Distopia escrita por Jeniffer Viana


Capítulo 1
Capítulo único




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Um risco cinza cortava o céu que ficava cada vez mais distante. Enquanto abria a porta de sua casa, o jovem oficial agradeceu por não poder mais sentir o gosto daquela fumaça em sua boca.


 Na sala um homem e uma mulher esperavam orgulhosos, mas o jovem não quis ouvir os elogios que não merecia, sem explicar o porquê foi correndo ao banheiro, onde, fitando os joelhos, vomitou tudo o que havia ingerido naquele dia, tudo exeto o terror.


-Nos vamos ganhar a guerra – disse ele alguns minutos depois, retornando a sala.


-É claro que vamos – concordou o pai intrigado com a declaração do filho.


O oficial passou as mãos pelos cabelos claros, sem ter idéia de como faria com que os pais entendessem o que aquilo significava.


- Isso não pode acontecer – começou ele com a voz rouca, mas, antes que continuasse a mulher soltou um grito fininho e os olhos dela se encheram de água.


-O que está dizendo? – perguntou com a voz afetada.


-Por favor, escutem – implorou o oficial, cruzando as mãos na frente do corpo.


O casal estava atônito, com o silêncio concederam que o filho explicasse o absurdo que tinha acabado de dizer.


- Quando fui promovido achei que fosse um cara de sorte – disse com a voz falha –Estava errado, preferiria ter continuado no meu antigo posto, acreditando que essa guerra tem um motivo para existir, mas infelizmente, não posso continuar fingindo que nada está acontecendo, que estamos lutando por algo correto, não depois do que presenciei hoje.


- O que você está insinuando Theodor!? Como se atreve a dizer essas coisas? – explodiu o homem, com o rosto adquirindo inúmeros tons de vermelho.


-Escute, por favor!


A mulher magricela segurou o braço do marido, o que o acalmou o suficiente para que voltasse a ficar em silêncio.


Theodor estava pálido, ainda estava sentido o gosto podre do vômito em sua boca e sem querer havia se lembrando do gosto de carne queimada que havia experimentado à tarde.


- Eu nunca havia duvidado deles, pai. – disse o menino cansado - Mas hoje eu vigiei a cela na qual ficam os nossos inimigos, prestei atenção em dois deles: Duas menininhas. Você consegue imaginar isso? Crianças inimigas? Elas estavam de mãos dadas e de olhos fechados, pareciam recitar uma prece, ficaram assim por horas, até que uma dela se cansou e gritou o que eu estava pensando: Que o salvador que esperavam não viria e era impossível perdoar tudo aquilo.


- Você está comovido com aqueles desgraçados? – perguntou a mãe, deixando lágrimas caírem.


-Escute – pediu o rapaz com a voz quebrada – depois que a garota disse isso, os prisioneiros começaram a cochichar, então um homem se levantou do mar de pele e ossos e com uma voz potente pediu a atenção de todos.


-Como permitiu que um negro fizesse isso na sua frente? – rosnou o pai – você não deveria estar vigiando aqueles desgraçados?


-Ele disse que ia nos contar a verdade, eu quis ouvir. – Theodor jogou em resposta. – Você não iria querer ouvir também, pai?


- O que o negro falou? – perguntou a mulher interrompendo uma discussão latente.


- Ele disse que viu quando a primeira cruz foi desenhada em uma calçada cinzenta. Obra de um pintor que tinha como sonho criar o mundo perfeito e trancá-lo para sempre em uma tela. E que tinham sorte, pois não iriam ver o quadro pronto.


- Theodor, o que você está falando? – perguntou o homem com os dentes trincados.


- O que estou falando? – repetiu o oficial confuso - O negro falou que todos estão ocupados demais para perceber que o terror e o ódio estão se espalhando, que tudo isso é parte de um sonho arquitetado por um demente! Fingimos acreditar que o mundo será um lugar melhor quando tudo isso acabar, mas não vai! Somos fantoches nas mãos dos governantes, fantoches do Führer! Somos um bando de patetas para qual Hitler exibe o esboço de seu novo trabalho, e quando o quadro estiver pronto, o novo mundo nascer, vamos perceber que tudo isso foi um erro. Seremos as maiores vitimas! Eles têm sorte, que eles não terão que sobreviver como obra de um deus insano.


- É você quem está louco! - gritou o pai furioso.


- Mas é claro que sim, pai! Como poderia manter a sanidade sabendo o que o nosso Estado esta fazendo? Vocês sabem o que ele faz? Ele mata pessoas, papai! Tiram seus dentes e cabelos e queimam seus corpos!  Vocês também já sentiram o cheiro da carne deles queimando, não sentiram? Eu não posso mais ignorar isso! Não quero mais saudar a cruz que foi pintada em todos os lugares: praças, casas e fardas. Adolf Hitler não é um deus.


- Você está traindo a nossa pátria! – acusou a mãe chorosa.


-Não – respondeu o oficial com firmeza, encarando a mãe nos olhos – Eu vou trair minha pátria se continuar admitindo que um louco continue no governo.


O Sr. Katz comprimiu os lábios, uma tentativa de segurar o ódio e o desprezo que sentia pelo filho.


- Não podemos continuar compactuando com isso – disse o oficial sem perceber que seu pai se rendia à loucura - Temos que parar! Vocês tinham amigos judeus! Freqüentávamos a casa deles. Como podemos ter acreditado que eles eram inferiores? – o rapaz estava sem fôlego ao terminar.


-Filho – chamou o pai com a voz fria – Tome um banho e vá para cama, amanhã resolveremos o que vamos fazer.


-Eu não vou continuar servindo a um demônio pai! – respondeu o menino com rispidez – Não vou continuar apoiando todos esses crimes, vou me desligar do partido nazista e lutar para salvar quantas vidas puder.


-Faça o que eu disse. Amanhã conversaremos – ordenou o pai sentindo repugnância pela criatura que havia colocado no mundo.


Theodor, não discutiu, recebendo um olhar de reprovação da mãe voltou ao banheiro e tomou um banho frio, sem se importar com todos seus músculos que tremiam. Depois, deitou-se e começou a tentar encontrar algo que pudesse amenizar a culpa por ter acreditado em tantas mentiras: Superioridade da raça ariana, espaço vital... Dormiu mordendo o punho, uma forma de amenizar a dor que sentia em outro lugar.


Antes que a aurora rompesse o céu, um casal de pijamas escuros entrou no quarto do único filho que tinha, segurando dois bastões de madeira. A Sra. Katz foi quem deu o primeiro golpe, motivada pelo desgosto de ter criado um traidor, que se não fosse detido causaria vergonha a ela e ao marido.


Quando amanheceu, os vizinhos gritaram pelo Sr. Katz, um bom homem, que teve o filho assassinado por judeus que fizeram questão de desenhar uma estrela de sangue no belo rosto do oficial e jogá-lo de qualquer jeito no quintal da casa de seus pais.


Em pouco tempo o jovem oficial se tornou um mártir nazista. Seu nobre pai e sua doce mãe receberem consolo do próprio Führer que jurou que a perda deles seria vingada


 O Sr. Katz deu inúmeros testemunhos de como seu filho tinha sido um exemplo da juventude nazista. E sempre falava da saudade que ele e sua esposa sentiam do garoto quando fazia seus discursos no palanque. Acabou que ele conseguiu um cargo de importância no partido nazista, chegando a receber um prêmio das mãos do próprio Hitler: um quadro, no qual estava pintada uma suástica, a cruz que seu filho tinha odiado.


Quando ele pendurou o quadro na parede, ele se viu participando da criação de um artista ensandecido, da realização dos sonhos de uma criança mimada. Mas, ele se lembrou de todo o poder que teria no novo mundo como seguidor fervoroso do pintor da grande obra.  Então, ele estudou o quadro atentamente, o Führer não era um bom pintor e este último pensamento o atormentou naquela noite. E só naquela.


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


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