Quando Tudo Aconteceu escrita por Mi Freire


Capítulo 19
Capítulo XVIII


Notas iniciais do capítulo

Tem alguém ai ainda? Bom, espero que sim. Quase não tive comentários no capítulo anterior e confesso que fiquei um pouco desapontada. Mas tudo bem, sem problemas, vou postar esse aqui mesmo assim. Apesar de ter tido cada vez menos tempo para escrever. Aproveitem!



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Tudo seria tão menos complicado se eu tivesse um botãozinho de desligar meus sentimentos pelo Bernardo. Ou se eu tivesse um poder de tira-lo da minha cabeça e especialmente do meu coração. Deletar seu sorriso, o brilho do seus olhos azuis como o mar, sua voz, a sensação do seu toque, do seu abraço, do seu beijo. Excluir de uma vez por todas tudo que passamos juntos, cada momento, desde o início, por mais pouco que tenha sido. Assim, eu não precisaria sentir essa dor tão profunda dentro do peito me fazendo querer chorar todo o tempo.

Meu primeiro amor. Minha primeira desilusão.

Estava eu toda empolgada, indo rumo a saída do colégio com a mochila já nas costas para me encontrar com o Bernardo, pois como sempre ele iria me acompanhar até em casa. Vi que estava caindo uma chuva fina e franca, mas isso não seria problema. Eu andava com o guarda-chuva na bolsa e o dia estava lindo.

Parei assim que vi, mesmo a alguns metros de distância. O sorriso que eu tinha no rosto desapareceu rapidamente. Fiquei paralisada, senti que o coração tinha parado de bater por alguns instantes. O Bernardo e a loira, amiga da sua ex-namorada, estavam se beijando de verdade, com direito a mão no quadril e as dela em sua nuca. Eles pareciam mesmo apaixonados. E naquele instante, já me sentindo muito diminuída, traída, com o coração despedaçado, o corpo tremulo e as lágrimas querendo sair dos olhos, me perguntei há quanto tempo eles estavam juntos sem ninguém saber. Sem eu saber.

Por outro lado, agradeci mentalmente por não ter chegado nem perto de ser a namorada oficial do Bernardo. Era só o nosso segredinho. Imagine só se todos soubessem que estávamos juntos? Como seria depois que descobrissem que eu fui traída na frente do colégio, diante de muitos alunos, na chuva, com uma garota bem mais bonita e popular que eu? Seria lastimável. Ririam de mim por um longo tempo e sempre que me vissem passando pelo corredor apontariam o dedo pra mim e comentariam, cochichando uns com os outros, o quão fui estupida em acreditar no Bernardo, que sempre teve as garotas na palma da mão.

Quando ele percebeu que eu tinha visto a cena do beijo, de baixo da chuva, parecendo uma cena de filme romântico; ele veio na minha direção, todo sem graça, já com uma desculpa esfarrapada na ponta da língua para me enrolar. Mas eu sou bem mais esperta do que ele acredita que eu seja. Não queria mais ouvir nada que visse da boca dele, nenhuma palavra, nenhum gestos, absolutamente nada. Se possível queria nunca mais vê-lo e apaga-lo da minha vida.

Mesmo transtornada, sentindo o mundo desmoronar diante dos meus olhos, fui forte o suficiente para dizer poucas e boas a ele, mais que merecido. Joguei na cara dele todas as promessas falsas que ele me fez. Peguei minha bicicleta e fui embora, deixando o para trás, mas ainda assim, sentindo a chuva escorrer pelo meu rosto e as lágrimas por minhas bochechas misturando-se com a chuva que engrossara.

Em casa mesmo toda molhada da chuva, joguei-me de bruços sobre a minha cama, molhando tudo e chorei muito, como nunca chorei antes, cheguei a soluçar. Parece exagero, eu também achei. Mas não foi como se eu pudesse controlar a minha tristeza.

Só que tinha um único e grande problema: eu não poderia simplesmente tirar o resto do dia para me isolar do mundo como um animal ferido dentro do meu quarto. O Vicente acharia bem suspeito e exigiria satisfações. Então, eu precisava me recompor rapidamente. Fui até o banheiro, tomei um banho quente, deixando a água bater nas minhas costas e levar todo o peso embora. Troquei de roupas, fiz alguns deveres de casa e desci, para junto da minha família, tentando agir o mais normal possível mesmo que por dentro eu não estivesse inteira.

Sentia como se um grande pedaço do meu coração tivesse sido arrancado de mim. Nada parecia pior.

Jantei, fingi ouvir o Vicente tagarelar sobre o dia no trabalho e a Isabel falar de mais um dia de aula comum e mesmo ainda muito cedo subi para o meu quarto. Eu só queria dormir por longas horas. Quando estava prestes a pegar no sono o cretino me desperta mesmo há alguns metros da minha casa, ligando sem parar. Mas eu não atenderia, apenas deixei o celular no silencioso e tentei ignorar, de olhos fechados, cada ligação, deixando-as se perder.

Por um momento o celular ficou mudo, pensei que ele finalmente tinha desistido e me deixado em paz para dormir. Mas eu me enganei, levando um susto quando chegou uma mensagem de texto dele. Não pensei duas vezes para digitar de volta uma resposta grosseira. Mas faltou coragem, assim que li o que escrevi. Só alguns minutos depois eu apertei o botão de Enviar certa de que ele merecia coisas ainda piores.

O que tanto ele tinha a dizer? Porque não poderia esperar? Quais eram suas explicações? Ele sabe que não posso me encontrar com ele a qualquer hora. Não podia antes e não posso agora. Não quero mais. Tenho ódio dele só de pensar em ouvir a sua voz de novo.

Se o Bernardo pensa que vou cair na dele outra vez está muito enganado. Se ele pensa que aparecerei no colégio amanhã, mesmo contra a minha vontade, com cara de quem chorou a noite inteira, ele também está enganado. Se ele pensa que vou aparentar tristeza, aborrecimento, decepção, abatimento, mágoa, amargura, angustia ou desanimo também está muito enganado. Não vou dar esse gostinho a ele. Afinal, já passei por coisas piores. Mesmo que qualquer coisa que eu tenha sentido antes nada nunca foi tão parecido com essa dor lastimável que agora parece não ter fim. Mas nada pode ser pior do que ser abandonada pouco depois de nascer por seus próprios pais em uma porta qualquer, na rua, sozinha e esquecida.

Fui uma das primeiras a entrar na sala de aula na quarta-feira de manhã. Pensei em alguma coisa pra fazer, qualquer coisa que eu pudesse evitar o Bernardo. Não iria me deixar levar por aquele sorriso torto e nem por aquele par de olhos azuis perfeitos. Não queria que ele me destruísse ainda mais e me fizesse sentir ainda pior.

A sala aos poucos foi enchendo. Só percebi que o Bernardo entrou e passou por mim para ir até o seu lugar no fundo, porque senti a fragrância do seu perfume masculino. Ergui um pouco os olhos dos rabiscos que eu fazia no canto da minha folha só para ter de que eu estava certa quanto a isso. E estava. Era ele.

Pronto. Era só o que me faltava. Saber mesmo de longe o perfume que o garoto usa.

Me concentrei melhor nas aulas quando tive a certeza de que ele não insistiria em se aproximar de mim para se desculpar. Afinal, ele é como qualquer outro garoto, desisti facialmente de qualquer coisa. Quando o sinal para o intervalo tocou, esperei até que todos saíssem da sala para só depois eu sair também.

Pulei pra trás assustada quando ao me virar no corredor o Bernardo surge bem na minha frente. Queria muito poder soca-lo.

― Clarissa, vamos conversar? Por favor.

― Não, Bernardo. Some da minha frente, por favor.

Passei por ele, dessa vez ele nem ousou a me puxar pelo braço ou eu teria mesmo que soca-lo e quebrar todos seus lindos dentes.

― Ei, Clarissa. Espera. – só paro no caminho ao ouvir uma voz feminina, que no caso não é o Bernardo. É a Marina que vem correndo até mim. O que ela faz aqui que ainda não está com seus amiguinhos no pátio para o intervalo?

― O que você quer, Marina? – pergunto friamente sem tirar meus olhos dela. E lá vamos nós, e eu volto a ser o “doce” em pessoa que eu costumava ser antes de descobrir a maior mentira do Bernardo.

― Eu já sei de tudo, Clary. – como ela ousa ainda me chamar de Clary? Prefiro ficar calada, por enquanto. ― Olha, eu acho que você precisa ouvir o Bernardo. Não precisa se hoje, nem agora. Mas assim que você estiver pronta. Ele tem muita o que dizer, Clarissa.

― Você não tem que se meter nisso, Marina. Tudo bem que você seja amiga dele desde... Sei lá, muito tempo. – revirei os olhos impacientemente. ― Mas, chega, acabou o que mal começou. Eu não tô nem aí para o que o Bernardo tem a me dizer. Ele que se dane. - dei de ombros, indiferente.

Tento, outra vez, seguir meu caminho a diante.

― Você não pode agir assim sempre. – ela volta a dizer, me fazendo virar-me de frente pra ela novamente. ― Você não precisa colocar uma máscara diante do rosto para esconder sua tristeza. Eu sei que você gosta dele e ele também gosta muito de você. Eu não acho que você queira perder um sentimento tão bonito como esse, que provavelmente foi a primeira vez que você sentiu-se tão grandiosa com tão pouco. Se dê essa chance, essa oportunidade. Não deixe que um desentendimento estrague tudo. Conversa com ele, escute-o. E só depois de ouvi-lo, ai sim, você toma a decisão que quiser, a que achar melhor para você. Sei que qualquer decisão que fizer o Bernardo vai aceitar tranquilamente. Pra que complicar tanto? Ele também está sofrendo, você não percebe? Tudo não passa de um engano...

― Chega. – interrompo-a. ― Não quero ouvir mais nada. Me deixa em paz, Marina. Você não sabe nada de mim, o que eu sinto, o que eu acho, como eu me decido. Tudo bem que você seja amiga do Bernardo há um bom tempo, mas nós duas só nos conhecemos há quase um mês. Não aja como me conhecesse de verdade. Não tire suas próprias conclusões. Eu não sou o que você pensa que eu sou.

Por quanto tempo ainda o Bernardo e sua gangue vão me perseguir?

― Clarissa! – alguém me grita outra vez. Esse povo não sabe mais ser civilizado? Mais discreto? Me viro e dou de cara com o Diego. ― Você não vai ficar hoje? Temos muito trabalho ainda pra fazer.

Ele se refere ao Sarau.

― Não. Eu não vou mais poder ajudar vocês. – eu não queria ter que ficar perto do Bernardo outra vez. Quanto mais longe, melhor. Sei que pareço infantil agindo assim, mas é o melhor por enquanto, até eu superar essa fase de “garota traída” pelo garoto que eu gostava. ― Eu sinto muito, Diego. Eu vou para casa.

Me despeço e sigo meu rumo com a minha bicicleta.

― Chegou cedo em casa. – Isabel está jogada no sofá da sala comendo besteira. ― Aconteceu alguma coisa, maninha?

― Aconteceu. – confesso, sem mostrar muito entusiasmo. ― depois conversaremos sobre isso, ta?

No meu quarto, já com uma roupa mais leve, depois do banho, pego minha caderneta na gaveta para escrever alguma coisa. As vezes o melhor remédio para curar a tristeza é colocando tudo que está dentro de você pra fora de alguma forma. A melhor forma pra mim é escrevendo. Consigo ter muita inspiração mesmo em meio aos tumultos.

Cansei de dar meu voto de confiança a certas pessoas. Ando um pouco assustada com a vida. As pessoas a minha volta vivem me surpreendendo. Muitas para o bem e outras para o mal. Expectativas não passam de expectativas. Decepções diárias são inevitáveis. Chega de promessas que não vão se cumprir. Cansei de confiar tanto nas pessoas, pois as que mais deveria me amar me abandonaram na primeira oportunidade. Chega de não fazer força para esquecer, de lembrar do que faz doer. Quando é que eu vou livrar desse peso todo que carrego nas costas sozinhas dia após dia? Cansei de acumular sofrimentos, de não conseguir me perdoar por ser quem eu sou. Tô precisando mesmo é de gostar das pessoas que gostam de verdade de mim, com toda essa bagunça e transtorno que é a minha vida. Cansei de falsas amizades, falsos eus, de quem mostra ser o que não é, de gente efusiva. Chega de se esconder da vida, de deixar a vida passar por mim.

Releio o que escrevi três vezes e mesmo certa de aquilo era exatamente o que eu estava sentindo no momento tive vontade de arrancar a folha e rasga-la em pedacinhos para jogar fora. Mas não tive coragem, afinal de conta se trata dos meus sentimentos. Não são como se fossem descartáveis. Hoje pode até parecer uma grande tolice, mas amanhã eu posso estar rindo de tamanha minha ingenuidade por acreditar em um garoto como o Bernardo.

Fecho minha caderneta com muita força quando do meio dela cai a rosa azul que ele me deu no nosso primeiro encontro. Inclino-me para baixo e a pego do chão, contento minha vontade de pisoteá-la até se acabar. É uma linda flor, apesar de estar amassada. Foi um lindo gesto e um bonito presente e uma ótima recordação daquela noite no cinema em que menti para o meu pai, elaborei um plano com a minha irmã e só tive olhos para o Bernardo.

“É pra você guardar e pode sempre se lembrar do nosso primeiro encontro”, ele disse ao me entregar a rosa. Agora, depois de tudo, com toda a minha raiva e tristeza, não sei se ainda gostaria de poder lembrar daquele encontro. Sei que qualquer tentativa de esquece-lo seria em vão. O Bernardo me proporcionou muitos momentos únicos e preciosos, não seria possível esquecer nenhum detalhe de todos eles. Com toda minha frustação terminei o dia chorando com a rosa na mão e a caderneta do lado. E a cena do Bernardo beijando aquela loira aguada em frente ao colégio. Só conseguia odiá-lo ainda mais. Me perguntando do porque ele ter feito isso justamente comigo.

Teria sido parte de um jogo?

As respostas me dão medo.

Finalmente sexta-feira. A aula mal começou e eu já quero ir embora pra minha casa para não precisar ficar olhando a expressão das pessoas a minha volta olhando para mim como se eu fosse um bicho que acabara de ressuscitar. Elas meio que se acostumaram com o meu lado boazinha das últimas semanas, mas agora estou de volta. E elas que voltem a se acostumar com o meu antigo eu, pois pretendo continuar assim, eu mesma, por um bom tempo. Sinto-me mais protegida, forte e corajosa. Ainda mais depois de ter tido uma boa experiência tentando dar o meu melhor e ser traída pelas costas pela pessoa em quem mais depositei a minha confiança. Sendo assim, uma pedra de gelo, não corro tanto risco de ter que precisar chorar por longas noites me lamentando por tudo.

― Atenção, por favor, reúnam-se novamente para terminar o trabalho. – pede o professor de História. Dessa eu já tinha me esquecido! E adivinhem só quem é o meu parceiro de trabalho?

― Nem precisa sentar. – digo assim que o Bernardo se aproxima para se juntar a mim. Abro meu fichário, retiro de dentro algumas folhas com a pesquisa que fiz em casa e estendo a ele sem olha-lo nos olhos com medo do que posso ver. ― Aqui está a minha parte. Faça você sozinho o que precisamos para terminar. E se possível, bem longe daqui. Bem longe de mim.

― Mas... Clarissa.... O professor... – ele parece completamente perdido e assustado. Mas com apenas um gesto com a mão o faço calar a boca.

Sem protestar o Bernardo retira-se, voltando lá para o fundo, perto dos seus amigos. Acho mais que justo que ele termine o trabalho sozinho, já que ele é o todo bonzão. Ele que se dane, penso. Que peça ajuda ao seus amiguinhos. Exceto o Miguel, pobrezinho, que pelo pouco que sei também foi traído pelo Bernardo, mas mesmo assim continua perto dele, mas os dois não conversam mais como antes, mal se olham. O Miguel parece precisar de espaço, mas não é como se ele encontrasse outro melhor.

― Clarissa, você não está fazendo o trabalho sozinha não é? – o professor surge na minha frente, despertando-me. Ergo o olhar, encarando-o de frente. ― Cadê a sua dupla? O Bernardo.

― Ah professor – tento sorrir, mesmo sem jeito. ― a gente já terminou. Ele só foi lá atrás dar os últimos retoques finais. - menti.

O coitado do professor acredita em mim e sai para dar uma olhada nos outros grupos e nos outros trabalhos. É o dia da entrega.

Como não fico mais no colégio para ajudar no Sarau que acontecerá amanhã, sigo meu caminho apressadamente em direção a saída transtornada do colégio, rumo ao bicicletário. Onde minha bicicleta com cestinha é uma das únicas e parece solitária tão sozinha.

― Vichi, está chovendo! – encontro o Diego antes mesmo de chegar ao bicicletário. Todos a nossa volta parecem bem perdidos por a chuva ter surpreendido a todos na saída. ― Quer uma carona?

― Carona? Por acaso você tem um carro? – eu sorrio, surpresa com a sugestão. ― Você não vai ficar pra ajudar hoje?

― Digo, quer uma carona? Eu trouxe meu guarda-chuva, mas pelo visto, você não trouxe o seu. – nós rimos. ― Preciso passar em casa antes, mas eu já avisei o Bernardo que voltaria depois para ajudar.

― Hum... Sendo assim, eu aceito a carona em seu guarda-chuva. Eu não imaginei que iria chover hoje. Eu volto mais tarde, quando passar, para buscar a minha bike.

Diego abre seu guarda-chuva preto e saímos pela calçada de baixo do mesmo objeto que ficou pequeno, por mais próximos que estivéssemos. Foi inevitável não se molhar um pouquinho. Mas quem se importava? Estava mais pra uma garoa do que para uma chuva.

― Eu preciso perguntar isso. – Diego rompe o silêncio. ― O que houve entre você e o Bernardo? Vocês brigaram? Você não tem ficado mais no colégio para ajudar. E ele também anda bem diferente...

― Diferente? – franzi o cenho, surpresa e curiosa. ― Como?

― Ele está mais calado, pensativo, distraído. Não parece o mesmo, entende? – entendo, penso. Deve ser culpa. ― Mas você não respondeu a minha a pergunta, Dona Clarissa. Não tente fugir da resposta.

Ele soltou um risinho divertido e eu sorri sem graça.

― Aconteceram umas coisas. – foi tudo que eu respondi, tentando desviar de algumas poças de água acumuladas na calçada.

― Você não é muito do tipo que gosta de falar sobre você, certo? – ele sorria torto, sempre muito divertido. Sem parecer atrevido.

Assinto com a cabeça e ele ri.

― Bom, obrigada pela carona. Daqui já dá ver a minha casa. – me despeço com um beijo em sua bochecha. ― Até qualquer dia.

Enquanto corro em direção a minha casa de baixo da garoa gelada, sinto os olhos do Diego sobre mim. Algo se revisa dentro de mim, não sei se isso é algo positivo ou negativo. É diferente.

O meu plano era dormir até tarde no sábado. Mas, um certo alguém insistia em me chacoalhar de um lado para o outro para me acordar. Só poderia ser a Isabel, e se fosse eu a mataria.

― Vamos Clarissa, acorde. – era a voz do Vicente. Quando eu a reconheci dei um pulo sobre a cama, sentando-me ereta enquanto tentava abrir os olhos. ― Porque você não me falou que o Sarau iria ser hoje no seu colégio? Vamos, levante, tome um banho. Estaremos te esperando lá em baixo. Eu não perderia isso por nada, afinal, a minha filhinha querida teve uma grande parcela de ajuda nesse evento.

Ele estava... Orgulhoso de mim? Empolgado por mim? Contente por mim?

Eu meio que fiz questão de tentar esquecer esse tal Sarau. No início eu estava mesmo empolgada só de pensar nas horas a mais que eu poderia ficar com o Bernardo a vontade depois das aulas sem meu pai suspeitar de nada. Mas agora, depois da nossa briga, eu perdi completamente o interesse. Eu nem queria ir. Mas o meu pai realmente acordou com o pé direito e não deixaria isso passar por nada.

O colégio inteiro estava todo decorado e bem dividido. Vicente estacionou o carro próximo aos tantos outros, mesmo sendo ainda onze da manhã, e antes de entrar no colégio vimos as barracas de algodão-doce, churrasco, cachorro-quente, pasteis, essas coisas. E Isabel não deixou pra menos e pediu ao Vicente que comprasse algo pra ela.

Ele estava mesmo radiante e nem protestou.

Já no pátio principal onde geralmente é realizado o intervalo, seria onde aconteceria as danças, cada grupo representaria uma cultura diferente de um país ou do estados escolhido por eles mesmos. Entre eles estava a mãe da filha do Bernardo e a amiguinha dela que beijou o mesmo, mas elas pareciam muito distante. Acho que brigadas. Ciumes do Bernardo, aposto.

Demos uma rápida olhada e seguimos pelo colégio adentro já que nenhuma dança iria começar naquele exato momento. Na verdade, apesar do colégio estar razoavelmente cheio, as apresentações em geral só daria iniciam ao meio dia. Aquele momento, por enquanto, seria para as pessoas darem uma olhada em cada ala e encontrar o que mais lhes atraia ou impressionava.

Algumas crianças sem seus pais corriam de grupinhos pequenos de um lado para o outro brincando de pega-pega ou sujando toda a roupa com doces. Alguns pais andavam de um lado para o outro, atentos a tudo, de mãos dadas como se nunca tivessem deixado de amar um ao outro. Muitos adolescentes, que estudam no colégio ou não, circulavam por ai, em bando, cochichando, rindo, se divertindo atoa ou se paquerando entre si.

Eu e Isabel pois mais que quiséssemos fazer parte de um daqueles grupinhos, reencontrar com os amigos (que no meu caso, eu não tenho mais), olhar algo que o Vicente não tivesse muito interesse, tínhamos que estar sempre ao lado dele, praticamente coladas, esboçando sempre contentamento.

― Olha ali as minhas amigas! – Isabel sorria de orelha a orelha, acenando de longe para suas amiguinhas do outro lado. ― Pai – ela se virou pra ele com cara de cachorro pidão. ― posso ficar com elas?

Ele olhou bem pra ela, depois para as meninas. Acompanhei todos os seus olhares e sabia que ele estava reavaliando a situação. Como eram só meninas, três ao todo e nem um sinal de meninos por perto, ou não ainda, ele sorriu para nossa surpresa e disse:

― Claro que pode, filha. Mas volte logo, por favor.

Isabel agradeceu dando-lhe um rápido abraço e saiu rumo as amigas, saltitante.

― E o seus amigos, Clarissa? Você não quer se juntar a eles?

― Pai, eu não tenho amigos. Quero ficar aqui com você.

Ele pareceu satisfeito com a minha resposta ou ao contrário de reação que qualquer outro pai esboçaria após sua filha ter dito que não tem amigos ou ele pensou que eu estava sendo modesta. Vicente beijou o alto da minha cabeça, sorrio, pegou a minha mão e continuamos nossa caminhada, olhando de perto o impressionante trabalho de todos os alunos voluntários. O que me fez lembrar de quando eu e o Bernardo terminávamos nosso trabalho e nos agarrávamos aos beijos. Escondidos.

― Clarissa! Oi. – o Miguel me despertou das minhas terríveis lembranças. O que diabos ele estava fazendo ali? Digo, na minha frente, falando comigo, sendo simpático. Nós nunca fomos amigos... E quem é essa linda mulher ao seu lado?

Os dois cumprimentam não só a mim, mas também ao meu pai que pareceu verdadeiramente encantado com a linda jovem a nossa frente segurando a mão do Miguel.

Seriam eles namorados?

Apesar da mulher parecer muito jovem, deve ter mais de vinte anos e acho que é velha demais para namorar um garoto de dezesseis.

― Essa é a minha mãe. Aline.

Quase deixei o queixo cair. Fiquei impressionada. Além de linda, ela parece muito mais jovem do que realmente deve ser. É magrinha, literalmente. Está usando um vestidinho de verão floral em tons pasteis e um sapatinho com um salto curto. Os cabelos dela são castanhos claros com um leve sombreamento de mechas dourados nas pontas. O corte é um chanel desconectado um pouco acima dos ombros, seus olhos são cor de mel e o sorriso tímido de lábios finos levemente avermelhados.

― Olá, prazer Dona Aline. – meu pai estende a mão em um comprimento formal. Não sei o que deu nele, mas seu sorriso parece um tanto... Nervoso. Ele parece desconcertado. Eu nunca o vi reagir assim. ― Eu sou o Vicente. Pai da Clarissa.

Eu e o Miguel estamos perplexos, apenas os observando se olharem demoradamente por alguns instantes.

― Mãe, vamos indo? – o Miguel parece ter ficado um tanto enciumado. Também com uma mãe dessas... Até eu.

― Vamos, querido. Vamos. – ela olha pra ele, ainda com aquele sorriso que é uma gracinha. ― Foi uma prazer conhecer vocês. E por favor, da próxima vez me chame apenas de Alice, Vicente.

Observo meu pai observando Aline indo embora. Não só ele parece deslumbrado com ela, como também os outros pais. Os homens em geral. O que só me dá ainda mais vontade de rir da situação.

― Eu pensei que você havia dito que não tinha amigos.

― E eu não tenho, pai. O Miguel é meu colega de classe.

― Vocês deveriam ser amigos. – ele sorri, exagerado.

― Pai, o que deu em você? – eu ri. ― Eu pensei que você não gostasse da ideia de eu ter amigos.... Meninos.

― Você tem razão, filha. – ele coça a cabeça, levemente constrangido, dando um risinho engraçado. ― Nada de meninos, nem mesmo aqueles que tem mães bonitas.

O celular dele toca, rompendo a minha crise de risos.

Então ele realmente gostou da mãe do Miguel...

― É a Karen. – é tudo que ele diz, deslizando o dedo sobre o visor do celular para atende-lo longe dali, deixando-me sozinha.

Fico a esperar meu pai de braços cruzados. Não muito longe dali eu vejo Isabel com suas amiguinhas entre risadinhas indo atrás de um grupo de garotos mais ou menos da idade delas. Isabel... Não tem jeito. Ela nem parece ter medo do Vicente. Viro a cabeça para o outro lado e meus olhos segue os passos do Bernardo andando de um lado para o outro com seus amigos de sempre, exceto o Miguel.

― Pai, vamos entrar? – me refiro ao auditório, quando ele volta. Um grupo grande de pessoas já está entrando. Corremos os risco de ficarmos sem um lugar.

― Entre primeiro e guarde dois lugares. – ele pede, olhando para os lados como quem procura algo. ― Vou procurar sua irmã.

Entro no auditório que vai se enchendo os poucos e avisto muito rostos conhecidos. Nenhuma apresentação deu início ainda, mas já é quase meio dia. Na terceira fileira, lá na frente, encontro três lugares e tento de alguma forma reserva-los. As pessoas em volta não param de falar, estou atenta a tudo. Vicente chega alguns segundos depois com Isabel ao seu lado com cara de emburrada. Eles sentam ao meu lado calados, como se já tivessem conversado lá fora. Certamente Isabel está com raiva por não poder continuar com suas amigas. Ela sempre faz essa cara quando Vicente não atende ao seus pedidos.

― Clarissa! Oi. Que bom que eu finalmente te achei. – o Diego surge bem na minha frente com um sorriso um tanto nervoso. Ele parece cansado ou... Desesperado. ― Pensei que você não vinha.

― Diego, esse é o meu pai, Vicente. – apresento-os sem graça. Afinal, eu acabei de dizer ao meu pai que não tinha amigos... Inclusive amigos meninos. ― Pai, esse é o Diego.

Eles se cumprimentam com um aperto de mão.

Meu pai parece avaliar o Diego, mas o Diego parece mais preocupado com outras coisas.

― Clarissa, precisamos muito da sua ajuda! Dois alunos que recitariam um soneto ainda não chegaram e eles seriam os segundos a se apresentarem. Você tem que ajudar a gente! Precisamos da sua colaboração. Lembra-se? Nós éramos um grupo...

― Ah, bom – fico totalmente sem graça, ainda mais diante do olhos avaliativos do meu pai. ― o que eu poderia fazer?

― Ficar no lugar de um deles.

― O quê? – arregalo os olhos, surpresa. ― Não. Não, Diego! Eu não posso. Sinto muito. Eu tenho vergonha, você sabe... e....

― Clarissa – meu pai olha pra mim, somente pra mim. Pousando sua mão grande e máscula sobre a minha.

Olho dentro dos os olhos dele.

― Vai lá, filha. Ajude seus colegas. Eu estou totalmente de apoio. Eu acho que você deveria.... Arriscar. Eu ficaria muito orgulhoso.

Há algo na voz dele que me encoraja. Mas só de olhar para o palco, as tantas pessoas a minha volta e me imaginar ali em cima, com todos olhando pra mim enquanto eu falar, me dá calafrios.

Por outro lado, meu pai nem sempre está de acordo com as minhas vontades, mas agora é diferente... Sinto que ele está comigo, estará ao meu lado independentemente das circunstancias. E ele sentirá orgulho de mim. Orgulho de mim! Isso não é incrível?

Será que meus pais verdadeiros também sentiriam orgulho de mim?

― Tudo bem. – levanto do meu lugar. ― Vamos lá.


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Notas finais do capítulo

Esse capítulo ficou mais grandinho, vou tentar sempre recompensar vocês. Ainda mais agora com menos tempo pra escrever. E espero que de alguma forma vocês possam me retribuir com simples comentários, que eu já ficarei feliz e satisfeita. Beijão a todos! Até a próxima.



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