Quando Tudo Aconteceu escrita por Mi Freire


Capítulo 41
Capítulo XL


Notas iniciais do capítulo

Tá aí o capítulo tão esperado! Finalmente as respostas para tanto mistério.



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Se passava de uma hora da tarde quando cheguei em casa com a bicicleta, descendo dela e deixando parada na garagem.

Pepel passou por mim, tentando chamar a atenção. Eu me abaixei por um segundo e passei os dedos em seus pelos macios.

Tinha acabado de voltar de um passeio com o Bernardo pelo centro, a gente costuma ir pra lá algumas vezes durante a semana para comer alguma coisa diferente do que estamos habituados a comer em casa.

Tirei meu casaco, estava com muito calor. Os dias estavam voltando a serem quente como antes. Com a chegada de dezembro, o verão tem se aproximando cada vez mais. Aquela era a penúltima semana de aula no colégio antes das tão esperadas férias de fim de ano.

Entrei em casa com a mochila jogada sobre um ombro e o casaco no outro. Pepel entrou comigo, indo em direção a cozinha, provavelmente faminto.

― Tenha calma. – eu disse a ele, como se ele realmente pudesse me entender. Mas quem disse que não?

Deixei o mochila no chão e fui atrás dele, na cozinha.

― Eu já vou colocar ração pra você.... – levei um susto ao entrar na cozinha. Minha frase morreu no ar.

Haviam duas pessoas sentadas na mesa da cozinha, um do lado do outro. O homem mesmo sentado não parecia muito alto, não era magro, nem gordo, tinha o rosto lisinho, sem barba, sem imperfeições, um nariz fino, olhos castanho-escuros e cabelos curtos, bem cortados, de um castanho mais claro que os olhos. Ele trajava um camisa de cor clara, jeans escuros e sapatênis comum.

A mulher era visivelmente mais baixa, magra, sobrancelhas bem delineadas e escuras, a boca pequena e rosada, a pele clara e tão palita quanto a minha e ela sorria pra mim, sorria como se não me visse há décadas ou como se realmente me conhecesse. Mas eu a desconhecia, apesar de, os cabelos dela, de um louro mais escuro, mais para o dourado, serem ondulados e volumosos, assim como os meus. Ela usava um vestido rosa-claro, um casaquinho branco e sapatilhas escuras.

Deduzi que os dois tinham mais ou menos a mesma idade, beirando os quarenta anos. E pelo visto, eram um casal, pois estavam muito próximos e as mãos dadas sobre a mesa com alianças.

― Ah, ainda bem que você chegou Clary. – Isabel surgiu do nada, sorridente e aparentemente tranquila em me ver.

― E quem são.... Eles? – eu perguntei, virando-me para ela. Isabel sorriu sem graça, acho que não sabia a resposta.

― Na verdade, eu não sei. Quando eu cheguei do colégio eles já estava na porta, esperando. O Vicente deixou um bilhetinho, dizendo que foi ao mercado, mas que não demoraria. Bom, você não estava. E eles insistirem em esperar, e eu os convidei pra entrar.

― Me permita que nós nos apresentemos. – o homem levantou-se, estendendo a mão para um cumprimento. O sorriso dele me parecia muito familiar. Mas eu estava muito confusa, de fato. ― Eu sou o Matias.

― E eu – a mulher se levantou sorrindo, ajeitando o vestido. Ela se aproximou de nós. ― sou Tatiana. É muito bom ver você, Clarissa. – ela me puxou para um abraço. Eu não tive nem tempo de corresponder. Não sabia o que estava exatamente acontecendo ali. ― Você cresceu muito!

Tanto eu quanto Isabel estávamos assustadas, afinal, quem eram aqueles dois e o que faziam ali em nossa casa?

― Ah, então vocês são a Tatiana e o Matias que tanto mandam envelopes misteriosos para o nosso pai. – Isabel lembrou, sorrindo.

E ela tinha razão. Agora sim eu conseguia me lembrar, dos dois nomes que eu vi em um desses tantos envelopes. Eram eles, ali, diante de mim.

― O que está acontecendo aqui? – naquele momento, o Vicente adentrou a cozinha com algumas sacolas em mãos. Sua expressão eram um tanto intrigante, parecia que ele tinha acabado de ver um fantasma.

A Aline, com mais sacolas, apareceu logo depois.

― O que vocês estão fazendo aqui na minha casa? – Vicente disparou. Agora olhando para o casal a nossa frente com muita raiva, como se os odiasse. Eu olhei para o casal e vi que apesar da reação do Vicente, eles não se abalaram e sorriam daquela maneira ousada e intimidadora.

― Ora essa, o que mais estaríamos fazendo aqui? Viemos visitar a nossa filhinha. – disse o homem, sorrindo ainda mais. Em seguida, ele olhou para mim e foi aí que eu entendi tudo apenas com um olhar.

Aqueles dois eram os meus pais.

― Pai? – perguntei, chocada. ― Mãe...? São vocês?

― É claro que sim minha filhinha. – a mulher novamente me abraçou, dessa vez mais apertado. E parecia de fato muito emocionada.

― Larga ela agora! – o Vicente jogou as sacolas no chão e praticamente me arrancou dos braços da mulher que evidentemente ficou muito ofendida. ― Com que direito vocês aparecem assim? Agora? Depois de tantos anos?

― Isabel e Clarissa, vamos dar um tempinho para eles. – Aline, muito calmamente, nos puxou pra trás. ― Eles precisam conversar.

― Não! Eu não vou sair daqui. – dei um passo à frente, voltando ao meu lugar. ― Vocês sabem por quanto tempo eu esperei por esse momento? – senti meus olhos se encherem de lágrimas. ― Eles são meus pais! Meus pais de verdade! Eu sempre quis conhece-los.

Dessa vez, eu tomei a iniciativa. Dei um outro abraço na mulher, que realmente era muito parecida comigo. Ou eu era muito parecida com ela. Os nossos cabelos eram praticamente idênticos! Apesar do meu ser mais claro, mais cacheado e mais volumoso. O dela mais escuro, mais ondulado do que cacheado. Abraçando-a pela terceira vez, eu senti o perfume de sua pele e foi como se eu pudesse voltar no tempo, identificando-o.

Cheirinho de lavanda.

Dei um abraço apertando no meu pai, digo, meu pai de verdade, enquanto as lágrimas escorriam dos olhos de pura emoção. Ele também tinha um cheirinho muito bom. Um cheirinho que me fazia querer ficar ali, em seus braços, para todo o sempre. Porque sabia que ele era capaz de me proteger de qualquer coisa.

Naquele momento eu só conseguia pensar em duas coisas: no quanto eu queria conhecê-los e saber da minha história e o quanto eu queria que o Bernardo estivesse ali para fazer parte daquilo.

― Porque vocês me abandonaram? – essa foi a minha primeira pergunta, assim que me afastei de ambos. Olhando-os.

― Clarissa, minha filha – Vicente tocou meu ombro e foi então que eu me lembrei de que não era só eu e meus pais. Isabel, Vicente e Aline ainda estavam ali presenciando aquela cena. ― você não está entendendo. Olha pra mim – ele virou-me pelos ombros. ― Eu sou o seu pai. E você precisa me escutar! Por favor, me deixe conversar com eles por um momento. Temos muito o que conversar. E aí, só depois a gente vê o que faremos a seguir, está bem?

― Não, pai. Não! Eu preciso falar com eles agora. Eu preciso saber de tudo! Não me tire essa chance, por favor. – eu olhei no fundo dos olhos dele, com o coração apertado. ― Por favor.

― Clarissa, escuta – Aline novamente se intrometeu, puxando-me calmamente pelo braço. ― você terá todo o tempo do mundo para conversar com seus pais com mais calma. Mas agora os adultos precisam resolver algo muito importante. Vamos esperar um pouquinho na lá sala? É rapidinho, você vai ver.

Ela estava falando comigo se eu fosse uma criança.

― Vamos, Clary. – Isabel pegou a minha mão, encorajando-me. ― Depois vocês conversam. Eles não vão fugir daqui.

― Não! Vocês não estão entendendo! – livrei-me de todo mundo, cheia de raiva. Fui para o lado dos meus pais, colocando-me entre eles. ― Eu tenho muito o que conversar com eles. Eu! E tem que ser agora.

Peguei a mão dos meus pais, um de cada lado.

Ignorei o olhar de fúria do Vicente, ignorei o olhar de pena de Isabel, ignorei a calma da Aline e nenhum dos três voltou a falar, porque não importava o que eles tivesse a dizer, eu não escutaria, pois finalmente ali, bem ao meu lado, estavam os meus pais e a história da minha vida.

Convidei meus pais para sentarem comigo a mesa.

― Porque? Porque vocês me abandonaram? – naquele momento eu sentia uma mistura de tudo: raiva, decepção, ódio, mágoas, tristeza, felicidade, angústia, contentamento, satisfação.

― Nós vamos responder o que você quiser, minha filha. – meu pai pegou a minha mão sobre a mesa para segurar. ― Só tenha um pouquinho de paciência.

Eu sorri, ele tinha razão. Eu estava acelerada, indo com muita pressa. Isabel estava certa: eles não iriam fugir de mim. Não outra vez, porque dessa vez eu não iria permitir. Pois já era grandinha o suficiente, diferentemente de antes.

Sequei minhas lagrimas com dorso da mão e tentei me conter.

― Quando eu fiquei gravida de você, estávamos passando por um momento de crise financeiramente. Não tínhamos ninguém para nos ajudar, éramos só nós dois e nos vimos no fundo do poço. Não tínhamos condições alguma de sustentar uma criança e não nos restou saídas: tivemos que te deixar na porta de um orfanato.

― Eu não entendo... Porque me largaram na porta de um orfanato? Porque não me entregaram nas mãos, diretamente, de alguém que pudesse cuidar de mim? Vocês simplesmente me largaram! – voltei a chorar novamente, dessa vez com mais intensidade. Era como se através de outros olhos eu pudesse ter a oportunidade de ver a cena daquele dia, do dia em que eles me largaram em um porta qualquer, só que em outro angulo.

Ouvi a movimentação, de quando o Vicente, a Aline e Isabel saíram da cozinha. Mas não olhei pra trás, e continuei de costas para ele, porque aquele momento era só meu. Meu e dos meus pais.

― Filha, foi muito difícil pra mim. Você não imagina o quanto! – minha mãe pegou a minha outra mão para segurar. Ela também já estava com os olhos cheios de lagrimas. ― Sempre que eu volto a pensar nisso, eu me sinto culpada, injusta e arrependida. Fomos cruéis com você! Mas sabíamos, tínhamos certeza, que você encontraria alguém que lhe daria todo o conforto do mundo. Você era um bebê lindo, com saúde, cheio de vida! E olha só pra você agora – minha mãe olhou em volta, impressionada. ― Tem uma vida de princesa! Coisa que nunca poderíamos ter dado a você.

― Mas, nem por um momento vocês se importaram com o que eu sentiria quando fosse mais velha e capaz de entender as coisas. Eu não queria uma vida de princesa, eu não queria riqueza, eu não queria ter os melhores pais do mundo... Eu só queria ter vocês ao meu lado, como uma família normal, vivendo a nossa vida, juntos. Para o que der e vier, como tem que ser.

― Sim, hoje nós entendemos. – minha mãe era a única a falar. Meu pai, o Matias, estava todo o tempo de cabeça baixa. Parecia envergonhado. ― Mas naquele tempo não entediamos. E precisamos deixar pra trás nosso único tesouro, precisamos mudar de cidade, ir pra bem longe, tentar recomeçar do zero para aprender o quanto fomos egoístas com você! Não faríamos novamente, se tivéssemos a chance....

― E porque só depois de dezesseis anos vocês resolveram me procurar, saber de mim? – eu estava chorando mais agora, tentando a todo custar limpar as lagrimas com mais agilidade. Não queria que eles me visse naquele estado, mas não era como se eu pudesse controlar a minha dor.

Eu queria saber de tudo ao meu respeito.

Naquele momento, a minha mãe olhou para o meu pai como se pedisse a ele ajuda, ajuda para responder as minhas perguntas. Um olhar meio perdido, de desespero, medo, confusão. Como se também lhe pedisse permissão para algo. Eu não sabia dizer, mas eles compartilhavam algo que não queriam me revelar diretamente.

― É que.... Bom, er... Eu... Nós – porque ela estava gaguejando? Havia perdido a postura repentinamente. E aquilo me deixou muito confusa. ― Nós, eu e seu pai, achamos que você já estaria madura o suficiente para entender, para aceitar, para nos perdoar. E resolvemos te procurar, saber de você, conhecer você...

― Então eram vocês que viviam ligando pra cá, misteriosamente, pra falar com o Vicente? Eram vocês dois que mandavam aquelas correspondências, os envelopes lacrados? Porque?

― Quando decidimos procurar por você – foi o papai quem falou dessa vez. ― demorou um bom tempo até descobrirmos o nome do seu responsável, a cidade onde você morava, o endereço... Todas essas coisas para conseguir chegar até você, aqui, na sua vida. Quando enfim conseguimos, tentamos entrar em contato com o Vicente, mas ele não nos recebeu tão bem quanto esperávamos....

― Então era por isso que ele vivia mal-humorado, cheio de mistérios... – interrompi-o. ― não queríamos que mexêssemos nas coisas dele, ficava irritado quando tocávamos no assunto...

― Ele não queria que nos aproximássemos de você – meu pai voltou a dizer, seriamente ― e tentou nos impedir de várias formas. Mas estávamos dispostos a nos encontrar com você a qualquer custo, e aqui estamos. – ele sorriu. ― Nós conseguimos, filhinha.

Eu já não estava chorando tanto naquele momento, tinha conseguido me conter bastante. Minha mãe gentilmente pegou um pedaço de papel higiênico pra mim e eu o usei para limpar a maquiagem borrada e o nariz molhado. Tomei um copo com água e respirei fundo, pedi que eles contassem pra mim um pouco sobre eles, agora sem chorar, só queria saber de tudo. Tudo mesmo. Mas não seria possível, já que assim que eles abriram a boca o Vicente adentrou a cozinha.

― Chega dessa palhaçada! – ele disse, grosseiramente. ― Porque vocês não contam a ela a verdade?

Que?

Olhei pra ele. Olhei para os meus pais. Esperando que um dos três me dissesse exatamente o que estava acontecendo ali e porque eu ainda estava por fora. De repente, senti que me faltava o ar. Me faltava todos os sentidos.

― Clarissa, você está bem minha filha? – Vicente correu até mim, segurando-me. ― Você está pálida!

Era muita coisa ao mesmo tempo para minha cabeça processar com calma.

― Chamem um médico! Pelo amor de Deus! – era a voz da minha mãe, desesperada. Andando de um lado para o outro.

― Viu só? Isso tudo é culpa de vocês! – meu pai, Vicente, gritou com eles, com meus pais de verdade. ― Eu disse a vocês que isso não faria bem a ela. Eu disse! Porque vocês apareceram logo agora? Estava tudo bem até vocês...

― Pai, para! Não brigue com eles! – eu pedi, pacientemente. ― Eu já estou bem! É só um mal-estar. Está passando! Não se preocupem.

E realmente passou, foi uma tontura rápida.

― Filha, por favor, me escuta. – Vicente se ajoelhou diante de mim, olhando dentro dos meus olhos. Nunca vi tanto desespero em seu olhar. Estava mudado, diferentes, sensíveis. ― Vamos conversar agora? Só nós dois. Eu dei um tempo pra você e eles conversarem. Agora é a minha vez. Eu preciso falar com você!

Tudo bem, um de cada vez.

E lá fui eu. Subimos até o quarto do Vicente, sempre tão impecável, uma mistura de branco com tons neutros. Sentei-me a cama com ele, enquanto ele insistia em segurar as minhas mãos e olhar bem nos meus olhos. Ainda estava claro lá fora. Por um lado eu senti que haviam se passado décadas, por outro lado não se passou nem duas horas desde que eu soube da existência dos meus pais de verdade.

― Eu sei que você está muito encantada e satisfeita com a ideia de conhecer seus pais de verdade. Eu esperava que um dia isso iria acontecer. Mas agora, eu preciso que você me ouça com atenção e confie em mim acima de tudo. Está bem? – eu assenti, meio receosa. Ainda não estava entendendo nada. ― Eles não são boas pessoas como você esperava que fossem ou imagina que sejam. Eles não estavam nem aí pra você até então e assim, de uma hora pra outra, resolveram te procurar. E sabe porquê? – não tive tempo de responder, enquanto a raiva invadia meu corpo. ― Porque eles querem dinheiro! Isso mesmo, Clarissa. Eles estão falidos e precisam do seu dinheiro.

― Não pode ser! – eu gritei, levantando-me. Já alterada. ― Não é verdade! Porque você mente tanto pra mim? Não vê o quanto estou feliz por finalmente ter a oportunidade de conhecer a minha história verdadeira? Eu os amo, eles me amam e só querem me conhecer finalmente. Eles podem até terem errado no passado. Mas quem não erra? E eu os perdoo. Eu quero conhece-los! Estar com eles! E sabe porquê? Porque não quero perde-los novamente! Não quero perder as pessoas que amo! Eu quero uma família! Uma família de verdade!

― Não, Clarissa. Não! – Vicente também se levantou, se aproximando de mim. Ele me chacoalhou. Como se quisesse me acordar. ― Você está cega minha filha! Não enxerga a verdade porque não é capaz de ver a maldade nos seus pais de verdade. – seu rosto parou bem próximo do meu. Para isso Vicente teve que se abaixar um pouco pra ficar mais ou menos na minha altura. ― Eu sou seu pai. Eu te amo de verdade e sempre amei, desde o primeiro momento. E por nada no mundo de abandonaria. Por nada e ninguém! E só estou dizendo tudo isso porque quero o seu bem e não mentiria pra você dizendo coisas assim, que certamente estão destruindo o seu frágil coraçãozinho....

― Você é um monstro! – eu gritei novamente, tentando me livrar dele. Não deixaria que ele me enfeitiçasse com belas palavras e aquele olhar com ternura. ― Um mentiroso! Me deixa em paz, por favor.

Eu corri até a porta, para sair dali e voltar para perto dos meus pais, onde teria a verdadeira proteção. Mas o Vicente me impediu, segurando-me pelo braço e me fazendo olhar pra ele.

Eu novamente comecei a chorar, só que agora de raiva.

Eu não merecia tudo aquilo.

― Se você não acredita em mim, pergunte a eles, Clarissa. Exija toda a verdade! – eu não era a única chorando naquele momento, pois pela primeira vez na vida o Vicente também estava chorando, sensibilizado. E eu nunca pensei que em toda a minha vida presenciaria algo assim vindo dele. ― Seus pais tinham uma pequena empresa de negócios, que veio a falir há alguns meses atrás. Eles perderam tudo, literalmente tudo. Desesperados, sem um teto pra viver, sem um prato de comida pra comer, sem garantias para o futuro, eles tiveram uma solução, a primeira coisa que eles veio à cabeça. Você! Eles decidiram, assim, de uma hora pra outra, conhecer você. Investigaram toda a sua vida, toda a nossa vida e ficaram sabendo que você tinha tudo do bom e do melhor e que nunca, por nada, lhe faltaria algo. – lagrimas escorriam de seus olhos negros. Vicente suspirava forte. ― Eles querem usar você pra voltar a ter a vida boa de antes. Querem arrancar tudo de você minha filha, tudo. E não é por amor, é tudo por puro interesse.

― Não pode ser, não pode ser. – eu repetia pra mim mesma, entre soluços. ― Como você sabe de tudo isso? Está inventando!

― Eu queria muito que isso fosse mentira, Clarissa. – Vicente já não me segurava mais com tanta força. Ele me puxou para um abraço, que a princípio eu não pude corresponder. ― Deve ser muito difícil pra você saber de uma coisa assim. Logo você que sempre quis saber da sua história! Mas acredite em mim, não estou dizendo por mal, só quero que você saiba do real motivo para eles terem aparecido assim, sem eu ao menos ter permitido. – ele passava a mão no meu cabelo, e eu enterrei o rosto na camisa dele. ― Eles investigaram a nossa vida, mas assim que entraram em contato comigo pra saber de você, eu também fiz questão de investigar sobre a vida deles. E descobri tudo. Queria ter a certeza de que eles eram boas pessoas, que te fariam bem mesmo depois de tudo. Mas eu me enganei ao saber da verdade. E sinto muito se ela não é exatamente o que você gostaria de poder ouvir....

Fiquei ali por um momento, sem coragem ter pensar em nada. Pois a realidade me assustava muito e eu estava com medo, completamente sem chão, sem saber pra onde ir e como agir.

Nunca me senti tão diminuída, tão enganada, usada e traída.

Mas se havia um alguém, capaz de me fazer melhor, esse alguém era o Bernardo. Que não sabia absolutamente nada do que estava acontecendo ali comigo e naquele momento parecia muito distante.

― Eu quero saber isso vindo deles. – eu disse ao Vicente, algum tempo depois. Respirando forte e estufando o peito.

Desci com ele vindo logo atrás de mim.

― O que ele me disse, tudo o que ele acabou de me dizer, é verdade? – encarei a mulher o homem que diziam ser meus pais e que ainda estavam sentados na cozinha da minha casa.

Eles se entreolharam na mesma forma que fizeram minutos antes, quando perguntei porque haviam me procurado justamente agora, depois de tanto tempo. E naquele momento eu soube: era verdade. O Vicente não havia mentido pra mim. Meus pais eram dois interesseiros, capaz de enganar a própria filha para si dar bem.

Eu não sabia o que era pior: viver como se faltasse um pedaço de mim, sem saber da minha história, o paradeiro dos meus pais de verdade ou conviver com a verdade, cruel e fria, ao descobrir que meus pais de verdade, que eu tanto sonhei em conhecer, são dois interesseiros e que só resolveram me procurar, me conhecer, por dinheiro, porque estão na pior. Seria muito mais digno da parte deles, pedirem ajuda e serem sinceros comigo desde o início, mas não, eles mentiram.

O maior problema é que a verdade me atingiu bem mais dolorosamente do que eu imaginava, ainda mais porque mesmo depois da minha pergunta, eles optaram por ficarem calados. Automaticamente as lagrimas voltaram a escorrer por meus olhos, dessa vez de maneira mais acelerada, com soluços e sons estranhos de um choro incontrolável de alguém que acaba de perder algo muito importante.

Eu saí de casa às pressas, ouvindo a todos gritarem por mim, mas não era como se eu pudesse ouvi-los. Eu corri em um direção especifica, pois sabia exatamente onde queria estar naquele momento. E só havia um lugar onde eu gostaria de estar mais que qualquer outro.

O céu estava escurecendo, uma mistura de azul escuro e purpura que de certa forma lhe davam um encanto especial.

O Bernardo, pra minha sorte, foi a pessoa a me atender quando toquei a campainha, já com seu pijama de dormir. Eu me atirei em seus braços antes mesmo de ele poder olhar pra mim e ver a situação caótica em que eu me encontrava: os cabelos provavelmente desarrumados, o lápis de olho borrado, olhos vermelhos e inchados, a pele marcada pelas lagrimas impulsivas.

Eu ouvi vagamente os pais dele perguntarem se eu estava bem e o que tinha acontecido comigo pra eu aparecer assim, naquele estado lamentável, no meio da noite. Eu realmente tive vergonha de mim mesma. O Bernardo como ainda não sabia de nada, não soube responder a nenhuma pergunta, e eu não estava em condições de parar pra responder. E ele apenas me levou até o seu quarto, abraçando-me de lado.

Deitei em sua cama, com ele de frente pra mim. Passando a mão na minha bochecha, tentando em vão limpar minhas lagrimas, tirando meu cabelo do rosto, olhando pra mim com aquela carinha de quem não entende nada, mas respeita o meu silencio e o meu momento.

Eu me aproximei dele, tentando ficar o mais perto possível. Bernardo passou os braços por mim, apertando-me de encontro ao seu corpo, e pousando a cabeça sobre a minha. Ficamos assim por um longo momento, mas eu ainda chorava muito, pois minha cabeça trabalhava em ritmo acelerado e muitas imagens, cenas, momentos e falas passavam pela minha cabeça, como em um filme.

― Senta um pouquinho, por favor. – ele pediu, quando eu já estava um pouco melhor. ― Bebe um pouco dessa água.

Eu praticamente bebi a água quase toda.

Chorar realmente exige muito esforço do nosso corpo.

Pelo menos eu, me sentia assim, como se um caminhão tivesse acabado de passar por cima de mim, repetidamente.

― Agora me conta o que aconteceu.

E eu contei, com o pouco de forças que me restava.

Quando por fim terminei, senti que havia tirado um peso enorme de cima de mim. Eu voltei a me deitar pertinho dele, sem choro dessa vez. Eu fechei os olhos e soltei um longo suspiro que pareceu ter descarregado a minha alma.

― Posso dormir aqui hoje?

― Pode dormir aqui sempre que quiser. – ele deu um beijinho no alto da minha cabeça. ― Pode contar comigo sempre, Clarissa.

― Obrigada. – digo, baixinho. ― Eu te amo.

Naquele momento o celular do Bernardo vibra sobre o criado-mudo.

― Quem é? – pergunto, ainda de olhos fechados. Mas ouvindo os dedos ágeis do Bernardo digitarem algo no teclado do celular.

― É só o seu pai preocupado com você. – ele respondeu. ― Estou avisando a ele que você está aqui, que está bem e que vai dormir aqui essa noite porque precisa de um tempo pra absorver tudo isso.

― Eu não acho que ele vá concordar.

Um minutos depois o celular do Bernardo vibra novamente.

― Não é como se ele tivesse muitas escolhas. - Bernardo sorri, mostrando-me a nova mensagem de texto que o Vicente acabara de enviar, pedindo pra que ele cuidasse de mim por aquela noite e que por nada no mundo deixasse eu sair dali no meio da noite naquela situação.

E eu finalmente adormeço, por um momento sentindo-me bem melhor, pelo simples fato de estar com o Bernardo ao meu lado, cuidando de mim, protegendo-me do mundo lá fora.

É a primeira vez que dormimos juntos e apesar de todas as circunstâncias, eu nunca senti nada tão forte.

Eu me sentia bem ali, acolhida em seus braços, como se eu tivesse um lugar só meu, onde pudesse estar sempre que precisasse.

Gosto de sentir suas mãos em repouso sobre o meu corpo, o cheirinho da sua pele, o perfume em suas roupas e o cheiro de todo o seu quarto, de cada objeto, de cada detalhe. Gosto de me sentir abrigada, acolhida, protegida, amada, especial. Gosto de me sentir inteira, do jeitinho que eu gostaria de poder me senti o tempo inteiro, até mesmo quando não estamos juntos.


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Notas finais do capítulo

E ai? Gostaram dessa revelação? O capítulo finalizado não ficou exatamente como eu queria, como eu imaginava. E sinto muito lhes informar que não tenho boas noticias para os próximos capítulos, mas vocês já devem estarem acostumados com o meu estraga prazer rs



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