei, e então algo me ocorreu. Fitei-o. — Não aconteceu, não é? Quero dizer... Eu saberia se tivesse acontecido... Certo?

Heath assentiu. Senti um peso de desvencilhando de minhas costas.

— Eu não sou... Hm... Sensível. Eu sempre disse que era um anjo de merda, Argent, e eu não estava exagerando.

— O que quer dizer?

Ele hesitou, apertando os lábios.

— Você precisa ir para o estágio, não precisa? Vamos, eu te levo. — ele se voltou para Celeste. — Fique aqui um minuto, sim? Eu já volto.

Segui Heath até sua picape. Ele deu partida e ligou o rádio. Eu tirei sua mão do botão e desliguei.

— Vamos. Celeste me disse que vocês eram tipos diferentes de Nefilim. O que isso quer dizer?

Ele suspirou, sem desviar os olhos da avenida.

— Sangue Nefilim é uma mistura entre sangue angélico e sangue humano. Mas não tem como essa mistura ser exata. Sabe, 50% de cada. Um lado sempre acaba se manifestando mais do que o outro. É por isso que eu dizia que tinha que reprimir meu lado humano. Por isso seria muito difícil conseguir uma promoção. Por isso é tão fácil para mim me encaixar no mundo humano. Porque eu sou humano, majoritariamente. O sangue Nefilim é mais poderoso, e está sempre lutando para tomar o controle, mas ele está em desvantagem. Como ele existe, eu tenho reflexos melhorados, velocidade e visão aguçada, e minha posição me permitia invocar tempestades e tal... Mas eu não poderia desenvolver... Digamos... Meu potencial total.

— E Celeste é diferente?

— Celeste é a Nefilim com mais sangue angélico que eu conheço. Ela é quase um anjo, por isso vive sob algumas regras de um. Anjos não mentem, não deixam que os humanos os afetem a ponto de chorar. Não se corrompem. Celeste tem muito poder dentro de si que ela nunca explorou. Conviver com humanos está despertando isso. Ela é pura demais para esse mundo — ele falou a última frase com um pouco de melancolia, como se falasse sobre algo distante que jamais poderia alcançar. — Chegamos.

Ele parou o carro e destrancou as portas. Eu mordi o lábio e fitei-o.

— Heath... Eu sei que isso deve ser difícil para você.

Ele ainda não olhava para mim.

— O quê?

— Vê-la aqui deve fazê-lo lembrar de tudo o que deixou para trás... Não é justo.

— Não me arrependo da minha escolha, se é isso que quer saber.

Afastei-me, um pouco ultrajada.

— Eu só me importo com você, idiota. Quero ver um sorriso nessa cara babaca. Ainda não percebeu que isso é tudo o que importa para mim?

Ele suspirou.

— Desculpe.

— Por que não está olhando para mim?

— Eu deveria?

— Está falando comigo, não está?

Heath suspirou novamente, tamborilando os dedos no volante. Bufei.

—... Merda, aquela ruiva idiota aqui não está fazendo bem para ninguém.

— Você não pode simplesmente esperar que eu esqueça minha vida inteira num piscar de olhos, Argent.

— Não, mas eu posso esperar que você fale comigo sobre isso.

— Você é humana! Como vai me ajudar?!

— Então fale com a Celeste sobre isso. Aposto que olharia para ela se ela pedisse — cuspi as palavras, abrindo a porta do carro.

— Serena. Eu já tenho o suficiente na cabeça. Deixe eu me acalmar, depois conversamos.

Senti algo esquisito quando ele pronunciou meu nome daquele jeito, entre suspiros. Ele nunca me chamara pelo primeiro nome quando estávamos discutindo.

— É, bem, você pode se acalmar. Eu vou passar as próximas quatro horas ouvindo sobre Direito.

— Ei. Foi você quem quis saber.

— Acha mesmo que eu me importo com que tipo de Nefilim você é?! Eu amo você, caralho, e a sua porcentagem de sangue angélico, seja lá qual for, não tem nada a ver com isso.

— Eu também amo você. Por favor, entenda. Olhar para ela traz tudo de volta. De dia em devaneios, e de noite em pesadelos. Eu tenho que me convencer a cada minuto de que o Céu não pode me atormentar, e eu não quero me lembrar de você assim.

— Assim como?

— Magoada — ele murmurou a palavra, culpado. — Descrente. Exasperada. Não é assim que eu quero me lembrar de você em meus sonhos.

Toda a minha irritação se esvaiu de uma vez só. Droga, ele era bom.

— Você sonha comigo?

Ele abriu um meio-sorriso.

— É uma surpresa tão grande assim?

— Bem, eu preciso ir. Não esconda as coisas de mim, Seeler — pedi e ele assentiu.

Saí do carro.

* * *

O sr. Oyler ergueu uma sobrancelha quando entrei na sala.

— Atrasada, srta. Argent.

Uou, ele se lembrava do meu nome. O ódio de minha mãe por ele devia ter sido realmente traumatizante.

— Desculpe. Estava impedindo um anjo de provocar tempestades por chorar — falei, me sentando.

Sr. Oyler soltou um riso baixo, entretido, erguendo uma sobrancelha.

— Ah, nesse caso, acho que posso perdoá-la.

E então ele continuou explicando a matéria.

— Respondendo à sua pergunta, srta. Childs, amante de The Good Wife, sim, a Constituição britânica possui uma lei contra autoincriminação. Ou seja, o seu direito de não responder a perguntas no tribunal se você achar que sua resposta pode dar motivo para um processo contra você. Os britânicos não tem um nome para isso, como a Quinta Emenda americana, mas sim, existe. Porém, vocês devem se lembrar de que não é uma coisa variável, ou seja, você não pode simplesmente escolher quais perguntas quer responder ou não. Se você disser "Recuso-me a responder sob bases de que isso possa me incriminar", tem de dizer isso durante todo o seu depoimento, para todas as perguntas. Ah, sim, e os julgamentos/simulações começarão semana que vem. Recriaremos João e Maria. Um lado defenderá as crianças, e o outro a bruxa. Lembrem-se: ser um bom advogado não é sobre conhecer a lei. É sobre saber usá-la.

Audrey

— Sua aura está estranha, filha — minha mãe, Virginia, franziu o cenho quando entrei na sala.

— Ela deve estar resfriada, com esse tempo horrível — murmurei. — Não é à toa que a Inglaterra tem um dos maiores índices de suicídio.

Tropecei na estátua de Buda que minha mãe tinha na sala. Ela não era budista, mas achava algo glamouroso e necessário num cara gordo seminu feito de ouro.

— É por causa de um garoto, Audrey?

— Não, é que eu tirei quatro na prova de Biologia, mesmo — dei de ombros. — De qualquer forma, quem liga para Biologia?

— Biologia é importante. A natureza é importante, querida.

— Posso plantar uma árvore e compensar isso?

— Bem... Suponho que seja uma ideia válida. Por que não chama Serena para cá, se não quer falar comigo?

— Ela está no estágio, mãe.

Era verdade, mas achei melhor não acrescentar que a mãe dela a proibia de visitar minha casa porque tinha medo de que Virginia a convertesse a alguma seita esquisita, e eu francamente não culpava Patricia por isso.

Quando eu estava subindo as escadas, minha mãe soltou a bomba:

— Você vai ao baile, Audrey?

Torci o nariz, sem olhar para ela.

— Ainda não decidi.

Não que a escolha fosse minha, de qualquer forma. Por que todo mundo estava tão obcecado com essa coisa?

Celeste

— Você fala como se ela gostasse de você bem mais do que você gostava dela — comentei, tomando um gole de chá.

Frederick se remexeu na poltrona.

— Não, não, eu amava Maureen. Não me entenda mal.

Ele simplesmente é um velho cínico e amargurado, ainda não percebeu? — foi a primeira coisa que Serena disse ao entrar na casa. Franzi o cenho para a distância estranha entre ela e Heath, os dois em pé na porta. Havia algo estranho ali, eu podia sentir. — E então, Frederick, descobriu como consertar a Srta. Chuvosa?

— E eu sou o cínico e amargurado? Tem certeza? — Frederick revirou os olhos. Ele se voltou para o filho. — Seja lá o que você fez que desligou o interruptor de humanidade da Argent, dê um jeito.

— Acho que está superestimando minhas habilidades — Heath esboçou um sorriso.

— De qualquer forma — Frederick ajeitou os óculos de leitura. — Eu não sei o que houve com essa menina. A ruiva, quero dizer. A loura simplesmente não tem aquela parte do cérebro onde fica o filtro de palavras.

— Todo mundo resolveu me atacar hoje? Maravilha — Serena revirou os olhos.

— Hmmmm... Podemos ir? — pedi baixinho.

Heath assentiu.

— Tchau, Frederick. Obrigado por tentar, mesmo assim.

— Sem problemas, garoto. Foi bom vê-la, moça — ele acenou com a cabeça para Serena. — E foi um prazer conhecê-la — ele acenou para mim também.

— O mesmo — abri um sorriso fraco.

Caminhamos em silêncio até a picape de Heath. Serena sentou-se no banco do passageiro e eu fui no banco de trás.

— Argent... — Heath começou, mas a garota ligou o rádio e começou a cantar uma música folk bonitinha.

Well, you only need the light when it's burning low... Only miss the sun when it starts to snow...

— Serena.

Ela arregalou os olhos e bufou.

— Pare de fazer isso!

Eu me encolhi no banco de trás, fingindo que não existia, mas Heath não insistiu. Serena continuou cantando — e Virgílio estava certo, ela realmente cantava muito bem — até a casa dos Watson, onde parou para dizer:

— Tchau, Celeste. Melhoras.

— Eu... — fiz uma pausa, surpresa. — Obrigada.

— Tchau — Heath abriu um leve sorriso.

Heath

Eu não entendia por que ela fazia questão de fugir de mim, já que sabia que eu era um Nefilim e podia alcançá-la na corrida sem nenhum esforço.

Agarrei seu pulso e forcei-a a olhar para mim.

— Fale comigo.

— Eu quero que ela suma, e me odeio por isso.

Ergui uma sobrancelha.

— Celeste? Acha que se ela sumisse, isso resolveria todos os nossos problemas?

— Bem, a grande maioria deles.

Ergui o queixo dela com um dedo.

— Sei que estou pedindo que tenha paciência, e que essa não é uma qualidade memorável em nenhum de nós dois... — esbocei um sorriso. — Mas preciso de um tempo para lidar com tudo. Estou sozinho nisso tudo, Serena. Não tem exatamente um manual Nefilim sobre Como Sobreviver na Inglaterra.

— Odeio que se sinta assim, porque... Você não está sozinho, Heath — ela suspirou, cravando os grandes olhos azuis em mim. — E eu realmente queria que você não se sentisse assim, mas eu me sinto tão inútil. Mais do que isso, um fardo. Não queria que gastasse tanto tempo com as minhas coisas. Me buscando no colégio, e no estágio, e comendo a pachocheira horrível da minha mãe, e me ouvindo falar sobre os meus problemas idiotas.

Afastei uma mecha do cabelo dela do rosto.

— Eu deveria falar alguma coisa inspiradora agora, mas só consigo pensar que você fica muito adorável falando "pachocheira", mesmo que eu não tenha certeza do que isso significa.

Consegui arrancar um sorriso dela.

— Idiota.

— Afinal, por que ficou brava no carro? — indaguei. Ela baixou a cabeça. — Argent...

— Meu nome. Meu primeiro nome, quero dizer. Você nunca me chama pelo meu primeiro nome, exceto em ocasiões especiais, e hoje você o disse duas vezes enquanto estava irritado comigo.

Não consegui evitar. Comecei a rir.

—... Não é engraçado!

— É sim — beijei a testa dela. — Você é muito engraçada.

— Que bom, adoro ser sua namorada palhaça. É realmente o sonho de qualquer garota — ela revirou os olhos, e eu podia praticamente ver o veneno saindo junto com suas palavras.

— Ah, cala a boca.

E ela calou. Porque eu a beijei. Colei nossos corpos. A sensação do meu coração junto ao dela, apesar de familiar, nunca deixava de me causar arrepios. Eu sentia o corpo dela relaxando, cedendo ao contato. Não sabia direito como eram os outros casais de nossa idade, mas imaginei se os beijos deles também eram 97% das vezes antecedidos por uma discussão e/ou xingamentos.

Decidi que não. Mas, merda, nada era melhor do que abrir os olhos e encontrar aquele par de orbes azuis como o céu de algum país tropical no verão, trazendo luz ao firmamento sem graça da Inglaterra. Aqueles olhos completamente vulneráveis, presos nos meus.

— Eu amo como você pensa que é a que manda na relação — provoquei. Segurei a mão direita dela e comecei a brincar com os seus dedos.

— Ah, beleza então, macho alfa fodão.

Considerando que a única forma de eu ganhar uma discussão era beijando-a, achava realmente desumilde que ela continuasse mostrando sua superioridade intelectual depois do beijo.

Por isso eu a beijei novamente, com mais paixão dessa vez, mas na tentativa de deixá-la presa acabei me prendendo também. Ela apoiou os braços em meu pescoço e eu desci as mãos pela cintura dela. Ela mordeu meu lábio, o que era um costume irritante dela, mas eu geralmente estava ocupado demais para reclamar.

E então a porta se escancarou.

— Oi, sra. Argent — não que eu soubesse muito sobre o assunto, mas me pareceu adequado chamar uma mulher de um jeito formal depois que ela te encontra quase engolindo a filha dela. — Como vai a senhora nesse belo fim de tarde?

— Seu lábio está sangrando — Patricia notou.

— Ah — limpei com o dedão. — Bem, isso não foi minha culpa.

Serena me deu uma cotovelada, que também doeu.

— Oi, mãe.

— Oi, Serena.

Serena ergueu uma sobrancelha para mim, o que me fez perceber que eu ainda estava com as mãos na cintura dela. Soltei-a.

— Tchau, Argent — falei, beijando sua testa.

Ela sorriu e se despediu também. Patricia me fitou por um momento com um olhar que não reconheci e as duas entraram na casa.

Thomas

Como sempre, minha mãe continuou arruinando o jantar e ignorou completamente o fato de que a filha dela estava se engalfinhando com um marmanjo na calçada.

O que era totalmente injusto, considerando o tamanho da bronca que eu levei quando Patricia descobriu que eu tinha dormido no quintal dos Maxwell. E a sra. Maxwell se provou uma grande dedo-duro, o que fez com que ela perdesse muitos pontos na minha classificação mental de vizinhos, mas minha mãe gostou de ter uma dessas vizinhas que sabem tudo o que acontece com os filhos alheios.

Take me out tonight

Oh, take me anywhere, I don't care

I don't care, I don't care

Achei que tivesse deixado meu som ligado, mas a música não vinha da minha casa. Abri a janela do meu quarto e notei o aparelho de som ligado na casa de Piper, que dançava sozinha no próprio quarto.

— Você gosta de The Smiths?! — gritei, o que talvez soasse como uma pergunta óbvia, mas na verdade eu estava apenas surpreso.

Piper sorriu ao me notar.

— E você não?

— É a melhor banda do universo!

— Eu sei, certo?!

Ouvi uma batida na minha parede.

Para de gritar, algumas pessoas estão tentando estudar a Constituição aqui! — minha irmã gritou do quarto do lado.

— Constituição? Nós temos uma dessas? — zombei.

— Vem pra cá! — Piper gritou. — Quero mostrar o progresso que fiz na casa da árvore... E uma outra coisa também.

Protejam-se! — Serena zombou.

Soquei a parede também.

— Olha quem fala! Tchau, tapada.

Tchau, cretino. Divirta-se na casa da vizinha bonitinha.

Piper enrubesceu, o que me fez achar que ela ouvira os comentários idiotas de Serena, mas me fiz de desentendido e corri para fora da casa antes que alguém pudesse me impedir. Pulei a cerca e entrei no quintal dela, não muito disposto a bater na porta da frente e lidar com os pais (que provavelmente me odiavam àquela altura). Então, é, talvez eu não fosse cavalheiro a esse ponto, o que pode soar estranho, considerando que fui criado por duas mulheres, mas lembre-se de que não foram exatamente as duas mulheres mais delicadas do planeta.

Piper havia terminado a base da casa da árvore e começado uma das paredes, e até que ela tinha talento para a coisa. Quando ela começou a me arrastar para dentro da própria casa, murmurei:

— Talvez não seja uma boa ideia.

Ela riu.

— Meu pai não está em casa. Acho que vamos ter de adiar a remoção dolorosa de todos os seus órgãos vitais.

— Ah — soltei. — Que pena.

Entramos na casa, que era parecida com a minha, e subimos até o andar de cima. Eu vira o quarto dela mais ou menos pela janela do meu quarto, mas ele era mais legal de perto.

— Espera aí — ela saiu do quarto.

Passei um tempo notando o verde das paredes, o lustre simples prateado, o edredom de flores... As paredes eram cheias de esquemas com mapas que não entendi direito. A porta se abriu e Piper me fitou com os grandes olhos cor de âmbar, afastando uma mecha do cabelo do rosto.

— Pronto, pode vir.

Eu a acompanhei até uma espécie de sótão, que na verdade era muito limpo e arrumado, diferentemente da grande maioria dos sótãos do universo, que são usados para despejar coisas inúteis que você não quer mais, mas acha que podem ser úteis eventualmente (apesar de nunca serem).

— Ainda não tivemos tempo de colocar tudo em prateleiras, mas... — começou ela, mas eu ignorei e corri até as poucas caixas que já haviam sido desempacotadas.

Logo tinha em mãos o disco de vinil original de Meat Is Murder, do The Smiths. E não só esse, como muitos outros. A discografia inteira da banda britânica, além de outros, como Nirvana e Elvis Presley.

— Isso... Isso... — podia sentir o brilho em meus olhos. Serena sempre ficara triste quando criança porque nossa mãe nunca nos levou para a Disney (ela vai negar se alguém perguntar), mas aquilo era a Disney para mim. Não, era melhor. Era muito melhor. — Como...?

— Meu pai coleciona — explicou ela. — Não os estrague.

Sorri.

— Ou seu pai vai me matar?

Ela ergueu uma sobrancelha.

— Está brincando? Eu vou te matar. Estou na equipe de luta, esqueceu?

— Ah, é. Sobre isso... Eles têm uma cota de garotas, ou algo do tipo?

— Por quê? Acha que não sei lutar?

— Bem, você tem de entender meu ceticismo — apontei para o corpo magro e pequeno dela.

Ela soltou um riso cínico, como se eu fosse inacreditável.

— Você é meio babaca, Argent.

— É de família — sorri.

— Mas não posso te odiar. Seu gosto musical é bom demais.

— É, esse é basicamente o único motivo pelo qual eu não odeio a minha irmã. Ela me mostrou The Smiths.

— Foi meu pai que me mostrou. E seu pai? Também gosta de música?

Hesitei.

— Eu... Eu não sei.

— Como não sabe?

— É... — arrumei os discos e me levantei. — Eu tenho que ir.

Comecei a me afastar, mas ela me chamou:

— Eu disse algo errado?

Abri o sorriso mais gentil que consegui. Não queria que ela se sentisse culpada pela minha família deturpada.

— Não, nada disso. Relaxa. Valeu por me mostrar os discos.

— Podemos ouvir qualquer hora.

Meu sorriso se estendeu.

— Seria ótimo.


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